Revista Sobrado
Grupo A Pombagem | Foto: Diogo Andrade / Divulgação

Artistas de rua de Salvador e Região Metropolitana sobre a corda-bamba

Receber uma doação de dez cestas básicas incentivou o poeta Antônio Costa, 27, a iniciar um movimento engajado em buscar junto aos órgãos responsáveis pela gestão de cultura da cidade uma forma de amparar os artistas de rua logo no início da pandemia. “Eu não ia ficar com todas, nem queria ter sozinho a responsabilidade de repassar. Então pensei que poderíamos criar um cadastro e fazer um movimento continuado”, conta. Em meio às restrições impostas pelo novo coronavírus, artistas de rua se comportam como equilibristas numa corda tensionada entre a pandemia e o atual Governo.

Membro suplente do Conselho Municipal de Política Cultural de Salvador, Antônio idealizou, junto à amiga Luz Marques, 34, também conselheira suplente no órgão, o Movimento Arte Livre, iniciativa que já conta com mais de 450 nomes de artistas autônomos da capital e região metropolitana.

O primeiro passo, segundo Luz, foi criar um grupo que pudesse discutir e entender as demandas desses profissionais que, durante as medidas necessárias de isolamento social, encontram-se impossibilitados de exercer seu ofício. A solução encontrada pelo grupo foi solicitar a inclusão dos artistas de rua no programa Salvador Por Todos, da Secretaria de Promoção Social e Combate à Pobreza, que disponibiliza R$ 270 para trabalhadores informais cadastrados na Prefeitura, como baianas de acarajé, ambulantes e guardadores de veículos.

À época, o movimento então formado por 120 pessoas enviou uma carta aberta à Prefeitura e à Fundação Gregório de Mattos, que, segundo Antônio, responderam prontamente disponibilizando cestas básicas para todos os assinantes. “Considerei isso uma coisa boa, agradeci ao prefeito e fui até criticado por algumas pessoas por isso. Mas acredito que quando temos uma resposta, por menor que seja, temos também uma garantia de que ele está ciente de nossa existência. É também uma forma de cobrar que as questões sejam resolvidas”, opina o artista.

No último dia 29 de julho, o prefeito ACM Neto anunciou a permanência do auxílio durante o mês de agosto, mas o benefício segue excludente aos trabalhadores informais da cultura, apesar do Projeto de Indicação (PI Nº 151/20), que recomenda a inclusão destes trabalhadores no benefício, ter sido aprovado na Câmara Municipal desde abril.

Desde então, o Movimento Arte Livre tem se articulado em arrecadar e distribuir alimentos e materiais de higiene doados por pessoas físicas, ONGs e empresas. “Ainda não conseguimos uma doação que contemple as mais de 400 pessoas cadastradas, mas temos conseguido doações de trinta, cinquenta, cem cestas básicas, e vamos fazendo o repasse”, afirma Antônio.

O critério: a necessidade. Segundo Luz, ser parte do grupo de risco do Covid-19 ou não ter conseguido o auxílio emergencial do Governo são alguns dos fatores que estabelecem a prioridade para o recebimento das cestas, além da quantidade de pessoas na casa de cada família. O grupo principal de trabalho conta com trinta pessoas, que se ocupam em mapear as particularidades de cada artista e sua família, buscar doações e viabilizar a entrega. Por vezes, é necessário fazer uma vaquinha interna: “Semana passada, soubemos de uma pessoa que estava com suspeita de Covid-19, então dividimos o valor de um Uber para entregar a cesta na casa dela com segurança”, conta Luz. Até a data de publicação deste texto, o Movimento Arte Livre não aceitava doações em dinheiro.

Segregação
Após seis anos trabalhando como artista de rua, fazendo música e recitando poesia principalmente nos transportes coletivos da cidade, Antônio aponta como, sobretudo em momentos de crise como a que vivemos, a burocracia também é uma forma de segregação. “Conheço pessoas que trabalham há mais de vinte anos com arte pela cidade. Conheço pessoas que são analfabetas, mas riquíssimas em cultura. Como exigir que alguém que nunca manuseou um computador faça um portfólio?”, questiona.

Ele se refere ao fato de que muitas pessoas, incluindo artistas de rua, acabam ficando desamparadas pela falta de acesso a ferramentas e conhecimentos que, neste momento de isolamento, são determinantes para a garantia do sustento e da integridade física do sujeito. Disparidades já conhecidas, fruto da profunda desigualdade social do País, mas que encontram no momento um dramático fator de agravamento: uma doença letal e contagiosa. “Para nós, a pandemia é mais uma opressão, que nos relembra a dualidade entre vida e morte”, pontua Breno Silva, artista de 20 anos.

Breno Silva durante Sarau A Rua Recita, do coletivo Pé Descalço, que acontece na Cruz Caída | Foto: Acervo pessoal

Ao sancionar no final de junho a Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, conquista da forte movimentação da classe artística brasileira para o repasse dos R$ 3 bilhões oriundos do superávit do Fundo Nacional de Cultura, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vetou o ponto do texto que estipulava prazo máximo de 15 dias para que os recursos começassem a ser distribuídos. 

O auxílio previsto na lei que homenageia o músico, que morreu em maio por complicações do novo coronavírus, ainda não chegou nos bolsos de seus beneficiários. Para ter acesso, o artista ou entidade cultural afetada pela pandemia precisa possuir cadastro junto aos órgãos competentes pela administração da cultura em cada estado ou município.

Quatro meses após o início da pandemia e a impossibilidade de trabalhar, o terreno ainda é nebuloso para todos aqueles que tiram da arte o seu sustento. “Fomos os primeiros a parar e seremos os últimos a voltar”, comenta a produtora cultural Selma Santos, co-criadora do Festival Internacional de Artistas de Rua da Bahia, que teve a 16ª edição adiada para novembro.   

Violência
Por outro lado, outros setores já entraram em retomada de suas atividades. Há uma semana, a cidade de Salvador entrou na primeira fase de flexibilização do isolamento, após manter por cinco dias a ocupação dos leitos de UTI em menos de 75%, com a abertura de shoppings, comércios de rua e templos religiosos. Voltar às ruas para fazer arte, no entanto, continua sendo um risco. “Mesmo antes da doença, já convivíamos com a constante tensão da repressão do Estado que está implantada nas ruas”, conta Breno, poeta e co-criador do Pé Descalço, coletivo de arte de rua integrado atualmente por seis jovens negros oriundos da periferia da cidade.

Breno começou a fazer poesia no colégio, em 2016, e desde então não parou mais, levando suas palavras a escolas, praças e ônibus e incentivando outros jovens a investigarem as próprias habilidades artísticas. Nem mesmo quando teve um fuzil apontado em sua direção, seguido de um enquadro para ele e seu amigo, também adolescente na época, no momento em que entravam num ônibus na avenida ACM para recitar, após o turno escolar.

“A poesia me mostrou caminhos que talvez eu tivesse ido caso não a tivesse encontrado”, afirma o jovem, que atualmente estuda Museologia na Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e também montou um selo de produção de cadernos artesanais junto com a amiga Sued Nunes, também artista, para o seu sustento na cidade de Cachoeira.

Seu relato de violência consoa aos repetidos episódios de brutalidade contra jovens negros e pobres, que não cessam em nosso país mesmo em plena quarentena, escancarando um sistema que nega o direito ao lar para quem mora nas favelas. Ficar em casa pode ser eficaz para evitar a contaminação pelo novo coronavírus, mas os últimos meses deixaram evidente de forma trágica, que não é, para todos, uma medida eficaz para preservar a vida.

Felipe Pereira, 20, fotógrafo amador, músico, poeta e capoeirista, conta que também já sofreu muitas abordagens por parte da polícia, o que lhe gerava uma série de revoltas, mas que ele tentava transferir para a própria arte. “Para quem trabalha com arte marginal, é preciso ver uma forma de transformar isso em combustível para continuar lutando contra a opressão, contestando um sistema capitalista que tem a estrutura para nos reprimir desde a colônia”, pontua. No bairro onde mora em Lauro de Freitas, Felipe é um movimentador cultural, desenvolvendo junto com amigos e seu Mestre de capoeira diversos eventos, como o Sarau do Fim de Linha, que acontecia no final de linha dos ônibus em Itinga.

O artista e produtor cultural Fabrício Brito, 33, idealizador do grupo de arte popular A Pombagem, conta que a maior parte dos artistas de rua moram em bairros periféricos, tradicionalmente excluídos de políticas públicas, e que ver essa situação se agravando com a pandemia tem gerado muita angústia. Fabrício também foi coordenador do Movimento de Teatro de Rua da Bahia, e integra o Movimento Arte Livre.

Caminhos
Também integrante d’A Pombagem, Aylla Campos, 22, conta que sua fonte de renda tem sido o trabalho de artesanato que realiza junto ao seu companheiro, comercializado atualmente pelas redes sociais, intitulado Amor da Terra. No entanto, a saudade das ruas tem feito com que ela também se dedique a criar novos números cênicos para quando for possível o retorno ao que ela considera o “maior palco do mundo”. “Está sendo muito difícil porque, para além da questão financeira, é um estilo de vida que eu escolhi ter. É a mudança que quero ver no mundo, é o que eu acredito”, conta.

Luz Marques, atriz e produtora do grupo teatral ayá, em cena | Foto: Divulgação

Oferecer oficinas online de Teatro Griô foi a alternativa encontrada por Luz Marques, atriz e diretora teatral do Grupo Ayá, que tem foco na memória ancestral do corpo e num desenvolvimento afrocentrado. “Tenho a sorte de ter um celular e um computador que me permitem trabalhar na pandemia, mas muita gente não tem”, aponta. Em agosto, a oficina do Grupo acontece em seis encontros de quatro horas cada e custa R$ 60, aberta ao público em geral.

O caricaturista e ilustrador Amauri Alves, 34, é outro exemplo de artista de rua que conseguiu permanecer em atividade no meio digital durante a pandemia. Antes em praças públicas e eventos para os quais era contratado para fazer suas caricaturas, ele tem passado o tempo de isolamento dedicando-se a aprender e aprimorar-se em técnicas de ilustração digital, recebendo encomendas online. Mas pintar olhando nos olhos é, para ele, insubstituível. Sobre um possível retorno, é otimista: “Acho que a arte de rua pode passar a ser mais valorizada, as pessoas estão sentindo falta do convívio, podem ir em busca de reparar em coisas que antes não reparavam. Mas já pensou se eu tiver que desenhá-las de máscara?”, brinca.

O mesmo pensa Antônio. “Acho que as 72 mil mortes [à época de nossa conversa] também levarão a uma valorização da vida. Talvez as pessoas fiquem mais empáticas, mais cuidadosas”, deseja. Ele conta que tem sobrevivido com o apoio de pessoas próximas. “Se eu estivesse sozinho, não estaria conseguindo fazer um terço do que faço. Não trabalhei com arte de rua, mas a todo tempo trabalhei de casa, conseguindo cestas básicas, escrevendo ofícios”, conta ele, que se sente privilegiado pela rede de afetos que construiu ao longo de seus anos na arte de rua, por ter tido oportunidade de buscar um pensamento crítico e por ter um lugar onde morar.

Fabrício opina que as redes sociais, por analogia, tem se tornado um espaço público possível para trocas, dada a impossibilidade de ocupar a rua, que ele define como local de compartilhamento, pesquisa e construção. “Se nesses espaços existirem coletivos de arte que estão fora da lógica burguesa, do mercado, do consumo, e que esses coletivos divulguem suas artes, seus conteúdos, de maneira gratuita, ou por meio de lives, passando um chapéu virtual, construímos um espaço análogo onde a arte pode se proliferar e se desenvolver no caminho da liberdade”, analisa.  

Mesmo assim, o espaço virtual não substitui a entrega da rua, que segundo Felipe, possui uma função muito maior de diálogo, compreensão e conscientização pela sensibilidade que não é totalmente contemplada pelo digital. O produtor Bernard M. Snyder, co-criador do Festival Internacional de Artistas de Rua da Bahia junto a Selma Santos, defende que uma versão online do evento ocorra apenas em último caso, mas que seria “outro evento”. Para ele, o mais provável é que o público se adapte, ficando mais distante do artista e de outros espectadores.

Conduta
De áreas e vivências diversas, esses artistas de rua relataram uma preocupação em comum: a de se fortalecer enquanto grupo e usar as possibilidades oferecidas pela própria arte para não desistir de mudar a realidade, dentro do possível. “Essa quarentena para nós nunca foi de fato uma quarentena, sempre foi meia-boca, mentirosa, fajuta, porque os nossos continuaram indo trabalhar”, lembra Felipe. “Não está muito diferente para quem não tem recurso, o ambulante tá na rua porque precisa se alimentar, ser pobre te coloca em risco a todo tempo”, completa Antônio.

Poeta Antonio Costa, articulador do Movimento Arte Livre | Foto: Kyria Klein / Divulgação

Mesmo com todos os obstáculos, a arte de rua se mostra como uma ferramenta poderosa de transformação, como defende Aylla ao afirmar que o artista de rua consegue passar por “todo e qualquer governo”. Para Fabrício, o atual é inimigo da vida, e sua necropolítica é a negação da cultura democrática. “Existe uma cultura, mas é a do silenciamento. A cultura que se relaciona com a vida é a que entende um Brasil complexo e rico, em que há várias visões de mundo que não podem ser anuladas”, observa.

Ao refletir sobre a potencialidade da arte em provocar a reflexão acerca da própria condição, Antônio relata um fato ocorrido com ele no dia anterior, quando voltava para casa após um dia de entregas de cestas pelo Movimento. “Encontrei uma pessoa com quem tive a oportunidade de conversar no caminho de casa. No meio da conversa, apareceu um senhor que disse que pros negros serem libertos, precisou de um branco, como se estivesse agradecendo a ele por sua própria liberdade, pois ele era negro. Eu fiquei preocupado. Aí ele deu o exemplo de um filme chamado Código de Conduta, e depois de escutar tudo aquilo eu pedi que ele assistisse Bacurau e prestasse atenção naqueles dois personagens brasileiros [os interpretados por Karine Telles e Antonio Saboia]. Sei que vai ficar aterrorizado, mas espero que, depois de Bacurau, ele esqueça o Código de Conduta”, ri.

Felizmente, enquanto lutam para amparar-se e buscar soluções junto ao poder público, nenhum dos artistas esquece que o show tem que continuar.