Revista Sobrado
Foto: Divulgação

Alice Júnior e a importância para a comunidade trans

Representatividade importa sim, e muito, principalmente nos mínimos detalhes. O filme Alice Júnior é um verdadeiro espetáculo no quesito representatividade. Não apenas por ser uma história de uma garota transexual, interpretada por uma atriz também transexual. O roteiro se pega nos por menores, que até alguém que se diga entendedor das pautas LGBTQIA+ pode aprender algo novo.

O filme teve sua estreia comercial adiada devido a pandemia da Covid-19 e chegou às plataformas digitais no dia 11 de setembro deste ano. Atualmente, ele está disponível no Vivo Play, Oi Play, Google Play, iTunes, Now, Youtube Play,   Looke e na Netflix. O longa fala sobre a adolescência, suas inquietações, seus sonhos e retrata a escola como um ambiente de ensino indispensável, mas que muitas vezes pode ser opressor. Já levou 19 prêmios nacionais e internacionais e 36 seleções em festivais de cinema por todo o mundo.

A personagem Alice Júnior é interpretada pela atriz pernambucana, de 22 anos, mulher trans, Anne Mota. Alice é uma youtuber trans, que mora num bairro classe média alta no Recife, e é rodeada de liberdades e mimos, vivendo em um contexto familiar muito bonito e respeitoso. A protagonista é surpreendida quando tem que se mudar com o pai para uma pequena cidade no interior do Paraná e é matriculada em uma escola religiosa que parece ter parado no tempo.

O que parece ser bem resolvido em casa e na capital, se torna um recomeço na conquista de espaço diante dos olhares retrógrados das pessoas da nova estadia. É uma verdadeira troca de realidade que a jovem sofre. Alice precisa sobreviver ao preconceito no ambiente escolar e conquistar seu maior desejo: dar o primeiro beijo.

A protagonista Anne Mota tinha penas 18 anos no período de gravação do longa e estava começando os trabalhos como youtuber (conheça o canal Transtornada de Anne Mota). A atriz conta para a Sobrado que lê a obra Alice Júnior com muitas potencialidades. “O filme mostra o poder de uma relação paterna, e ele não só apresenta as pautas da comunidade trans; tem racismo, feminismo… É um filme de diversidade”, diz a atriz.

O roteiro do filme já apresenta um grande diferencial em abordar o tema da transexualidade na adolescência. Sobre essa questão, Anne Mota avalia que “geralmente existem produções sobre trans mais velhas. E ser um filme que a personagem principal é trans, interpretada por uma atriz trans, é de extrema importância. Trata de forma leve, didática, prática e potente temas tão sensíveis”.

Para Gil Barondi, diretor do filme, muitos fatores contribuíram para chegar no lugar da valorização e representatividade. Ele nos conta que Luiz Bertazzo – um dos roteiristas do filme -, já tinha o texto organizado: o pai francês, perfumista; a garota trans que saia da capital e ia para o interior. “Quando eu li, topei na hora fazer o filme. Já tinha dito que queria dirigir algo com a temática queer”, pontua.

“A gente encontrou a Anne que dialogava muito com o roteiro e já era vlogger. O fato dela ser nordestina, vir ao sul, é muito simbólico pois é uma região mais preconceituosa”, avalia Barondi, que é do sul e disse ter adaptado o roteiro junto com Bertazzo, depois da escolha da protagonista. “É relacionado a sermos resistência no Paraná. O Brasil é pluralidade em cultura, costumes, crenças”, acrescenta.

Sobre a equipe, Gil Barondi comenta que teve um time que estava alinhado com esse pensamento da representatividade. “Convidei Anne pra ser produtora associada e nós aprendemos muito com ela. A nossa proposta é fazer o longa com ela e não para ela. Nós ouvimos muito Anne, para aprender e tem uma frase que ela disse e eu me lembro sempre ‘quanto mais naturalizar os corpos trans, melhor’. Alice Júnior apresenta essa naturalidade. É a história de uma garota prestes a dar o primeiro beijo”, ressalta.

Ainda falando sobre equipe, Gil Barondi conta que o casting foi criterioso. “Era um bate-papo com Anne Mota. Eu fazia três perguntas: ‘O que é Transfobia?’, ‘O que é feminismo?’ e ‘Como foi seu primeiro beijo?’. Assim conseguimos avaliar o elenco e ter uma harmonia”, explica. “Não foi apenas o talento, mas sim o conteúdo político de cada atriz e ator que participou da seleção que nos interessava”, acrescenta o diretor.

Um olhar técnico
A Sobrado quis um olhar mais técnico sobre o longa e conversamos também com a diretora de produção do filme, Andrea Tomeleri. Ela conta que o filme foi selecionado em um edital e foram disponibilizados R$ 300 mil para a realização do longa, mas o valor era muito pouco para se produzir um filme. “O filme não caberia num momento melhor, estamos vivendo em meio a tanto caos é como uma esperança. Aprendi muito sobre o universo trans com a Anne, nos momentos de folga íamos fazer compras juntas”, lembra Tomeleri.

Na avaliação da diretora de produção, “o grande diferencial foi que tivemos um extenso período na pré-produção e isso fez com que eu organizasse as despesas. Nas gravações a gente percebia que o elenco estava bem unido e sintonizado”. Ela também frisa que “Gil gosta de coisas grande, as cenas do colégio precisavam de muitos atores, então eram complexas para rodas, os atores eram jovens, então todo cuidado era pouco”.

Curiosidades
As três pessoas entrevistadas pela Sobrado, de diferentes áreas do longa, Anne Motal (a protagonista), Gil Barondi (o diretor) e Andrea Tomeleri (a produtora) nos contaram uma curiosidade sobre a cena da piscina, que é uma pool party na casa de uma patricinha do colégio.

Anne Mota diz que existiram duas versões da cena, uma com censura dos seios dela e outra sem. “Eu estava insegura em mostrar meu corpo, mas depois que vi o resultado, optei pela cena sem censura. É um momento tão significativo do filme”, declara.

Para Gil Barondi, “a cena da piscina foi construída pensando em trazer a violência para o filme – e é uma violência explícita, o garoto deslegitima o corpo trans e isso acontece diariamente -, mas que apresentasse logo a alternativa. É uma cena muito sensível e eu sempre me emociono nessa parte”.

De acordo com Andrea Tomeleri, a produção da cena foi “cheia de muito cuidados. Primeiro, cuidados técnicos, pois foi uma cena que usava câmera embaixo da água e fizemos uso de drone. Segundo, cuidados humanos, já que estávamos gravando no inverno, com 8ºC. Então terminou de gravar, toalha, chocolate quente para aquecer o elenco”.

Para saber mais curiosidades do filme, veja ao vídeo: Curiosidades do filme Alice Júnior *CENA COM SPOILERS*

As entrevistas foram feitas por telefone, em horários diferentes, mas tanto Andrea Tomeleri quanto Gil Barondi avaliam que o filme “foi um trabalho de pouco dinheiro, mas com muita energia, alto astral”.

Barondi revelou ainda mais uma curiosidade: “Tivemos muito receio quando o filme foi inscrito no festival de Berlim. Medo de não entenderem nossas piadas e a cena foi linda, a sessão lotada, as pessoas levantaram e aplaudiram de pé”, conta.

O filme fala de uma adolescente prestes a dar o primeiro beijo e, se vocês acharam que não teria beijo, se enganaram. Tanto para Anne, quanto para Gil, outra cena muito marcante é a do beijo. O resultado final dessa cena está incrível, a edição casada com o roteiro e a trilha sonora.

“Adoro a cena do beijo, preenche de alegria tocando Mc Xuxú, Gloria Groove, Pabllo Vittar. Alice Júnior é uma verdadeira homenagem ao desejo que a pessoas trans sejam respeitadas. Isso parte de mim como diretor, como ser humano e como viado”, finaliza Barondi.

Feedback
Sobre o retorno do público, Anne disse que ouvi de uma criança de 12 anos que sofreu bullyng por ser trans. “Maria Joaquina, é o nome dela. Ela me disse que pode se inspirar em Alice e resistir. Ouvi também de trans que convidaram sua mãe e seu pai para assistir ao filme e em seguida contaram sobre a sua identidade de gênero. Comigo foi assim, mostrei um documentário sobre crianças trans à minha mãe e logo em seguida contei que da minha identidade de gênero”, partilha.

“A gente tá conquistando um grande espaço, recebo feedbacks de famílias mais tradicionais que têm assistido ao filme e gostado bastante. Isso coroa um grande trabalho, participei ativamente das etapas, sempre me ouviram bastante e eu me lembro até de ter sido bem incisiva em alguns momentos falando se tinham coisas que me incomodavam e a produção acatava e buscava se aprimorar sempre”, comenta.

Os diálogos no filme são bem descolados, como num vlog, e isso provoca uma relação mais próxima dos espectadores com a obra. “Eu e personagem temos semelhanças e diferenças. As duas são trans. Ela é youtuber, como eu. Recifense, eu também sou. Tem um diálogo mais fácil com a família, como eu e tem uma vida financeira mais estável”.

E, acrescenta, “Alice Júnior é um filme que eu deixei muito claro com a produção que a realidade dela não é a realidade da maioria. Ela teve uma vivência mais flexível, uma relação paterna muito sensível. Sabemos que muitas trans são expulsas de casa, tem uma relação familiar conturbada depois da aceitação da identidade de gênero”, pontua.

O que diz a comunidade Trans
A Sobrado ouviu também João Hugo, homem trans negro e ativista LGBT+, comunicador social, fotógrafo, graduando em Comunicação – Produção em Comunicação e Cultura – pela UFBA. Hugo também é membro do Comitê Técnico de Saúde Integral da População LGBT da Bahia, foi colaborador do Fórum de Políticas Públicas para Travestis e Transexuais do Estado da Bahia, membro da Associação de Diversidade e Inclusão da Bahia, idealizador e coordenador do Centro de Cultura e Acolhimento LGBTQIA+ Casa Aurora.

“O filme é importantíssimo. Pela linguagem, pela estética e principalmente por ser uma pessoa trans no papel de pessoa trans. Alice Júnior é leve e veio provar que somos leves”, afirma Hugo.

Ele avalia que o fato de o longa estar disponível nas plataformas de VOD dá possibilidade de pessoas diversas assistirem. “É um filme que trata a transgeneridade não de uma forma acadêmica, mas de forma leve. É importante termos produções assim. E ele acessa um público que outras produções não conseguiram alcançar”, avalia.

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, e, em contra partida, é o país que mais tem busca pelo sexo trans nos sites pornográficos. Sobre essa questão, tanto Anne Mota quanto João Hugo disseram que isso só prova o quanto a sociedade brasileira é hipócrita.

“Isso vem de pessoas que não têm acesso a informação. É uma sociedade tão transfóbica, transgênica que diz amém na igreja, mas fora dela faz tudo ao contrário dos ensinamentos básicos da religião. Pessoas trans são comuns como as cis”, ressalta Hugo.

Anne Mota destaca que tem um vídeo sobre esse assunto em seu canal no YouTube, o Trans-Tornada: Fetichização. “Isso é uma hipocrisia. Não nos permitem acesso à educação, não nos permitem sair na luz do dia, mas quando se trata sobre sexo, eles querem. Eu defendo cotas para pessoas trans. O Brasil tem uma dívida histórica com pessoas trans”, diz.

Como um arremate final da reportagem, a diferença de identidade de gênero e sexualidade também é posta no filme. Quando você pensa que não tem como se surpreender, Alice Júnior vai lá e quebra mais um padrão e tudo de uma forma bem leve que entretém, passa a informação e critica a sociedade normativa.