Revista Sobrado

O digital que reinventa o ensino

A quarentena obrigatória pegou todo mundo de surpresa. Os que imaginavam que iriamos ter essas restrições por conta de um movimento mundial de isolamento, certamente não apostavam que iriamos passar tanto tempo dentro de casa. O ensino e a produção cultural foram interrompidos de imediato, sem previsão de retorno dentro de um futuro próximo, já que as aglomerações elevem a taxa de infectados, conforme apontam os estudos da Organização Mundial de Saúde (OMS).

De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a previsão é de que a economia brasileira encolha 5,2% em 2020. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que o número de desempregados aumentou no país, atingindo a taxa de 12,2% no primeiro trimestre deste ano. São dados nada motivadores, que se unem à triste estatística do número de mortes e infectados pela COVID-19. Já são mais de 110 mil mortes e mais de 3 milhões de infectados no Brasil, conforme dados do Ministério da Saúde.

Em meio a tudo isso, muitos profissionais tiveram que se reinventar para que a economia não parasse, não apenas no âmbito geral, mas na sua realidade. Afinal, as faturas de água, energia e telefone não pararam de chegar. Uma nova rotina de trabalho foi criada dentro de casa. A criatividade foi fundamental para transportar para as plataformas on-line, aquilo que se fazia em atividades presenciais.

Comunicação humanizada
Mariana Freire dos Santos, atriz, idealizadora do projeto A Arte de Falar e especialista em desenvolvimento lúdico-criativo de pessoas, aplicava um curso presencial antes da pandemia. Motivada por um ex-aluno, criou o Quarentena Criativa. “Depois que ele falou comigo, pensei por cinco dias. Aí peguei o modelo do curso presencial e pensei em adaptar para o Instagram. Daí, convidei os especialistas e fomos formatando as atividades para serem realizadas nos recursos da rede social”, lembra.

“A ideia era continuar ofertando os serviços do projeto e auxiliar as pessoas a usarem vídeo e se comunicarem virtualmente, pois muita gente não sabia o que fazer”, diz. Mariana explica que “tudo no projeto envolve despertar e desenvolver a Comunicação Humanizada, Criativa e Genuína. Não é terapia, mas é terapêutico, pois não separamos a Comunicação da vida e das questões emocionais de cada pessoa”, assegura.

Mariana Freire disse ter sentido receio no início, pois “não sabia como seria, sempre fiz os trabalhos presenciais, mas está funcionando muito bem. As pessoas que participam estão lançando seus projetos nas plataformas virtuais e esse resultado é motivador”, complementa.

O Quarentena Criativa é realizado em 30 dias de atividades, dividas em três ciclos. Os dois primeiros ciclos contêm nove atividades, com o prazo de até 24h para serem executadas, com pausa de um dia. Já o último ciclo contém cinco atividades co-criadas pelos especialistas. No total, são oito especialistas que avaliam os conteúdos e conversam individualmente como cada participante. Depois, um bate papo é aberto no grupo do WhatsApp com todos.

Professores do projeto Quarentena Criativa | Foto: Divulgação

Todas as atividades são práticas. O resultado é publicado em vídeos e fotos dentro do perfil da rede social de cada participante. Além de Mariana Freira, que ministra o tema das apresentações criativas, a equipe de especialistas é formada por Raoni Pereira (Ser Quem Se É), Gisele Nino (Elementos da Fala), Sandra Simões (Canto Natural), Leandro Villa (Autoexpressividade), Lua Novaes (Improvisa na Foto), Karina Allatta (Maquiagem Artística) e Lucianna Ávila (Storytelling).

Quanto ao resultado de se fazer atividades que despertam o olhar para si, Mariana Freire avalia que são positivos. “Quando as pessoas estão no processo, elas já me dizem que despertam várias potencialidades na comunicação, projetos de vidas, acessam memórias, emoções e cresças limitantes que estavam escondidas. Entendem a importância de cuidar-se, de movimentar a energia criativa. De maneira geral, quem consegue chegar até o fim, se nutri com os benefícios das atividades e os resultados são sempre positivos”, ressalta a atriz.

Ballet on-line
A pandemia também exigiu criatividade por parte da fisioterapeuta e professora de ballet, Juliana Stagliorio, que precisou suspender as aulas presenciais, assim como, cancelou quatro cursos e palestras que realizaria fora de Salvador. Criadora do método de abordagem no ensino de ballet clássico Lateral Box Organization (LBO), ela ministrava um curso presencial para a formação de professores no método LBO, divididos em dois módulos, com duração 36h cada.

O primeiro módulo, ministrado no início de 2020, foi todo hospedado em um aplicativo do método LBO. Estratégia já estabelecida por Juliana, que enxergou uma demanda grande de pessoas de fora de Salvador, que buscam o curso. Então, para otimizar tempo, gasto e ser mais acessível, ela desenvolveu um aplicativo com aulas teóricas, vídeos e chat para dúvidas do primeiro módulo. Com isso, já existia uma virtualização no ensino do método, pensado e preparado pela motivação da alta procura em alunos de fora da cidade, e não pela situação da pandemia da COVID-19.

Por conta do período de isolamento social, a fisioterapeuta adaptou o conteúdo do curso presencial e criou mini workshops. “Fiz uma reestruturação. O workshop tem 4 horas de duração, já que no ambiente digital, não conseguimos prender a atenção por muito tempo”. Juliana revelou à Sobrado que está avaliando criar um módulo extra, todo online. “70% das pessoas que estão fazendo os workshops não são de Salvador. Elas estão solicitando o curso de formação on-line. Estou analisando e reestruturando com cuidado para não perder a qualidade técnica”, conta.

Alunos do workshop de Juliana Stagliorio | Foto: Divulgação

Juliana Stagliorio criou o workshop Convidando as Emoções para Dançar, que é ministrado por sua irmã, a psicóloga Luciana Stagliorio. A ideia surgiu depois de uma conversa na rede de professores que usam o método LBO, que avaliaram a importância de criar uma forma de motivar as crianças e adolescentes nesse período de isolamento social.

Os workshops têm reunido um grande público, de todas as faixas etárias, que classificam a iniciativa de Juliana como positiva. A aluna Amanda Saad, professora de ballet, que está passando pela última fase desse processo, a habilitação, diz que o curso a ajudou ocupar o tempo com uma atividade produtiva. “O período de isolamento deixa qualquer pessoa sem direcionamento, sentimento de incapacidade. Com os cursos do LBO, eu consegui ter algo que me agregasse valores, ocupasse meu tempo com algo construtivo, dedicando esse tempo para meus estudos e engrandecimento profissional e emocional”, avalia.

Sobre a última etapa do curso que seria presencial e está sendo realizada à distância, Amanda relata que está sendo desafiador. “É um desafiado. É bastante complicado finalizar uma formação à distância, para mim é a primeira vez. Em contrapartida, como estou afastada de algumas escolas devido à pandemia, estou com mais tempo de dedicação. Estou conseguindo fazer aulas on-line com a professora Juliana duas vezes por semana. Isso é raro para mim, pois moro em Aracaju (SE). Eu ia para aula presencial apenas uma vez por mês. Tudo por pior que seja, sempre terá o lado bom. A quarentena me deu essa oportunidade maravilhosa”, completa.

A aluna Cynthia Ramos, que já está habilitada e é professora, bailarina e coreógrafa, também diz ter se organizado e aproveitada melhor o tempo no período de isolamento social. “Eu nunca fiz tanto curso na minha vida. Cursos que eu sempre tive vontade, mas, ficava inviável a logística. Ampliei meus conhecimentos como aluna e reformulei todo meu conteúdo de aula para o próximo ano como professora. Mesmo sendo um período muito triste e assustador que estamos vivendo, eu consegui tirar um lado positivo dessa história toda”, pontua.

Aromaterapia
Já doula e aromaterapeuta Laura Daltro precisou adaptar para as plataformas digitais o curso que ministra sobre manuseio com ervas, que é um trabalho voltado ao autocuidado. Pelo fato do curso ter como premissa o despertar de outros sentidos, como o olfato, a visão e o tato, o desafio foi ainda maior. “No segundo mês da quarentena resolvi fazer a experiência do curso à distância para saber se valeria a pena. Tinha receio de a essência ser abalada por conta da ausência de contato físico. Uma turma com 15 pessoas foi formada, enviei um kit com um yombá e um blend de ervas para cada pessoa que se inscreveu. Deu muito certo. Hoje estou na sexta turma. Tive em média 22 a 25 alunos por turma. As inscrições para a sétima turma estão abertas”, anuncia.

A aromaterapeuta Laura Daltro | Foto: Reprodução Instagram / @netadefrancisca

Laura relata que presencialmente o curso era mensal e acontecia na casa dela, com duração de um dia. No novo formato, a periodicidade continua mensal, mas foi estabelecida uma carga horária de 8h, que é dividida em dois dias. O curso é todo ministrado apenas por ela. “Parte do conteúdo do curso é bem teórico. Encaminho uma apostila e os alunos acompanham. Esse formato possibilita que pessoas de diferentes partes do Brasil participe. Já tive aluno do Norte, Nordeste e Sudeste. Temos um grupo de WhatsApp onde cerca de 70 alunos trocam experiências diárias”, conta Lauro.

Quanto as dificuldades, Laura diz que alguns alunos têm problemas técnicos com a internet. “Fora isso não encontrei outros problemas. Quando isso acontece, eu reponho a aula”, explica..

Uma das alunas do curso de ervaria é Indira Ramos, nutricionista e pesquisadora, que contatou Laura pelas redes sociais para adquirir um perfume. Com o passar do tempo, acompanhando as publicações, despertou o desejo de fazer o curso. “Tive a possibilidade de reforçar ainda mais a minha investigação e o meu lugar enquanto aprendiz das folhas. Dessa energia das folhas e do poder de cura, de equilíbrio. Ter passado por essa experiência do curso está costurado com meu processo de investigar a minha ancestralidade afro-indígena e de me conectar com esse movimento, a partir do reconhecimento dessas práticas das minhas mais Velhas que foram esquecidas com o passar do tempo”, ressalta Indira.

Viver esse período remoto faz o autocuidado ficar despercebido, reservar um tempo para cuidar de si é fundamental, defende Indira. “Deixo o fim de semana reservado para praticar o que eu aprendi no curso. Aliás, provoco sempre uma ritualização nos meus momentos, seja para fazer um incenso, um chá, colher as plantas, tomar um banho de folhas. Isso funciona como uma meditação na medida de como vou fazendo. Hoje me vejo como aprendiz de muita coisa da vida, aquela que se forja ancestral nesse tempo, é como eu posso contribuir para que essa sabedoria não morra. É uma forma de preservação e manutenção do nosso povo preto e indígena”, conclui.