Revista Sobrado
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Biografia Jacta Est – Tom Zé por Pietro Scaramuzzo

“Eu estava louco mas também estava certo”, disse Tom Zé à diretora Carla Gallo no documentário Tom Zé, ou quem irá colocar uma dinamite na cabeça do século? (2000), referindo-se à obra que produziu nos anos 70 e 80, fase em que viveu o ostracismo. A época em que sua música ficou fora do pensamento do povo, bem como sua infância em Irará, no interior da Bahia, são dois dos momentos mais observados em sua primeira biografia autorizada Tom Zé, O Último Tropicalista, do jornalista italiano e pesquisador da música brasileira Pietro Scaramuzzo, cuja versão física acaba de ser lançada em português pela editora Sesc São Paulo.

“Todos nós somos o resultado do que vivemos na infância, e o Tom Zé, mais que outros artistas, mantém esse espírito de criança muito vivo”, opina o autor. Reconhecido por sua inventividade e sensibilidade, o artista baiano formou-se na escola de música da Universidade Federal da Bahia nos anos 1960 e sua obra é marcada por uma profunda mescla de estilos e ritmos.

No entanto, sua genialidade tem origem na possibilidade de um processo criativo livre e despretensioso: “na hora de compor, tenho que jogar tudo isso fora, jogo também a bossa nova, que eu amei e me deu qualificação como jovem, jogo fora tropicalismo, jogo fora tonalidade, jogo fora tudo, aí tô sozinho, exangue, magro, miserável, abandonado. É nesse lugar que nasce música”, explica Tom em depoimento ao documentário de Gallo.

“É curioso que durante o ostracismo, o Tom Zé gravou um dos mais lindos discos que ele fez na carreira dele. Então são duas partes de uma mesma moeda, é uma fase crítica da própria carreira, onde ninguém mais está ligando para ele, mas que ele lança Correio da Estação do Brás (1978), que pra mim é um disco extremamente importante”, opina Scaramuzzo. O processo de pesquisa e entrevistas durou por volta de um ano e meio, com biógrafo e biografado reunindo-se semanalmente via chamadas de vídeo. A versão em italiano do livro foi lançada em 2019, pela Add Editore.

Também foram ouvidas outras personalidades, como os contemporâneos tropicalistas Caetano e Gil e o cantor David Byrne, da banda americana de new wave Talking Heads, que assina o prefácio. Byrne foi o principal mobilizador da carreira internacional de Tom Zé, contribuindo para a sua saída do esquecimento popular nos anos 90.

Scaramuzzo conta que seu encantamento pela obra de Tom Zé teve início ao ouvir a música Frevo (Pecadinho). “Achei muito linda, pela progressão harmônica e melódica da música, e pela forma que Tom Zé fala do pecado: como uma forma de redenção”, conta. Marcada pelo uso da palavra como objeto poético, para além de seu significado, a música tropicalista tem influência da poesia concreta. “Não sei se em outros países há um uso tão prático da palavra na música quanto na Tropicália, para um estrangeiro como eu é uma coisa muito interessante”, completa o pesquisador.

Momento político
O movimento tropicalista, consolidado no álbum coletivo Tropicália ou Panis et Circencis (1968), apresentou-se como uma perspectiva de futuro para os que não assentiam à ditadura militar. Uma possibilidade poética de um Brasil menos conservador e mais dialógico em relação aos próprios processos socioculturais.

Em livro homônimo ao disco, de Ana de Oliveira, o pesquisador americano do movimento Christopher Dunn defende que o artista baiano foi, dentre os tropicalistas, “o mais crítico e cético em relação à modernidade capitalista da cidade grande”, característica do modelo de modernização instaurado pelos militares no país. Ele analisa a letra de Parque Industrial, única canção de Tom Zé no disco-manifesto do movimento, crítica aos meios de comunicação massivos que também faz referência à exclusão e à desigualdade social provocada pelo sistema.

Foto: Anderson Yagami / Divulgação

Quando questionado sobre a relevância de contar a história desse artista subversivo no momento político atual, Scaramuzzo diz: “Para ser sincero, eu ainda não tinha pensado sobre isso. Para quem é de fora, a política brasileira é um universo muito difícil. Mas espero que a biografia seja mais um pequeno tijolo no trabalho que é contar o que aconteceu no Brasil naquele momento [da ditadura militar] e como o país saiu dele. É um pouco banal dizer isso, mas é verdade: deveríamos poder aprender com o passado”.

Aos 84 anos, Tom Zé também colabora com canções originais no espetáculo Língua Brasileira, de Felipe Hirsch, inspirada em sua música homônima do álbum Imprensa Cantada (2003). A peça teve estreia adiada por conta da pandemia, e tem previsão de apresentações ainda neste ano.