Revista Sobrado
Foto: Divulgação

O adeus a Genival Lacerda

No dia 7 de janeiro, não ficaram órfãos apenas seus parceiros de dominó, da Av. Boa Viagem, mas o forró e toda a cultura nordestina. A Covid-19, que já matou dezenas de artistas brasileiros, silenciou Genival Lacerda, o último nome da segunda geração do forró, que conquistou o Brasil com seu bom humor e tornou-se um dos maiores símbolos da cultura nordestina.

“Seu Vavá” era um dos apelidos do cantor, que nasceu em Campinha Grande (PB) e morava em Recife, para onde se mudou em 1953. Foi na capital pernambucana que gravou seu primeiro disco em 1956, um compacto duplo com Coco de 56, escrito por ele e João Vicente, e o xaxado Dance o Xaxado, feito por ele com Manoel Avelino. A partir daí, foi conquistando um espaço regional como cantor e radialista.

Em 1964, no embalo do sucesso da música nordestina no Sudeste, conquistado por Luiz Gonzaga (1912-1989) na década anterior, mudou-se para o Rio de Janeiro, incentivado pelo amigo e concunhado Jackson do Pandeiro (1919-1982). Mas a consagração nacional só veio 1975, com a música Severina Xique Xique, composta em parceria com o também paraibano João Gonçalves. Aqui tem Catimberê, o álbum que lançou o hit, vendeu 800 mil cópias. A vendagem expressiva de disco garantiu a presença constante de Genival no rádio e na televisão. Tornou-se assim, um personagem fundamental na disseminação do forró por todo o Brasil nas décadas de 1970 e 1980.

Severina Xique Xique abriu uma nova etapa na carreira do “Rei da Muganga”, que se apega às letras de “duplo sentido”, mas sem se afastar do ritmo original nordestino. A obra de Genival sempre girou em torno dos cocos, xaxados e baiões, entre outros gêneros afins.

Para além do duplo sentido
O talento de Genival Lacerda está para além das músicas de duplo sentido. Engana-se quem o classifica como o “rei do duplo sentido”, até porque esse movimento vem desde a década de 1950, tendo como precursores Luiz Gonzaga e Zé Dantas (1921-1962), autores de sucessos “maliciosos” como Vem Morena, Cintura Fina e O Xote das Meninas. Na década de 1960, o movimento teve a cantora pernambucana Marinês (1935-2007) como maior expressão. Só na década de 1970, Genival Lacerda passar ser o ícone desse estilo de forró.

Para o jornalista e critico musical José Teles, Genival estourou ajudado pela conjuntura política da época: ditadura militar. Ele ressalta que a partir do AI-5, em 1968, a censura partiu com para cima das canções enquadradas na sigla MPB e não perdia tempo com quem cantava em inglês, e nem com os forrozeiros que começaram a fazer sucesso com músicas de duplo sentido, mas quase sempre empregando regionalismos que os censores desconheciam.

Mas não podemos deixar de pontuar que este chamado “forró de duplo sentido” é recheado de conteúdo muitas vezes machistas. Vertente que Genival Lacerda explorou a exaustão, o que ajudou a apagar seus belos trabalhos que não se enquadravam nesse gênero.

Sem nenhuma dúvida, Genival Lacerda foi um dos intérpretes mais versátil da música nordestina. Gravou sambas, frevos e choros. Em sua discografia, consta um disco todo dedicado a Jackson do Pandeiro – Genival Lacerda Canta Jackson do Pandeiro, lançado em 1998. No disco Genival Lacerda Canta o Centenário de Luiz Gonzaga, lançado em 2011, “Seu Vavá” revisa a obra do “Rei do Baião” e conta com a participação de Fagner, Elba Ramalho e Chico César.

A versatilidade de Genival Lacerda também ocupou as telas da TV com um programa de humor. Ele contracenou com o ator paraense Lúcio Mauro (1927-2019) em um programa de comédia, que deu origem ao LP As Trapalhadas de Cazuza e seu Barbalho, de 1970. Lúcio Mauro chamava Genival Lacerda de “o geniozinho da alegria da música nordestina, um comediante sem professor”.

Por tudo isso, reforçamos. Chamá-lo de “rei do duplo sentido” é pouco diante de sua obra.

Em defesa do autêntico forró
Caminhando para os 90 anos de idade, o “Rei da Munganga” travava junto com os outros artistas nordestinos uma forte luta em defesa do autêntico forró. Quando eu o entrevistei em maio em 2017, para uma reportagem do jornal A TARDE, ele tinha acabado de participar do Encontro Nacional do Forró, em Cruz das Almas, cidade do Recôncavo Baiano.

“Temos uma preocupação com a descaracterização das festas de São João. As programações estão cheias de cantores que não têm relação nenhuma com a nossa tradição. Não pode acontecer o que vem acontecendo. Os cantores de forró tradicional, xote e baião ficam fora da grade de atrações. Essa responsabilidade é das autoridades públicas, dos prefeitos e secretários de cultura”, questionou à época.

Essa batalha ele seguiu até o final de sua vida. Em 2020, devido a pandemia, não tivemos os tradicionais festejos juninos que lotam as praças das cidades nordestinas. Genival se despediu dos palcos no carnaval do ano passado, quando se apresentou no Recife, ao lado do seu filho João Lacerda, com quem dividia os palcos nos últimos tempos.

“É muito bom fazer show ao lado do meu filho, que está sempre ao meu lado todos os dias. João cuida da produção do meu trabalho, compõe e canta muito bem. É uma voz a serviço da renovação do autêntico forró”, disse na conversa que tivemos.

João Lacerda destacou a emoção de cantar ao lado do pai. “Para mim é sempre uma forte emoção cantar ao lado de Genival Lacerda, que é um ícone da música brasileira, do forró, grande representante da música nordestina. Sinto-me feliz em poder cantar ao seu lado e produzir seu trabalho”.

Esse encontro no palco entre pai e filho não mais acontecerá, mas sua obra segue viva. Desde dezembro do ano passado, está sendo lançado nas redes sociais e nas plataformas digitais de músicas faixas do DVD Minha Estrada, com a participação de artistas nordestinos, que foi gravado no Teatro Boa Vista, em agosto 2019. Ao todo, são 15 faixas, com um lançamento por mês.

Genival morreu, mas nos deixou uma obra associada à alegria. Por isso, era amado, tinha seus shows sempre lotados e era um dos maiores expoentes do autêntico forró nordestino.

Descanse em paz, Genival (1931-1921)!