Revista Sobrado
Fotolivro Contenções | Foto: João Regis

A produção artística não para nem quando o mundo para

A principal fonte de renda para a arte é o público. Seja para participar de um espetáculo de dança, teatro e música, ou apreciar uma obra num museu. A arte move o mundo e o mundo move a arte. Este é um ciclo onde não podemos detectar ao certo o ponto inicial e nem o ponto final. Neste momento, a realidade é que, com a pandemia gerada pelo novo coronavírus, o mundo parou. Mas onde fica a arte nesse panorama?

Vimos em diversos países, inclusive no nosso, artistas nas janelas tocando, cantando, dançando, e atuando. Os anônimos também tomaram parte na propagação da arte. Logo no início do período de isolamento social, em que todos pararam e não se sabia por quanto tempo ficaríamos assim, nem como as coisas iriam se suceder, meus vizinhos de prédio (há 500m) tocavam Bell Marques, e eram acompanhados e aplaudidos por outros vizinhos de outros prédios.

Ainda que parada a produção, a arte tem o poder de unir e de entreter. Ela não tem uma limitação, e está sempre provocando sentimentos, emoções e diversas interpretações. Exemplo disso foi a ideia do fotógrafo e publicitário João Regis, que no início do isolamento social decidiu fazer fotos de Salvador com as ruas vazias, para retratar esse momento em que estamos vivendo. O fotógrafo trabalha em cobertura de eventos e agora está seguindo por uma linha mais autoral e artística.

Regis se juntou com mais sete amigos e criaram o fotolivro Contenções, com fotos e apresentação de João Regis e textos de Amanda Quaresma, Ana Carolina Passos, Cauã Liberato, Diego Orge, João Sarno Novaes, Matheus Peleteiro e Taís Plech. O fotógrafo conta que acredita no trabalho colaborativo como forma de crescimento para todos. “A construção é coletiva e Contenções não busca dar uma resposta, ter uma definição. É poético e tem o recorte das ruas vazias”, comenta.

CONFIRA O FOTOLIVRO CONTENÇÕES

Trazer a ideia para o leitor de que o fotógrafo também está contido no carro foi uma escolha de Regis. “Eu gosto muito de conversar com o fotografado, em Contenções eu faço as fotos de dentro do carro, não só por medo de sair pra rua, mas para provocar esse olhar de contido”, diz o fotógrafo, que afirma fazer fotos todos os dias nesses últimos quatro meses em casa. “Por mais que eu não vá para rua, faço fotos de detalhes. Fiz um ensaio da janela do apartamento mostrando a sombra das nuvens em cima das casas”, conta.

A bailarina, professora de dança, coreógrafa e produtora cultural Luciene Munekata, não para com a produção na quarentena e na entrevista elencou ao menos nove ações nesse período. A primeira delas foi a publicação de três vídeos em casa de maneira transmidiática (YouTube, Instagram e Facebook) onde buscou mostrar várias linguagens através do audiovisual.

Mas o decreto de isolamento em Salvador começou a se estender, e como professora de dança de uma grande escola de ensino privado, teve que voltar a dar aula de forma remota. “Eu tive que me reinventar, refiz o plano de ensino com um conteúdo teórico maior e passei a editar os vídeos de alunos”, conta. Como mestranda, Munekata disse ter participado de simpósio de dança e do congresso virtual da Ufba. “Essa virtualização é um formato que eu aposto muito para o futuro próximo”, destaca.

Luciene também foi jurada no Festival Dança Conquista, que aconteceu de forma remota e contou com mais de 100 inscritos, onde todos foram avaliados. A produtora também promoveu ações virtuais no perfil do Encontro Baiano de Jazz Dance, evento que ela dirige. Já são quatro lives com profissionais da dança convidados se apresentando, sempre com um dos convidados comentando as apresentações.

Em coletivo
Já o escritor Claudio Varela tem 26 textos prontos e 17 em andamento. Ele costumava fazer um evento presencial chamado de Leituras Varelianas, onde os textos eram lidos por artistas e os espectadores ouviam e podiam passar feedbacks. Com a pandemia, o evento se tornou impossível de acontecer. Varela então decidiu adaptar o evento para um formato remoto onde diversas pessoas pudessem ter acesso aos textos.

“Ficou mais objetivo, as pessoas ficaram mais concentradas. Escutei que era uma atividade diferente das que estão acontecendo na pandemia como teatro e música. A leitura é diferente. O que me preocupou foi com relação ao tempo de duração, já que eventos virtuais se ficam longos, se tornam cansativos. A ideia era de fazer em uma hora e consegui fechar em 1h30”, pontua sobre o evento.

Mesmo com a pandemia, a produção não parou. Pelo contrário, foi gerado um texto que dialoga com esse tempo de isolamento social. É uma história de amor dentro desse contexto. “Com esse período, a gente teve um contato maior com nós mesmos, teve tempo pra pensar. Eu estava na janela do apartamento e decidi escrever uma história de amor na pandemia”, conta. O nome da obra é Pela Janela, e fragmentos deste e das outras produções estão no perfil do Instagram do autor.

O ator paulista Wilson de Santos protagoniza o monólogo A Noviça Mais Rebelde e precisou adaptar o espetáculo para um formato digital, chamado Deus Me Live, em cartaz aos sábados, às 17h, no Sympla-Zoom. O nome para essa adaptação surgiu de uma negação da possibilidade de fazer uma live, revela o ator. “Quando me pediram uma live, eu disse ‘Deus me livre!'”, explica o ator, que completa: “Quando eu vi a real situação, a impossibilidade de retomar aos teatros, eu que faço o espetáculo há 11 anos sem nenhum patrocínio e conto apenas com a bilheteria, uma das condições de retorno do espetáculo foi de cobrar o ingresso”.

Wilson de Santos em cena | Foto: Divulgação

Wilson de Santos transformou a sala de casa em um palco de teatro com dois espaços: um principal, onde acontece o espetáculo com troca de cenários, e o outro que é o camarim da freira, onde vai recebendo os telespectadores. “Tenho uma oportunidade que não tenho no espaço físico, que é justamente de receber as pessoas enquanto me maquio e explico o processo. Foi instalado um piso diferente com palco, isolamento acústico, cenário. Isso tudo na sala de casa”, destaca.

O ator afirma ter tomado cuidado para que a experiência do telespectador seja como a de sair de casa. “Sabe aquele monóculo que a gente comprava no circo? Minha ideia é justamente daquele jeito. Quero que o público veja a tela e entre num outro mundo com várias interpretações. Quero transportar a pessoa para sair de casa. E por ser um formato novo, vou adaptando todo dia”, explica.

Momento atual
O cantor e compositor baiano Jô, que tinha lançado seu trabalho mais recente em 2019, viu a necessidade de lançar algo novo em 2020. Para ele, o artista não consegue ficar parado. “Lancei Meu Divã em 2019, e em 2020 eu já estava querendo lançar coisas novas. Em março ia lançar Comando, até divulguei no carnaval, mas como é uma música bem agitada, não combina muito com o tempo em que o mundo está vivendo, decidi não lançar. Deixei Comando na gaveta”, afirma.

A inquietação, no entanto, não deixou a cabeça parar. Em maio deste ano, resolveu ligar para o produtor e gravar uma música. “Estava numa angústia e precisava produzir. Eu queria compartilhar algo de amor, de esperança, de afeto. Uma canção que compus quando tinha 15 anos e de quando beijei o primeiro menino. Depois desse beijo, meu mundo ganhou cor. Há cinco anos foi um período em que eu estava muito ligado com o axé music e eu trouxe isso para a melodia, além da inserção de toques da religiosidade africana também”, explica.

Capa do single Nosso Tempo | Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

O single Nosso Tempo está disponível em todas as plataformas digitais. A maior parte da produção foi feita pelo WhatsApp, a gravação da voz de Jô foi feita presencialmente. Sobre o retorno do single, ele comemora contando que teve um alcance nacional. “Saímos em diversos portais também fora da Bahia. Na primeira semana, ela entrou na playlist de MPB da Apple Music, uma playlist que tinha Gilberto Gil e Mateus Aleluia, ter conseguido isso na primeira semana no ar, pra mim, eu ganhei meu lançamento”, concluiu empolgado.

O texto começa questionando se a arte realmente parou e ao longo dele, a resposta, ainda que subjetiva, apareceu. João Regis, Luciene Munekata, Claudio Varela, Wilson de Santos e Jô, esses cinco artistas de diferentes ramos da produção artística e cultural, são a prova de que a arte não parou, nem a produção e nem o consumo. Caro leitor, enquanto houver vida, haverá arte.

O fotógrafo continua a produção, mas agora com um outro recorte, está acompanhando ações de higienização e doações de alimentos em bairros populosos da cidade e, num futuro próximo, pretende publicar um fotolivro de forma física. “Senti uma angustia no início da quarentena e isso foi uma grande motivação para eu começar esse trabalho e apresentar o meu olhar para isso tudo”, pontua João Regis.

A bailarina segue com as ações do Encontro Baiano de Jazz Dance, vai ministrar um curso junto com uma outra professora chamado Elas no Jazz, e acredita que “vai se firmar essas plataformas virtuais para o ensino das artes”. “Eu, de Salvador, tenho acesso a uma pessoa de outro país que não teria essa oportunidade de forma presencial”, conclui Luciene Munekata.

O escritor vai continuar fazendo as Leituras Varelianas pelo Zoom mensalmente e diz: “Estou preparando o plano de ação para a publicação do livro com esses textos, recebi algumas dicas dos escritores Felipe Ferreira e Matheus Peleteiro. Tô assistindo a muitos filmes para me inspirar, já são 320 filmes desde o início do ano, com foco no cinema nacional. Recebi feedback de que os textos são muito visuais, e eu sondo o espaço do audiovisual também”.

O ator continua com a Deus Me Live, pois acredita que antes de uma vacina o retorno é arriscado. “Mesmo com a possibilidade pela flexibilização das medidas pelas autoridades, acreditar que as pessoas voltem a ir aos teatros ainda é uma realidade muito distante”, encerra Wilson de Santos.

Para o cantor, a esperança para um retorno seguro é “se tivermos uma vacina até o fim do ano e políticas públicas para ter uma vacinação em massa, para que pessoas pobres tenham acesso. Não adianta ter algo que imunize apenas a elite. Quando tudo isso passar, eu pretendo ter um show presencial e o próximo lançamento desse ano ainda será Comando“. E conclui: “Eu espero muito que essa realidade do setor cultural volte logo”.