Revista Sobrado
Foto: Micael Hocherman / Divulgação

Grandes nomes da MPB participam do álbum ‘Aldir Blanc Inédito’

“Ourives do Palavreado”. Era assim que o cantor dos mares, Dorival Caymmi, definia Aldir Blanc. Como bom ouvires, o compositor carioca, que morreu em maio deste ano, vítima da Covid-19, deixou várias pepitas de ouro em formato de canções. Algumas dessas joias estão expostas no álbum Aldir Blanc Inédito, em que grandes nomes da música brasileira, amigos e admiradores de Aldir interpretam 12 canções inéditas. O disco está disponível nas plataformas on-line desde o dia 24 de setembro. Agora em outubro, a edição física, em formato CD, será disponibilizada pela gravadora Biscoito Fino.

As joias guardadas por Aldir Blanc ganharam os arranjos de Cristóvão Bastos e produção musical de Jorge Helder. O disco, gravado de julho a agosto deste ano, seguindo todos os protocolos necessários, vai de João Bosco (com quem fez diversos clássicos desde que se conheceram, na virada para 1970), passa por Guinga, Moacyr Luz e Cristóvão Bastos, e chega a Alexandre Nero, último parceiro de Aldir.

A ideia do disco
Mary Lúcia de Sá Freire, viúva do compositor, foi a mentora do disca. A ideia surgiu quando voltava de uma viagem ao sul do Brasil, no início deste ano. Buscando rever sua nova jornada e honrar a memória de Aldir, ela reuniu manuscritos, letras e poesias inéditas, material que chegou até a gravadora carioca pelas mãos da cantora e compositora Ana de Hollanda e de Sônia Lobo, administradora da Nossa Música, braço editorial da Biscoito Fino.

Com contribuições de parceiros e amigos, Aldir Blanc Inédito foi tomando forma. Algumas músicas já estavam finalizadas, outras ganhariam melodias neste ano. O projeto foi gravado em tempo de celebrar os 75 anos do compositor e cronista, nascido em 2 de setembro de 1946.

João Bosco, o grande parceiro de Aldir Blanc, como quem compôs O Bêbado e a Equilibrista, uma das canções mais famosas da Música Popular Brasileira (MPB), não poderia ficar de fora. A primeira canção do disco, Agora eu Sou Diretoria, foi composta por eles. Um samba que retrata o clima da boemia carioca.

Somos uma parceria ajustada na paixão, na lealdade, e na completude. Nas nossas canções, a arquitetura de linguagem desconhece limites. Parceria é isso aí.

JOÃO BOSCO, compositor e cantor

“Somos uma parceria ajustada na paixão, na lealdade, e na completude. Nas nossas canções, a arquitetura de linguagem desconhece limites. Parceria é isso aí. Um percebendo o outro, e ambos cantando a nação. Um mineiro, barroco, o outro carioca, do Estácio, um engenheiro, o outros médico. Um flamenguista, o outro vascaíno. Um continua aqui, correndo atrás da bola, o outro, bem, o outro, agora, é diretoria”, diz João Bosco, em depoimento enviado à Sobrado.

Outras vozes
Além de voz, as canções inéditas de Aldir Blanc ganharam o brilho das vozes de Maria Bethânia, Moyseis Marques, Chico Buarque, Leila Pinheiro, Dori Caymmi, Ana de Hollanda, Joyce Moreno, Moacyr Luz, Clarisse Grova, Sueli Costa e  Alexandre Nero.

Em 2017, Aldir fez, em parceira com Moacyr Luz, a letra existencial e espiritualista de Palácio de Lágrimas pensando na voz de Maria Bethânia. A filha de Dona Canô registrou a música no novo projeto. Acompanhada pelo violão de 7 cordas de João Camarero e pela viola caipira de Paulo Dáfilin, Bethânia dá a interpretação exata às palavras de Aldir.

“Aldir, o Brasil sabe do grande compositor, grande cronista do sentimento da sua gente. Uma honra e grande alegria poder retribuir, demonstrar minha gratidão a um artista brasileiro que tanto me defendeu quando o Brasil me machucou. Linda música dele e do Moacyr que coube a minha voz. Viva Aldir e sua vida de luz!”, destaca Maria Bethânia.

Uma honra e grande alegria poder retribuir, demonstrar minha gratidão a um artista brasileiro que tanto me defendeu quando o Brasil me machucou.

MARIA BETHÂNIA, cantora

Moacyr Luz participa como intérprete do samba-canção Mulher Lunar, que ele compôs em parceria com Luiz Carlos da Vila e Aldir. Entre as que nunca tiveram registro oficial, essa era uma das favoritas do letrista, que se perguntava quem iria gravá-la um dia.

Acalento, cujo título é uma homenagem a Dorival e Nana Caymmi, faz alusão a Acalanto, clássico do compositor baiano, e ganhou melodia de Moacyr Luz e João Bosco, a quem a letra havia sido entregue inicialmente, resultando no bolero interpretado por Ana de Hollanda.

Os encantos da cidade de Armação de Búzios (RJ), inspiraram Aldir em vários poemas e letras criados em suas passagens por lá. No verão de 1993 escreveu Provavelmente em Búzios, gravada agora como samba canção por Dori Caymmi. A música é de Cristóvão Bastos, com quem Aldir fez Resposta ao Tempo, maior sucesso popular de Nana Caymmi.

“Aldir Blanc é uma das figuras mais importantes da minha geração. Suas letras e seu trabalho com João Bosco são de uma beleza, de uma estética, uma coisa impressionante”, pontua Dori Caymmi. “Meu pai tinha paixão, verdadeira paixão pelo De frente pro crime – ‘Tá lá o corpo estendido no chão, em vez de rosto uma foto de um gol…’. A minha era Bijuterias – ‘Minha pedra é ametista, minha cor o amarelo, mas sou sincero, necessito ir urgente ao dentista, tenho alma de artistas e tremores nas mãos…’. Isso é de uma beleza, só o Aldir mesmo. Que viva para sempre na memória tão parca do povo brasileiro”, completa.

Ainda inspirado em Armação de Búzios, Aldir criou também, para melodia de Guinga, Catavento e Girassol, que deu nome ao antológico disco de Leila Pinheiro (de 1996), com repertório composto pelos dois. Uma fita cassete preservada no acervo da cantora há mais de 25 anos guardava Navio Negreiro, que não entrou naquele álbum. Em Aldir Blanc Inédito, Leila se junta a Guinga na interpretação da música que retrata a história de um negro escravizado, repleta de referências culturais e que reforça a ainda hoje tão necessária luta contra o racismo.

Chico Burque, que construiu uma relação afetuosa com Aldir começou nos anos 70, não podia ficar de fora do disco. Ao saber do projeto de inéditas do letrista, escolheu Voo Cego, um soneto com o eu-lírico feminino musicado por Leandro Braga.

Chico grava ‘Voo Cego’, soneto com o eu-lírico feminino musicado por Leandro Braga | Foto: Gabriela Perez / Divulgação

Duas grandes compositoras brasileiras da geração dos festivais também participam do álbum. Em conversa com Mary, Sueli Costa lembrou-se de Ator de Pantomima, de 1978, única das cinco músicas compostas com Aldir jamais registrada em disco. Coube a ela interpretar a canção repleta de metáforas que aludem aos suplícios dos porões da ditadura militar. Já Joyce Moreno, que apesar de ter convivido por décadas em batalhas ao lado de Aldir, como a luta por direitos autorais mais justos, nunca foram parceiros. Durante a preparação de Aldir Blanc Inédito, Joyce musicou uma poesia de Aldir, publicada em 1986 no jornal Tribuna da Imprensa. Daí nasceu Aqui, Daqui, uma exaltação ao poder do feminino que dialoga com uma parte importante da obra de Joyce.

Clarisse Grova, uma das cantoras do coração de Aldir, que gravou um disco dedicado às parcerias dele e de Cristóvão Bastos, interpreta Outro Último Desejo, de 2012. Moyseis Marques registrou Baião da Muda, canção que compôs com Aldir. O álbum termina com Virulência, composta a partir de um mosaico de ideias que Aldir compartilhava com Alexandre Nero, que pretendia montar um espetáculo teatral com obras do compositor carioca. A letra retrata as mazelas dos nossos tempos, que tanto afligiam o compositor: “Que falta me faz meus pais/Que falta nos faz a paz/Que falta nos faz um país”.

“Meu primeiro contato foi com a Mary, para conhecer o Aldir. Eu pensava em fazer um espetáculo de teatro em cima da obra literária e das músicas dele, mas a partir daí o Aldir passou a me mandar textos e eu a falar sobre o álbum que estava gravando. Sugeri fazermos uma parceria e ele prontamente topou”, lembra Alexandre Nero.

“Aldir trabalhou na letra e me enviou. Quando recebi, achei que a atmosfera da letra não encaixava com a do disco, então perguntei se seria possível a gente tentar adaptá-la. Ele gentilmente me disse: ‘Vamos mexer na letra, fique à vontade, faça o que quiser’. Propus que ele me enviasse outros textos, frases, guardadas e também trechos dos e-mails que a gente trocava”, acrescenta.

E, finaliza: “Cada e-mail do Aldir era uma forma de poesia. Só sabia escrever assim. Pura poesia. Em cima de todos esses elementos começamos a mexer na letra original, mas acabou que o Aldir não a viu finalizada. Com a sua morte e o meu envolvimento na composição, fiquei cheio de incertezas sobre letra e melodia, então convidei o Antônio Saraiva para me ajudar a terminar Virulência”.

Enquanto a versão física do disco Aldir Blanc Inédito, que terá a capa assinada pelo designer gráfico e ilustrador Elifas Andreato, não chega ás lojas, você poder se deslumbrar com as joias de Aldir nas plataformas digitais.