Revista Sobrado

Manuela Marques Tchoe: “Encontrei uma forma de resgatar a Bahia que eu não vivi”

Era 2 de fevereiro, um dia chuvoso e atípico na cidade onde todos os anos milhares de pessoas se dirigem ao mar do Rio Vermelho em saudação ao Dia de Iemanjá. O clima não foi o único fator que alterou a dinâmica desse que é um dos momentos mais aguardados no calendário das festas populares de Salvador, as restrições impostas pelos órgãos municipais em detrimento da pandemia do coronavírus foram o principal motivo para tal mudança.

Essa data também é uma das mais referenciadas nas obras da escritora Manuela Marques Tchoe, baiana e residente na Alemanha desde 2005, ela traz à tona temas acerca de interculturalidades e valorização da cultura afro-brasileira em paralelo à diversidade de cenários das suas narrativas. No livro Encontro de Marés, publicado em 2019 pela editora Pendragon, a presença de Iemanjá permeia a vida de personagens que encontram nela um refúgio para lidar com situações de violência explícita, conflitos internos e externos, responder questionamentos de toda uma vida e permitir a união de aspectos completamente distintos nas vidas de cada uma delas.

Motivada pela oportunidade de realizar intercâmbio para estudar em uma escola técnica em Bremen no norte da Alemanha, Manuela então com 22 anos seguiu para esse destino e ficou lá durante um período de 6 meses, regressando ao Brasil posteriormente para concluir sua formação. Sobre isso ela conta: “Comecei a trabalhar, mas ainda tinha esse objetivo de sair do Brasil por um tempo”. “Em 2001 fui presidente do comitê local de Salvador da Aiesec, organização que me possibilitou encontrar um intercâmbio aqui em Munique na sede local da empresa e estou nela até hoje”. Ao longo de 16 anos como residente na capital da Baviera ela conta que tanto teve oportunidades de realizar diversas viagens como também de encontrar um motivo para decidir se estabelecer de maneira permanente, “nesse meio tempo eu conheci o meu marido, um rapaz chamado Jin-Ha que nasceu na Alemanha, mas é de descendência Coreana. Por isso resolvi ficar”.

Referências literárias
Uma de suas principais referências nacionais é Jorge Amado, ela conta que gosta de como o autor descreve a Bahia com uma forma sarcástica que evidencia as belezas mas não deixa de dar destaque aos problemas sociais existentes. “Esse estilo dele assim como o de João Ubaldo Ribeiro é leve, às vezes você ri, às vezes você chora… tem certos autores que se enveredam por uma veia muito tristonha e esquecem de trazer o outro lado. Acho que o Povo Brasileiro é muito marcado pelos contrastes de luz e escuridão, existem sim as mazelas, mas também existe a alegria que motiva e encoraja essas pessoas”.

Já no âmbito de literatura estrangeira a autora conta que uma das obras mais marcantes foi o livro de Peter Mayle, Um Ano na Provença. “Nele conhecemos as histórias de um homem inglês que vai passar um ano no sul da França e com todos os perrengues, os choques culturais e sobre o que aprendeu nesse período”. Ainda no aspecto de diferenças culturais Manuela nos conta que se identifica com obras como essa pelo fato de “muitos desses autores saem da zona de conforto deles, dos países em que vivem na cara e na coragem e vão ver no que pode dar, é algo muito comum na literatura da Inglaterra já que existem mais possibilidades de viajar pela facilidade de transitar devido à proximidade de muitos países na Europa então o que não falta são histórias engraçadas cheias de micos culturais”.

Temas difíceis
Questões sociais no Brasil são tópicos delicados e que requerem atenção e pesquisas extensas. Ao decidir abordar a prostituição infantil em seu livro Manuela relata que o fator decisivo para essa escolha foi a escassa abordagem que ele tem quando comparado com outros temas como a pobreza e tráfico de drogas amplamente explorados em narrativas literárias e cinematográficas no Brasil.

Sem negar a relevância e necessidade que esses temas ainda possuem na sociedade brasileira ela conta que em um primeiro momento quis contar a história de uma mulher brasileira que foi adotada e veio parar na Alemanha, mas retornaria ao Brasil em um dado momento. “Com isso comecei a pensar: Por que essa pessoa saiu do Brasil? Qual seria o seu trauma? Por que ela não quer retornar de jeito nenhum?”, ainda nesse aspecto acrescenta: “Acho que tinha lido uma reportagem sobre prostituição na Colômbia onde mulheres eram raptadas e ficavam presas em lugares sem poder sair, isso me deu um estalo. Peraí, no Nordeste tem muita prostituição infantil!”

Com isso em mente, Manuela se debruçou sobre pesquisas a respeito do tema e se deparou com algumas reportagens pontuais livres de maior escopo referencial até encontrar um livro sobre prostituição infantil na Índia. “Era um livro muito difícil, mas me deu a noção de que aquilo era algo que com certeza também existia no Nordeste e não havia discussão sobre isso, então por que não abordar esse tema? Senti que era algo que precisava ser trazido à tona”.

Com cenas de crimes descritos de maneira crua e sem pudores alguns capítulos podem ativar gatilhos mentais, gerar revolta ou espanto nos leitores. Sobre esse tópico a autora afirma que foi uma decisão consciente pelo entendimento da necessidade de gerar um choque que alerte para a relevância que esse tema precisa adquirir nas discussões contemporâneas. “Estava claro na minha cabeça que eu não queria tampar o sol com uma peneira. Penso que apenas mencionar o crime cometido não traria a mesma força de quando uma dessas cenas é colocada de forma explícita”. Ainda sobre essa decisão ela finaliza: “Não sei se foi uma decisão certa ou errada, mas como autora sinto que fiz a coisa certa”. 

Religiosidade
A evidenciação da mitologia Iorubá e as constantes reflexões sobre religiosidade afro-brasileira são outra característica pujante nas obras de Manuela. Desde o seu primeiro livro Ventos Nômades também publicado pela mesma editora em 2018, é possível notar como alguns contos retratam o Candomblé de forma a apresentar os conceitos da religião de forma didática e desmistificando estereótipos que estigmatizam até hoje. “Quando comecei a escrever esse livro decidi pesquisar sobre a Bahia, falar sobre suas características mais marcantes e também das pessoas que foram responsáveis por difundir tudo que conhecemos hoje. O Candomblé é grande parte disso e acabei encontrando uma forma de resgatar a Bahia que não tive a chance de viver, que não me dispus a conhecer enquanto ainda estava aí”.

Além de referencial bibliográfico e outras formas de pesquisa, o contato com uma amiga de escola Umbandista também ajudaram Manuela a ter um direcionamento nesse novo universo. “Sei que Umbanda e Candomblé são religiões distintas que possuem vários pontos em comum, ela me ajudou a ter um direcionamento inicial e o complemento partiu de conversas que tive com outras pessoas, de livros que li e da minha vontade genuína de aprender o que eram todos aqueles elementos”.

Raça e lugar de fala
“Outra coisa que sempre me questionam bastante é o fato de por que eu sendo uma mulher branca resolvi falar sobre prostituição infantil, tendo personagens negras e abordando o Candomblé. Sempre respondo da mesma forma: Quis poder mostrar que na minha terra existe uma parcela enorme da população que não é ouvida. Acho que quando amamos o lugar de onde viemos precisamos olhar não apenas para a nossa casinha, mas sair dela por que no final das contas também interagimos com outras tantas e diversas pessoas, outras tantas e diversas realidades. Precisei sair do Brasil para enxergar a quantidade de privilégios que tive ao longo da vida”.

Novos projetos
Dentre os novos projetos da autora estão um conto intitulado Dia de Folga, disponível em formato digital e ela também revelou em primeira mão para a Sobrado sobre o seu novo romance intitulado De Vista para a Mesquita, com previsão de lançamento para maio ou junho ainda deste ano. “É uma expansão do conto Tempestade de Areia que está presente no meu primeiro livro. Nele também trago a mesma abordagem de falar sobre temas culturais, porém com adesão da quis abordar os conflitos de cultura, religião e fé de uma maneira bastante respeitosa”.

Há ainda um livro de crônicas escrito em parceria com uma amiga e a ser lançado pela editora Dialética que se chamará Comida de Gringo e deve ser publicado ainda no primeiro semestre de 2021, “são relatos de viagem com um foco mais gastronômico”.

Apesar de existirem outros projetos em mente, Manuela conta que em razão do confinamento restrito ao qual a população Alemã foi submetida mais uma vez outras demandas requerem mais de sua atenção nesse momento, especialmente o seu filho Eduardo. “Eu adoraria fazer dinheiro com literatura, porém acredito que a mensuração do sucesso não precisa ser feita apenas pelo parâmetro financeiro. Se fosse só pelo dinheiro eu nem faria”.