Revista Sobrado
Foto: Soumil Kumar / Pexels

Do casual ao profissional: jogadoras relatam episódios de machismo e assédio em games online

“Vagabunda”
“Já lavou roupa hoje?”
“Se estivesse lavando a louça…”
“Tinha que ser mulher”

Essas frases cabem nas mais diversas situações diárias que mulheres enfrentam. Mas imagine entrar em um jogo online para se divertir e acabar se deparando com essas e muitas outras — expressões machistas e misóginas.

Eu, a própria jornalista que vos escreve, tive o desprazer de ler tais insultos enquanto jogava o famoso LoL (League of Legends). Saí da partida com muita raiva e fui imediatamente reportar para a empresa produtora do jogo, a Riot Games, mas nada aconteceu. Não foi a primeira vez que sofri agressão verbal, e com certeza não será a última.

Muito antes desse episódio, mas já carregando algumas histórias de estresse e desgaste mental, decidi mudar meu apelido no jogo para um masculino. Mesmo em 2020, muitas jogadoras de todas as idades escondem a própria identidade para não dar abertura a homens que utilizam chat de jogo para flertar. Se você não corresponder, as coisas podem piorar. Insultos se agravam para situações de assédio e ciberbullying.

Carolina Gabriela, 22, que joga LoL há três anos, carrega algumas situações tristes e desconfortáveis em seu jogo favorito. “Direto aparecem pessoas aleatórias perguntando se quero trocar nudes, homens que eu nunca conversei na vida”, relata. “Uma vez um homem que me adicionou e me chamou do nada para ir na webcam com ele, que ele se masturbaria. Disse que eu poderia abrir também se quisesse. Insistiu até. Foi do nada, ele só perguntou se eu era solteira e soltou essa”, complementa.

Para Carolzita, como é conhecida no jogo, não seria justo mudar o nickname no jogo para um masculino. “Vai continuar acontecendo com outras meninas. Isso só vai mitigar e não vai resolver os problemas. Eu prefiro sofrer o que tiver que sofrer para fazer algo depois”, conta.

Uma jogadora casual de LoL também escreveu em suas redes sociais sobre um episódio de sexismo em que, erroneamente, levou banimento do jogo. Depois, ao reavaliar o acontecido, a Riot Games retirou a punição da jogadora e se desculpou. Confira:

Outro tweet recente chamou atenção na rede social. A streamer Kyure, que tem mais de 80 mil seguidores no Twitter, expôs um print no qual um jogador ridicularizou sua performance em uma partida, criando um vídeo reagindo ao desconforto da jogadora.

Chat de voz só piora tudo
Nos jogos online em equipe, é comum ter sistema de chat de voz. No LoL, por exemplo, se comunica dessa forma apenas os jogadores que criaram uma sala juntos para jogar. Mas em modalidades como CS:GO, Free Fire e Valorant, as coisas são bem diferentes. A comunicação é aberta para todos que quiserem habilitar seus microfones e áudios, dando espaço para que uma forma mais direta de assédio seja praticada.

Um famoso caso que repercutiu no início de junho envolveu a streamer Rayana Bainy, que estava jogando Valorant ao vivo para seus seguidores e sofreu ataques de um jogador de seu time. A jogadora escutou xingamentos como “cadela”, e até comentários como “mira na bunda”, em que o assediador se referia a colocar a câmera direcionada ao personagem de Rayana. No tweet de denúncia, a criadora de conteúdo acusou com repúdio e pediu a outros homens que, se presenciassem esse tipo de comportamento, “não fiquem calados ou rindo junto”. Confira:

Elas também sofrem no profissional
E foi aí que o jogador profissional de Valorant André, “andre1”, Goulart, usou seu alcance nas redes sociais para expor o dono de seu ex-time, que assediou uma jogadora que fazia teste para jogar profissionalmente.

Nos tweets abaixo, o ciberatleta mostra, em ordem cronológica, como tudo aconteceu. Segundo ele, a jogadora — aqui chamada de Gabriela* para manter sua identidade resguardada —, se destacava no modo competitivo do Valorant, e ele a convidou para jogar em sua antiga equipe. Mas o então dono da organização, que pediu o número da jogadora para dar um possível feedback após o treino, aproveitou a situação para chamá-la de “gostosa” e disparar comentários sexuais.

André conta que, assim que a jogadora explicou o acontecido, ficou “extremamente envergonhado por tê-la chamado para o teste e genuinamente puto”. “Eu sugeri assumir a responsabilidade de expor o cara e ela curtiu a ideia. A única coisa que pensamos foi em esconder a identidade dela para evitar maiores transtornos, mas o dono da equipe fez questão de expor quem era, juntamente com prints falsos em suas redes sociais. Foi aí que ela teve que intervir e se identificar”, explica.

O caso foi o estopim para o ciberatleta, que decidiu se desligar da equipe. “Esse não é o tipo de ‘carreira’ que quero construir, onde associaria meu nome à organizações que possuem características ou agem de forma danosa à algum grupo social ou minoria. Seja por identidade de gênero, sexo, cor ou religião”, conta.

Após o episódio, Gabriela conseguiu vaga em um time misto de Valorant e solicitou uma ata notarial sobre o caso. “Hoje o único sentimento que ficou foi a gratidão, não só por ter — mesmo sem intenção — criado um canal com o nosso cenário sobre machismo e os efeitos que eles possuem na rotina de vocês, mas por ter exposto uma pessoa que nunca mais terá oportunidade de pisar do Esports, quiçá praticar mal à outras meninas nesse meio”, comenta André.

Júlia “Mayumi” Nakamura, jogadora profissional de League of Legends processou sua ex-equipe, INTZ, alegando que foi anunciada pelo clube apenas para ações publicitárias. Segundo apuração do site UOL, Mayumi acusa a equipe de assédio moral por tê-la afastado das atividades desportivas. Desde que foi anunciada em 2019, a ciberatleta não jogou uma partida oficial pelo clube, sendo substituída, eventualmente, por um outro jogador durante a competição do CBLoL (Campeonato Brasileiro de League of Legends).

A Anti-Defamation League revelou em pesquisa com mais de mil entrevistados que 74% já sofreram alguma forma de assédio em jogos online. Deste número, 40% das mulheres informaram que a agressão aconteceu por conta de seu gênero. Já um levantamento de dados feito pela Pesquisa Game Brasil (PGB), realizado pela Sioux Group, Blend New Research e Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), revelou que, de 3.251 pessoas, 53% são mulheres que possuem o hábito de jogar jogos digitais, sem distinção de estilo.

Elas fazem a diferença
Diante de tantas denúncias, mulheres se unem para montar projetos de inserção e incentivo tanto para a carreira profissional quanto para o entretenimento das streams. Sakura E-sports, por exemplo, “foi criado e com ele a esperança de muitas mulheres que almejavam por condições melhores de se estar dentro do cenário de e-sports”, e hoje se estabeleceram como a maior organização de incentivo à participação feminina no competitivo de esportes eletrônicos no Brasil.

Thayssa Gomes, jogadora casual de LoL há quatro anos, também decidiu ter uma iniciativa para unir amigas que gostam de jogar entre si. Inicialmente, a designer gráfica pensou em fazer um campeonato de cinco contra cinco, incluindo homens, mas veio a ideia de fazer só com mulheres. “A gente já sofre tanto jogando com gente aleatória, mesmo tendo três ou quatro meninas juntas. Então eu decidi unir as minhas amigas pra criarmos uma copinha, com premiações bem bobas mas significativas”, conta.

Thayssa ainda reforça que a ideia traz uma sensação de conforto para suas amigas, inclusive para ela mesma. “Eu diria que a maioria prefere jogar com quem já conhece ou sozinha por medo de interagir no chat e sofrer discurso de ódio. E isso é muito injusto porque eu tenho que silenciar os caras só pra não ler merda sobre mim”, desabafa.