Revista Sobrado
Foto: Zeza Maria / Iphan

Bembé do Mercado resiste à pandemia da Covid-19

A universitária Gabriela Costa lembra a primeira vez que assistiu o Bembé do Mercado, em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano. “Eu era adolescente, estava acompanhando a minha avó, que era integrante de um terreiro de candomblé aqui em Salvador. Todos os anos íamos para Santo Amaro. Depois que ela morreu, em 2015, continuei indo. Esse é o segundo ano que essa viagem não acontece”, ressalta.

Devido à pandemia, o único candomblé de rua do mundo está sendo realizado, pelo segundo ano consecutivo, sem a presença da multidão de pessoas que todos os anos ocupam as ruas da cidade que nasceu Maria Bethânia e Caetano Veloso. A festa é uma tradição realizada há 132 anos. Era 13 de maio de 1889, quando o negro escravo e pai de santo João de Obá, saiu da sua residência junto com os afiliados do seu terreiro, para render graças aos Santos pela liberdade dos negros.

Em 2019, quando comemorava 130 anos, a festa Bembé do Mercado foi registrada como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Desde 2012, é reconhecida como Patrimônio Imaterial da Bahia pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac).

A pesquisa apresentada no Dossiê de Registro junto ao Iphan aponta que o uso do nome Bembé está assentado nos processos da diáspora africana e que deriva de Candomblé. O documento ressalta que o Bembé “é como um balaio de história, cultura, arte e ação política que acolhe o melhor das expressões do Recôncavo Baiano”. E, destaca que a capacidade inventiva e transformadora tem permitido sua sobrevivência neste espaço por mais de um século, tornando-se um marco contra o passado escravagista. O que lhe garante uma relevância para a memória, a história e a cultura nacional.

Práticas religiosas se misturaram ao longo do tempo com práticas lúdicas envolvendo o povo negro. A ação de João de Obá, ao armar um carramachão na área da ponte do Xaréu e bater o Bembé, contou com a participação de escravos de diferentes engenhos, conferindo-lhes aspectos de reivindicações de lutas políticas.

Hoje, a produção e execução da festa envolvem diversos atores sociais. Pescadores, ativistas políticos, comerciantes locais, brincantes de maculelê, sambadoras e sambadores de roda do Recôncavo e capoeiristas.

Junto à dimensão religiosa, outros bens culturais foram associados à festa secular, como a do Nego Fugido, um teatro que representa a violência da escravidão; o Lindro Amor, cortejo feminino feito para comemoração dos festejos de São Cosme e São Damião; a Burrinha; e a Puxada de Rede, todos relacionados às referências culturais da diáspora africana.

Foto: Prefeitura Municipal de Santo Amaro / Divulgação

Ritualização
Três diferentes cerimônias constituem os fundamentos do Bembé: a reverência aos ancestrais, que fundaram a festa; as oferendas a Exu, que acontece em diferentes lugares, e o orô do orixá, que são os diversos ritos destinados à Iemanjá incluindo a entrega do presente. Nisto constitui o processo ritual da festa.

Em sua dissertação de mestrado, apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH-Ufba),a historiadora Ana Machado avalia que o Bembé foi ressignificado, para além da comemoração pelo fim da escravidão, ganhou uma maior dimensão religiosa.

“A festa tornou-se um evento bastante reivindicado pela comunidade dos terreiros, e compreendido a partir da noção de obrigação. Nesse sentido o termo Bembé é sinônimo das práticas sagradas do candomblé”, destaca Ana Machado.

Durante os dias de festas, as práticas religiosas são realizadas no barracão, que é erguido no centro da praça do mercado. O mastro sagrado, que é levantado em frente ao barracão, como uma espécie de poste central, simbolicamente estabelece que o barracão do mercado é um território sacralizado, portanto apto para a realização da festa litúrgica, descreve Ana Machada.

Os ritos de preparação do barracão reatualizam o axé do mercado, cujo nome é “o axé que nunca morre”. De acordo com a história, é nesse contexto ritual, que acontecem as cerimônias para Exu, que consiste no padê, popularmente conhecido como despacho. Na sequência, ocorre a arrumação do presente para a Iemanjá, ritual que acontece no terreiro responsável pela festa.

Este ano, o Terreiro Viva Deus de Santo Amaro, comandado por Pai Pote, é quem está à frente da organização das cerimônias religiosas e é lá que irão acontecer os ritos privados.

Antes, a escolha do babalorixá era feito por sorteio pela Secretaria Municipal de Turismo, Cultura, Esporte e Lazer. Hoje, o Bembé do Mercado é uma entidade jurídica, com gestão eleita para um mandato de quatro anos. Pai Pote está à frente da gestão, explica à Sobrado Gleidson Muniz, assessor de gabinete da secretaria.

Toda a logística da festa é feita pela Prefeitura Municipal de Santo Amaro, que financia os objetos e ingredientes utilizados nos rituais, fornece transportes, alimentação e colabora financeiramente com os terreiros que participam das cerimônias no largo do mercado.

Para Pai Pote o Bembé “é um evento histórico, que nasceu de forma espontânea. Uma festa de rua, que tem várias raízes”. Mas que será diferente, reduzida, devido à pandemia.  

“Teremos o barracão, com todos os rituais religiosos e simbólicos, como o levantamento do mastro e a alvorada. Tudo isso sem a presença do público, apenas com poucas pessoas dos terreiros”, ressalta Gleidson Muniz.

As cerimônias religiosas já estão acontecendo durante toda esta semana, mas o ápice da festa será no sábado, 15, com a arrumação do presente para Iemanjá e Oxum, e no domingo, 16, quando o presente será colocado em um carro, que vai percorrer as ruas de Santo Amaro e depois seguirá para a Praia de Itapema, onde será ofertado.


Saiba mais
Como parte das instruções para o reconhecimento do Bembé do Mercado como Patrimônio Cultural do Brasil foi elaborado o documentário Bembé do Mercado – 130 anos, produzido por Lorena Lima, com roteiro e direção assinados por Danillo Barata e Thaís Brito. O produto audiovisual está disponível gratuitamente no YouTube.