Revista Sobrado
Foto: Evgen Rom / Pixabay

Os novos desdobramentos da Lei Aldir Blanc

“Fomos os primeiros a parar e seremos os últimos a retornar”. Essa foi a frase que nós, jornalista da Sobrado, mais ouvimos dos profissionais da cultura, quando com eles conversamos nesse tempo de pandemia da covid-19.

A crise sanitária atingiu em cheio o setor cultural que tem suas atividades ligadas a espaços que contam com a presença física das pessoas. Teatros, museus, salas de espetáculos, casas de shows, galerias e demais espaços culturais tiveram que fechar as portas, devido ao isolamento social exigido para combater a propagação do vírus. No decorrer deste tempo, tiveram que se adaptar aos meios digitais, com realizações de eventos on-line, como forma para seguir produzindo cultura. Afinal, a arte não pode parar.

Mas essa caminhada tem sido difícil. Aliás, falando de cultura tudo é mais difícil, mas o que estava ruim ficou pior.   A pandemia impactou toda a cadeia criativa, fragilizando o processo de criação e os profissionais da cultura, que já vinham sofrendo com o desmonte de políticas públicas, por todas as esferas de poder, principalmente pelo governo federal.

No inicio do governo Bolsonaro, o Ministério da Cultura foi extinto e transformado em Secretaria Especial de Cultura, órgão que viveu um grande período de instabilidade, com alta rotatividade de seus gestores e até o momento sem um plano nacional de políticas culturais. A tudo isso, soma-se os cortes no orçamento e o contingenciamento dos recursos do Fundo Nacional de Cultura, o que impede a aplicação de políticas culturais de fomento.

“Em meio a este cenário, nos restou ir à luta. Não podíamos ficar de braços cruzados assistindo a imobilidade dos governos, que não apresentaram nenhuma política voltada ao setor cultural. Foi fruto da nossa mobilização que nasceu a Lei Aldir Blanc”, explica Jorge Breogan, ativista cultural de São Paulo (SP) e membro do Coletivo de Artistas Socialistas (CAS), que integra o movimento “Sou 1 de 11 Milhões”, uma rede de ativismo que reúne trabalhadores do setor cultural de todo o Brasil.

Aplicação da lei
A Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural, como ficou denominada a Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020, foi aprovada com a finalidade de atender ao setor cultural do Brasil, como de responder aos efeitos que o setor sofreu com a pandemia. Foram destinados R$3 bilhões, oriundos do Fundo Nacional de Cultura, enviado de forma descentralizada e dividido na proporção: 50% para os estados e o Distrito Federal e 50% direto para os municípios. A lei homenageia o músico Aldir Blanc, um dos primeiros artistas mortos em razão da covid-19.

“A aprovação da Lei foi uma vitória. Os trabalhadores da cultura estavam desamparados. Sem condições de garantir comida, alimentação, um item básico de sobrevivência. A batalha seguinte foi acompanhar a aplicação da Lei, pois sabemos os percursos burocráticos que íamos enfrentar e enfrentamos”, ressalta Breogan.

Foto: Bonnie Taylor, EdD / Pixabay

Os artigos da Lei Aldir Blanc determinam que os recursos devam ser utilizados em ações emergenciais de apoio ao setor cultural por meio de:

I – renda emergencial mensal aos trabalhadores da cultura;

II – subsídios mensais para manutenção de espaços artísticos e culturais, micro e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as suas atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social; e

III – editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural e outros instrumentos voltados à manutenção de agentes, espaços, iniciativas, cursos, produções, desenvolvimento de atividades de economia criativa e economia solidária, produções audiovisuais, manifestações culturais, bem como para a realização de atividades artísticas que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meios de redes sociais e outras plataformas digitais.

Seguindo estes parâmetros, os profissionais da cultura elaboraram projetos para os editais divulgados pelos governos estaduais e municipais. A lei determinava que todos os projetos aprovados deveriam ser executados até o dia 10 abril de 2021. Este prazo passou a ser questionado.

“A pandemia seguiu avançando, o que dificultou a execução dos projetos. Os prazos operacionais foram curtos demais. Sem contar que teve uma demora nas aprovações dos projetos. As secretarias estaduais e municipais se quer tinham um cadastro dos profissionais da cultura. Foi preciso definir um prazo de cadastro, depois outro para entrega e avaliação dos projetos, e outro para execução. Enquanto isso, seguíamos sem ajuda financeira nenhuma”, diz Mestre Pingo, que executa o projeto de capoeira Semear Angoleiros, no bairro de Itinga, em Lauro de Freitas, cidade da Região Metropolitana de Salvador, contemplado pelo  prêmio Mestres e Mestras da Cultura Popular, através do Centro de Culturas Populares e Identitárias da Bahia.

Os empecilhos burocráticos foram ganhando força. A Lei Aldir Blanc foi aprovada em agosto, chegamos a janeiro de 2021 com R$1,5 milhão disponível ainda nas contas bancárias das prefeituras e dos governos estaduais. Os profissionais da cultura iniciaram um novo processo de mobilização nacional exigindo a prorrogação do prazo das execuções dos projetos e a continuidade do pagamento da renda emergencial no valor de R$600.

Foram organizados dias de protestos nas redes sociais, webconferências e uma audiência pública na Câmara Federal.

Prorrogação
“Mais uma vez a luta dos artistas e dos demais trabalhadores da cultura foi fundamental para impor uma derrota a este governo que age com uma política genocida, frente à pandemia, seja na questão sanitária seja na cultura. Nós passamos por um momento de turbulência, de vulnerabilidade, com acesso limitado aos mecanismos convencionais de proteção social. A área da cultura foi completamente abandonada”, questiona Wellingta Macedo, atriz e apresentadora de Belém (PA).

“O setor cultural vem enfrentando crises há anos. Mas esta é uma crise distinta, com efeitos que tendem a ser de longa duração. Leis de incentivos como a Aldir Blanc são necessárias”, completa.

Na madrugada da última quarta-feira, 21, a Câmara Federal aprovou, em votação simbólica, o Projeto de Lei 795/21 que prorroga os efeitos da Lei Aldir Blanc e permite que estados e municípios usem o saldo remanescente do dinheiro transferido para ações emergenciais de renda e projetos culturais. Dos R$3 bilhões aprovados em agosto do ano passado, ainda estão disponíveis R$773,9 milhões. Esse dinheiro é para ajudar trabalhadores e também para manter espaços culturais. O saldo remanescente no caixa dos entes poderá ser usado até o fim de 2021.

Os estados e municípios que ainda tiverem dinheiro remanescente podem seguir com a renda auxílio de R$600 mensais aos trabalhadores sem vínculo formal da área da cultura. Bem como, ajudar na manutenção dos espaços artísticos, e de micro e pequenas empresas que, por conta do isolamento social, tiveram que interromper seu funcionamento. Esse subsídio pode variar entre R$3 mil e R$10 mil.

O saldo remanescente deve ser usado até 31 de dezembro de 2021. O que não for usado em 2021 deverá ser devolvido pelos entes federativos à União até 10 de janeiro de 2022. Já a prestação de contas deverá ocorrer até 30 de junho de 2022 ou 31 de dezembro de 2022, conforme as despesas realizadas.

“A prorrogação é fundamental, muito importante, sobretudo para os artistas que se encontram hoje na periferia das grandes cidades, artistas negros e periféricos. Ao mesmo tempo em que comemoramos, seguimos dizendo que esses valores ainda são insuficientes, pois nem todos os artistas e trabalhadores foram contemplados com a Lei Aldir Blanc. Muitos projetos ficaram de fora. Por isso, reivindicamos a continuidade e abrangência da Lei, com destinação de mais recursos. A cultura tem cumprindo um papel de extrema importância em meio ao caos causado pela pandemia e pela política genocida de Bolsonaro. A arte tem sido uma válvula de escape, um alimento para a alma, um ponto de esperança. A arte, a cultura e seus profissionais precisam ser valorizados”, frisa Wellingta Macedo.

Lei Aldir Blanc 2
Sobre a ampliação e manutenção da Lei Aldir Blanc, a Sobrado conversou com a presidente da Comissão de Cultura da Câmara Federal, a deputada baiana Alice Portugal (PCdoB), que acredita que o ideal seria uma espécie de “Lei Aldir Blanc 2”, para garantir dignidade aos artistas brasileiros.

“Na comissão, surgiu uma reivindicação do segmento de que, como a pandemia persiste, deve ser proposta uma nova lei de emergência cultural. Porque a prorrogação [da lei atual] se dá com recursos anteriores. Temos que aprovar um novo texto baseado no novo orçamento”, explica.

A deputada baiana revelou que também há uma discussão na Comissão de Cultura para a criação de um projeto de lei que garanta aos agentes da cultura um auxílio em qualquer situação de calamidade pública. A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) está trabalhando no texto.

Quantos aos números da atual Lei Aldir Blanc, o relatório lido na votação da prorrogação dos efeitos da lei, elaborado pelo deputado Tadeu Alencar (PSB-PE), informa que foram contemplados 40 mil projetos de editais nos estados e no Distrito Federal. No portal da Secretaria Especial de Cultura, vinculada ao Ministério do Turismo, conta apenas um relatório com dados dos projetos realizados até dezembro do ano passado.

Na Bahia, a Secretaria Estadual de Cultura (Secult/BA) informa em seu portal que em setembro do ano passado, através do Programa Aldir Blanc Bahia foram lançados os editais: Prêmio Cultura Viva Bahia 2020, pela Superintendência de Desenvolvimento Territorial da Cultura (Sudecult); o Prêmio das Artes Jorge Portugal e o Prêmio de Exibição Audiovisual, pela Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb); os prêmios de Preservação dos Bens Culturais Populares e Identitários da Bahia Emilia Biancardi 2020 e o chamamento público Preservação das Matrizes Identitárias Jaime Sodré 2020, pelo Centro de Culturas Populares e Identitárias (CCPI); o Prêmio Fundação Pedro Calmon, pela Fundação Pedro Calmon (FPC); e o chamamento público Salvaguarda Patrimônio Imaterial, pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac).

A Secult também informa que os editais atingiram todos os 27 Territórios de Identidade e que, somente com os editais, a Secretaria e suas unidades vinculadas executaram mais de R$92 milhões, para cerca de 1.870 projetos.

Quanto à rede emergencial, uma tabela divulgada no site da Secult/BA mostra que 24.433 trabalhadores da cultura realizaram o cadastrado requerendo o benefício. Mas, apenas 2.848 foram aptos, de acordo com os critérios estabelecidos pela lei.

A Sobrado entrou em contato por e-mail com a Secretaria Especial de Cultura do governo federal. Questionamos as denúncias feitas pelos trabalhadores da cultura quanto à falta de políticas públicas para o setor e sobre a possibilidade da aprovação da Lei Aldir Blanc 2, mas não obtivemos resposta até o fechamento desta reportagem.