Revista Sobrado
Foto: Dedeco Macedo / Divulgação

A arte do encontro no teatro digital

Os três sinais da cigarra anunciam: teatro. É assim que o espetáculo Fora da Ordem – Digital é comunicado ao público, que assiste pela primeira vez de casa. Por ser um espetáculo intimista, a produção nos aconselha a diminuir as luzes do ambiente. Lá estava eu, com pouca luz no meu quarto e minha pipoca em mãos. Essa foi a sétima vez assistindo a esse emocionante espetáculo, mas agora não foram as cortinas presenciais do palco que se abriram.

Por conta do isolamento social que estamos vivendo no Brasil há quase cinco meses, a alternativa escolhida pela Cia Baiana de Patifaria foi remontar o oitavo espetáculo do repertório do grupo de forma online e segura, com transmissão ao vivo para mais de 100 pessoas em cada apresentação.

O teatro acontece com o encontro, mas poderiam os encontros virtuais também se caracterizarem como teatro? Lelo Filho, diretor, dramaturgo e ator de Fora da Ordem – Digital conta qual a grande diferença do teatro virtual, tendo como referência o público eclético da Cia Baiana de Patifaria: “A gente tem todas as faixas etárias nos acompanhando, criança, adolescente, adulto, idoso, de todas as classes sociais. É um teatro que rompe barreiras, que abraça todo mundo. Você assistir a uma série ou filme da Netflix, por exemplo, aquela produção está pronta há anos. A gente tá fazendo ao vivo e a equipe tá ali presente, tá respirando junto com a plateia, os técnicos estão ali na minha frente, eu estou em cena sendo transmitido para um celular, computador ou TV, e o público está respirando junto comigo, cada um na sua casa. Então continua sendo ao vivo”, No final, é teatro. O encontro ainda acontece.

O público é diverso, de perto e de longe. Para essas pessoas, a internet não tem barreiras. “Temos gente daqui de Salvador, Portugal, Nova Iorque, Rio de Janeiro assistindo. Pessoas que, talvez, jamais tivessem oportunidade de ver ao espetáculo presencialmente e estão conosco agora”, pontua Lelo Filho. A Companhia se inspirou no formato do espetáculo Deus me Live e A arte de encarar o medo, duas produções paulistas.

Pessoas que, talvez, jamais tivessem oportunidade de ver ao espetáculo presencialmente e estão conosco agora

Lelo Filho, ator, diretor e dramaturgo

O protagonista realizou ensaios abertos antes de lançar oficialmente a transmissão. Segundo ele, o retorno de amigos que participaram desses ensaios e que se emocionaram e se envolviam na história foi de grande importância para a concretização do projeto. “Se a gente conseguiu, através da luz, do som, do texto, fazer com que a emoção desse espetáculo adentrasse a tela e chegasse na casa das pessoas, estamos alcançando o nosso objetivo. Pode assistir na sala, na cozinha, no quarto, no banheiro, no carro. E, de alguma forma, as emoções e discussões desse texto estão chegando”, diz o ator, que está há seis anos com a peça nos teatros de Salvador em curtas temporadas.

A sala de ensaio na sede da Cia foi transformada em palco e o espetáculo é transmitido por lá. São cinco pessoas na equipe, sendo três presenciais: o ator, diretor e dramaturgo Lelo Filho; o diretor, produtor e editor de imagens, Dedeco Macedo; e o editor de áudio, operador de luz e técnico de transmissão, Fernando Bittencourt. Quem fica no trabalho remoto é o produtor e cenógrafo, Marcos Motta, e o diretor assistente e design de luz, Odilon Henriques.

No teatro físico, a equipe funciona com seis pessoas. Sobre isso, Lelo conta que a escolha de reduzir não foi à toa. “Um fator importante é o de já haver outras linguagens em Fora da Ordem, então transpor para o audiovisual foi apenas uma tomada e sinto que os temas desse texto são muito importantes nesse momento que a gente tá passando. Mas também é uma segurança para a Companhia no geral”, explica. “Não é o mesmo caso de botar A Bofetada que tem troca de cenário e troca de figurino, requer uma equipe maior em cena. As pessoas pedem muito pelas redes sociais os personagens de A Bofetada no audiovisual”, acrescenta Lelo.

Foto: Xande Fateicha

Três câmeras fazem parte dessa montagem e a captação da imagem é feita por celulares, já a captação de áudio é feita por um microfone de lapela. Áudio e imagens são enviados para o computador, onde as imagens são operadas e saem para a transmissão. A estreia estava prevista para o dia 16 de julho, mas por uma questão de conforto ao público, a Cia mudou a internet da sede para uma com melhor qualidade técnica. Com isso, a estreia para o público pagante foi alterada para o dia 19 de julho.

Fora da Ordem é um espetáculo que, por mais que seja um monólogo, têm outros artistas nas imagens projetadas ao fundo. Essas imagens que ele leva, provocam uma relação de cinema com teatro ao espetáculo. O ator, já em cena, começa dando o texto, se desnudando e apresenta o tanto de gente que uma peça move, como produção, operadores técnicos e público.

Pude acompanhar a pré-estreia que foi feita para convidados no dia 17 de julho, a estreia no dia 19 e ainda participei de dois ensaios anteriores. É uma peça que tem ballet, protesto, literatura, música, atuação, poesia, cinema, televisão. Uma das misturas mais saborosas que já experimentei. O texto apresenta como tema central a ditadura militar brasileira. A preocupação da companhia em remontar um espetáculo online de qualidade para quem está assistindo é perceptível e tanto na pré quanto na estreia, a reação do público foi de grande entusiasmo.

Fora da Ordem é um espetáculo que casa muito bem com o tempo que estamos vivendo no nosso país, pois debate temas como racismo, LGBTQIA+fobia, xenofobia, entre outros motes, como o próprio tema central, o menosprezo com a arte, a hipocrisia social, a tortura.

É a história da família Telles Pinto, que começa a ser contada em 1968, até os dias atuais. Tem início no ano em que o AI-5 entrou em vigor tirando todas liberdades individuais dos brasileiros. Os personagens são D. Margarida, a matriarca, o pai (Sebastião) é major do exército brasileiro, Pedro é ator, Adriano é escritor, Glorinha é bailarina, Jonas é ator, cantor e o filho caçula e temporão, por último temos Pedrinho, que é cineasta e filho de Adriano.

Para Lelo Filho, que nasceu em 1962, envolvido politicamente em movimentos de resistência na faculdade, se debruçar sobre a ditadura militar foi “contar a minha vivência, de como eu entendia aquele momento”. Lelo conta que cresceu com o país em Ditadura e ouvia que assuntos não permitidos eram comentados entre os adultos. “Coloco no espetáculo um conflito de gerações, uma família que tem muitos artistas. São quatro filhos artistas, cada um em um seguimento e um pai que representa a censura, o medo, a imposição”, pontua o ator, que afirma ter levado dois anos e meio no processo de pesquisa para a criação do texto.

O público e a pandemia
Sabemos que esse setor de produção artística e cultural foi um dos primeiros a parar as atividades e que será um dos últimos a voltar. Em Salvador, está previsto o retorno na terceira fase do plano de retomada das atividades, divulgado pela Prefeitura Municipal no último dia 21. Ainda em conversa com Lelo Filho, questionamos sobre a realidade atual e planos para o retorno.

Para o ator, essa é, infelizmente, uma realidade mundial. “Esse momento não é uma exclusividade minha, qualquer artista do planeta hoje está vivenciando. Isso nos tira do contato físico com o público, a falta de pessoas presenciais, a falta da interação – do riso ou do choro -, mas a gente espera que isso seja temporário. Nós artistas adoramos ver a reação da plateia”, conta.

Lelo também lembrou do fim da primeira apresentação de Fora da Ordem – Digital, quando teve a resposta do público. “Era um grande silêncio na sala, com a música de Caetano ao fundo, até começarem a abrir os microfones e câmeras e eu sentir a emoção das pessoas”, conta.

A Cia Baiana de Patifaria tem uma marca forte em espetáculos de humor, Lelo Filho tem 38 anos de carreira e afirma que queria trazer um espetáculo de drama para a companhia, pois antes de fazer comédia ele fazia drama. A partir disso começou a pesquisa para o texto de Fora da Ordem.

Sobre a reinvenção e alternativa do teatro em tempos de pandemia, Lelo Filho deixa o recado: “Dizem que o artista precisará se reinventar e eu escrevi sobre isso, que antes de me reinventar, eu preciso sobreviver. E eu acho que os gestores não entenderam isso ainda. A gente vai precisar sobreviver para criar. Obviamente, eu estou me reinventando ao fazer Fora da Ordem como me reinventei a cada projeto que a Companha cria. Você está se reinventando a cada vez que faz teatro, que você entra em cena”.

Antes de me reinventar, eu preciso sobreviver. E eu acho que os gestores não entenderam isso ainda

Lelo Filho, ator, diretor e dramaturgo

Um espetáculo bem amarrado do início ao fim, que eu levei tempo na pesquisa para produzir esse texto, não posso finalizar sem fazer referência a uma das principais fontes de Lelo Filho para esse espetáculo. Finalizo esse texto com um trecho da canção homônima de Caetano Veloso, que foi inspiração para o monólogo e é projetado no início da peça: “Aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína. Alguma coisa está fora da ordem”. Vida longa à produção artística de Salvador.