Revista Sobrado
Foto: Jefferson Peixoto / Secom PMS

A descentralização da cultura pelo projeto Boca de Brasa

Criado em 1986, durante a gestão do prefeito Mário Kertész, o projeto Boca de Brasa tem um valor genuíno: fomentar a cultura na periferia da cidade. Na década de 1980, quando criado, funcionava com quatro carretas que circulavam pelos bairros de Salvador. Os responsáveis por essas carretas eram artistas, que faziam uma triagem e na hora da apresentação esses responsáveis serviam como mestres de cerimônia. Desde o início o Boca de Brasa era algo que movimentava a arte e cultura da cidade desde a produção até a entrega final para o público.

Maria Prado de Oliveira, que é atriz, escritora, produtora artística e gestora cultural participou das primeiras edições do projeto como uma dessas responsáveis, chamada de Coordenadora de Carreta. Na época, ela dividia a função com Fernando Fulco, coordenando juntos as carretas dos bairros de Castelo Branco, Dom Avelar e Cajazeiras.

“Nós mapeávamos os artistas e fazíamos apresentações. Nessas descobríamos tantos talentos”, recorda a artista. “Eu me lembro de uma senhora, costureira, de 80 anos de idade, que apresentou seus poemas. Era uma coisa linda, uma Cora Coralina”, completa. As carretas eram desenhadas pelo designer gráfico Rogério Duarte e projetadas pela arquiteta Consuelo Cornelsen.

A atriz, que também é formada em filosofia, conta que o projeto era um movimento apartidário. “Tínhamos um momento chamado ‘Destrava Língua’, que qualquer cidadão que estivesse ali assistindo, poderia subir no palco e falar o que quisesse, inclusive criticar a prefeitura – e isso acontecia muito. Era um clima democrático e tudo autorizado pela Prefeitura”, lembra.

“O trabalho com as carretas me deu uma grande experiência, principalmente como mestre de cerimônia. Trabalhar no meio da rua, ao vivo, é um grande preparo”, explica Maria Prado. Em 2013 no primeiro ano da gestão do atual prefeito ACM Neto, Fernando Guerreiro foi nomeado presidente da FGM e fez questão de retomar o projeto Boca de Brasa.

A retomada
O projeto recebeu um novo formato nesse retorno, com oficinas gratuitas de diferentes áreas artísticas e também formação de gestores. Até 2016, foram realizadas 21 edições com público total de 42 mil pessoas, 120 oficinas realizadas e 2.300 agentes culturais atendidos em 20 bairros de Salvador. No ano de 2017, a Fundação Gregório de Mattos lançou o edital Espaços Culturais Boca de Brasa, concedendo aporte financeiro a três propostas voltadas ao aprimoramento, dinamização e/ou ampliação das atividades artísticas e culturais desenvolvidas em espaços culturais já existentes.

Já no ano de 2018, a Prefeitura construiu o primeiro Espaço Cultural Boca de Brasa dentro do Subúrbio 360, promovendo oficinas para os alunos e comunidade local de sexta a domingo. A estrutura conta com um teatro equipado com aparelhos de som e iluminação cênica, 400 lugares na plateia e camarins. Em setembro de 2020, mês em que o projeto comemora sete anos na gestão de Guerreiro, o Espaço Cultural Boca de Brasa de Cajazeiras é entregue. Somado ao da Barroquinha, Valéria e Vista Alegre, são quatro Espaços.

O resgate da essência do projeto é feito por Fernando Guerreiro, que também é o responsável pela criação de oficinas que duravam duas semanas. No início itinerante, hoje são equipamentos culturais que fazem movimentar a produção artística e cultural aquém ao centro da cidade.

Atualmente Maria Prado de Oliveira é gestora da Luminosa Produções Artísticas e sobre a retomada do projeto, ela nos conta que a atitude é louvável. “Fui em um desses espaços físicos, a arte e educação pulsa naquele lugar”, pontua. “Estamos vivendo um regime fascista no país. Quanto mais atividade que valorize a produção artística, melhor”, completa.

A centralização é algo que sempre incomodou Maria Prado. Ela acredita que nunca coube centralizar nada, “ainda mais em pleno século XXI”. A artista ainda cita o cantor e compositor Caetano Veloso para falar do novo momento do projeto: “Ele [Caetano] diz sobre a linha evolutiva da MPB, eu acredito que exista a linha evolutiva do Boca de Brasa”.

O projeto é realimentado e isso é muito importante para a população que é beneficiada, não por interesse político apenas, mas com a promoção da cidadania, através do incentivo às manifestações artísticas dos bairros da capital baiana. O atual presidente da FGM, Fernando Guerreiro, já era familiarizado com o projeto e quando assumiu a presidência da Fundação disse ter feito uma pesquisa entre amigos sobre qual projeto poderia voltar e o Boca de Brasa venceu com unanimidade.

Acessibilização
Guerreiro mostra o seu interesse em acessibilizar as produções artísticas e esse foi um grande motivador, também, para a retomada do Boca de Brasa. “Há um tempo, existia o Centro Social Urbano aqui em Salvador e eu sentia necessidade de levar a cultura para os bairros que não estivessem no centro da cidade. Fiz uma pesquisa entre os mais próximos e todos falaram do Projeto Boca de Brasa”, conta. “Acrescentamos as oficinas e só na primeira edição em 2013, 21 bairros foram visitados e as pessoas pediam que fosse permanente, então a FGM abriu um edital e começamos a construir os Espaços Culturais Boca de Brasa. Nós temos parceiros, que são equipamentos culturais que já existiam, e a FGM entra como apoiadora”, pontua. No total, existe um espaço em Cajazeiras, o Picolino, outro no Centro Histórico e um outro em Nordeste de Amaralina, o Quabales.

Fernando Guerreiro, que além de gestor público tem 42 anos de carreira como diretor teatral e agora radialista, em seus espetáculos busca que o público se identifique, sinta proximidade com a arte, como em A Bofetada, Um Pacote Muito Louco e Equus. Então, injetar tempo por parte do presidente da FGM em um projeto como o Boca de Brasa não é um problema. “A Fundação procura devolver o protagonismo a periferia que é a essência da cidade de Salvador! É uma cidade imensa que pulsa uma arte de qualidade na periferia”, comenta.

Para George Vladmir, que é gestor dos Espaços Culturais Boca de Brasa e integra a equipe de coordenação do Projeto Boca de Brasa, o Espaço funciona como um equipamento cultural que atende a comunidade e suas solicitações. “Além disso, nós organizamos ações e projetos no intuito de movimentar e agitar a cultura local, fomentando e estimulando a prática de ações artísticas”, explica.

Os espaços têm atividades fixas, e George, que também é ator, diretor, dramaturgo educador e produtor cultural, termina levando o ator/diretor para trabalhar junto com o gestor e tem o contato direto com o público diariamente, então apresenta as ações dos espaços e a proximidade do público com os produtores é grade. Junto com Bia Assis Lessa, Leandro Souza e Edson Souto apresentam as atividades do espaço e estão em contato com a comunidade para participarem das ações.

Mas nem tudo são flores. George fala sobre as dificuldades e relata que uma das principais é despertar a consciência do fazer artística, para que enxerguem esse potencial. “Muitos nem sabem que são artistas. É difícil que os moradores se apropriem do talento e entendam a arte como ferramenta transformadora”, conta o gestor.

Fabrício Cumming, artista e apresentador do programa de TV Periferia de Sucesso, conta que o Boca de Brasa faz parte de sua vida artística desde sempre. “A primeira vez que eu me apresentei foi no Boca de Brasa ainda na época de Mário Kertész, que a carreta vinha na nossa rua. Quando Guerreiro me falou que voltaria com o projeto, eu me prontifiquei logo. Os meninos mais novos precisam conhecer o Boca de Brasa, que abre muitas portas”, relata.

A descentralização do acesso à arte desperta o olhar de Fabrício. Para ele, esses projetos na periferia criam espaços pra que a comunidade possa se apresentar e, principalmente, assistir, estando em contato com a arte e cultura. “Quando esse espaço é cedido para a juventude, é melhor ainda. Pois é uma marca que fica na vida desses meninos e meninas”, pontua.

Dom Chicla, cantor e compositor há 30 anos, carioca, filho de mãe e pai baiano, morador de Cajazeiras, teve o primeiro contato com o Boca de Brasa em 1986, aos 14 anos de idade. “Minha a vida foi salva quando subi naquele palco. Me lembro bem, era um ônibus adaptado que descia um tablado e a gente se apresentava. Por ter tido essa experiência positiva, faço questão que todas e todos tenham acesso a esse projeto”, conta.

A arte e cultura são fundamentais no processo de criação e evolução do ser humano, por isso Dom Chicla ressalta a motivação do Boca de Brasa para com o acesso à arte. “O contato com a arte é transformador. Eu acredito que o Boca de Brasa aqui de Cajazeiras seja um aparelho fantástico para salvar vidas. É um espaço fundamental para a comunidade. E fomenta a arte na e da periferia”, finaliza.

Com essas duas falas dos artistas que se apresentaram no Boca de Brasa, da época que Maria Prado de Oliveira era apresentadora, temos certeza de que esse é um dos projetos de muita qualidade disponíveis à população de Salvador, e que atualmente administrado pela gestão de Fernando Guerreiro na FGM, cumpre um papel importante na formação da cidadania.