Revista Sobrado
Demian Reis, palhaço Tezo | Foto: Ricardo Prado

Palhaço, o ofício do encanto

Há uns anos ouvi de uma criança pequena uma frase que muito me marcou: “brincar sempre resolve um pouquinho”. Ao constatar que eu sentia dor, sua receita foi uma coleção de bonecas da linha Monster High que, ao invés de princesas e barbies, eram figuras curiosas: filhas do Frankenstein, do Drácula, do Lobisomem, dentre outros monstros conhecidos. Nas crianças há por natureza o dom da brincadeira, do improviso e do encantamento. Para os adultos, a ludicidade fica um pouco mais escondida. Mas para os palhaços, o encanto e o riso são matéria-prima do seu ofício.

“Vivemos numa sociedade do cansaço, num estado de exaustão e hiperexcitação constante devido à onipresença do mundo online a que estamos inexoravelmente conectados todos os dias. Acho que o riso do palhaço proporciona um descanso dessa loucura, uma interrupção saudável da tomada digital, sobretudo se for ao vivo, mas mesmo por meio audiovisual”, opina Demian Reis, o Palhaço Tezo, doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia e autor do livro Caçadores de Risos: O Maravilhoso Mundo da Palhaçaria. Até o dia 6 de abril, ele conduz bate-papos online com diversos palhaços e palhaças sobre seus processos criativos e suas carreiras artísticas, no Ciclo de Conversas: Passos de Palhaços.

As conversas acontecem às terças-feiras, às 19h, no canal do Youtube de Demian Reis. Já passaram por lá os palhaços Biancorino (Alexandre Luís Casali), Pinguim (Ivanilson Oliveira da Silva), Ângela Sofia (Flávia Marco Antônio) e Lala (João Porto Dias). Os quatro vídeos estão disponíveis na plataforma.

Já na próxima terça-feira, dia 9, ele conversa com o hôtwa Ismael Ahpracti Krahô.“Ahpracti ficou mais conhecido após o lançamento do documentário de Letícia Sabatela ‘Hotxuá – o sacerdote do riso’. Hotwá é uma função cômica designada desde o nascimento para alguns indivíduos entre o povo Krahô. Ahpracti falará sobre sua experiência como hôtwa conosco diretamente de sua aldeia”, explica Demian.

Demian Reis, palhaço Tezo | Foto: Ricardo Prado

Após o Ciclo de Conversas, no dia 6 de abril, Demian lançará a oficina digital Palhaço Passo a Passo, endereçada a toda pessoa que deseja experimentar a criação de um número de palhaçaria, a partir de uma metodologia desenvolvida ao longo de 20 anos de trabalho e redesenhada para adaptar-se ao ambiente digital. O projeto foi contemplado pela Lei Aldir Blanc na Bahia.

“O participante aprenderá a dar 9 passos na jornada do palhaço: no primeiro módulo, rotas do riso, partimos da aceitação de quem somos, por onde andamos e que riso estamos buscando, seguimos no segundo módulo pelas veredas do caos criativo, atravessando temas, objetos, lugares, ações e emoções, até começar a esboçar os pilares sobre o qual o número será construído. Por fim, o terceiro módulo será dedicado ao desenho do número, com tópicos como roupa, maquiagem, entrada, saída, problema, solução e roteiro”, propõe o artista.

Arte milenar
A proposta da palhaçaria é construir um ser único, um estado cômico, íntimo para quem a pratica e para quem assiste. Sua origem definitiva é incerta. A prática moderna tem berço em experiências como a da Commedia dell’arte italiana, uma modalidade de teatro popular que surge no século XV. Os grupos de Commedia dell’arte apresentavam-se em praças públicas, tendo por base um roteiro simplificado de ações, que se desenrolavam a partir da improvisação de cada um dos personagens-tipo, dotados de características gerais como nome, idade, profissão e função narrativa (enamorados, patrões e criados). Assim, cada ator representava sempre um mesmo personagem, como os famosos Arlequim e Colombina, mas o espetáculo nunca era o mesmo.

“A arte da palhaçaria é pré-literária, é pré-texto escrito, nisso reside parte da democracia do seu alcance”, explica Demian. “O número do palhaço, quando apresentado com êxito, tem a mesma universalidade de entendimento que um espetáculo de malabarismo proporciona. Um malabarismo da exposição de nossa humanidade, da sua alegria à sua crueldade, exibida com uma clareza rapidamente reconhecida por todos”, completa.

O palhaço Tezo começou a ser gestado em 1999, quando Demian participou do Retiro para estudo do clown – o clown e o sentido cômico – introdução à utilização cômica do corpo, ministrado por Ricardo Puccetti (Palhaço Teotônio) e Carlos Simioni (Palhaço Carolino) do Grupo Teatro Lume. A companhia paulista foi trazida a Salvador por Felícia de Castro, a palhaça Bafuda e João Lima, o palhaço Tiziu.

Todos eles, junto a outros nomes como Alexandre Casali, Flávia Marco Antônio, Ivanilson Oliveira da Silva e Anselmo Serrat, o querido e eterno palhaço Picolino, são parte de uma geração artística fundamental para o fortalecimento da Palhaçaria e das artes circenses em Salvador e por toda a Bahia. Por meio de cursos e oficinas, vêm facilitando o contato de atores e entusiastas da área, proporcionando a concepção de novos palhaços e palhaças. Serrat, um dos principais mentores da arte em Salvador, fundador do Circo Picolino, morreu em decorrência de um câncer em março do ano passado.

Para Felícia, que é referência na pesquisa e exercício da palhaçaria feminina, o encontro com essa arte significou “o encontro com uma linguagem que buscava como atriz para realizar a inteireza da atuação cênica, no sentido de organicidade, verdade e força”. A palhaça Bafuda divide sua experiência no Ciclo de Conversas no dia 30 de março.

À Sobrado, ela explica que a palhaçaria feminina possui, ao mesmo tempo, uma história antiga e uma história recente. Enquanto história antiga, remonta aos antigos cultos a deusas matriarcais, na figura de deusas cômicas. Já atualmente, é uma forma de pensar uma recriação de referências. “Para nós palhaças, as referências foram sempre predominantemente masculinas, e isso significa um jeito de fazer masculino e também com um conteúdo, com mensagens padronizadas nesse sentido patriarcal”, observa.

Felícia de Castro, no espetáculo Tudo Que você precisa é amor | Foto: Nti Uirá

O caminho para essa recriação é o autoconhecimento. “Nós [mulheres] nos conhecemos muito pouco, nossos corpos, nosso ciclos, as nossas formas de fazer. Esse caminho quebra padrões estabelecidos justamente por um histórico da mulher de opressão, repressão, domesticação sexual, então tem sido um desafio de autoconhecimento para a gente criar essas novas referências, os nossos espetáculos e números e as nossas palhaças, a partir do que a gente é de verdade lá no fundo, expondo a agressividade, o grotesco, a sexualidade”, conta.

Pensando no contexto atual, o contato com a arte da palhaçaria pode ser uma oportunidade para lembrarmos da nossa vulnerabilidade. Ao mesmo tempo, opina Felícia, o palhaço também espelha a nossa tragédia enquanto humanidade. Ela cita o mestre Ricardo Puccetti: “o palhaço é uma reserva ecológica de valores humanos em extinção”. Valores que certamente precisam ser retomados numa época em que a morte é vista com tanta banalidade.

Para o docente da Oficina, o riso é uma forma de olhar mais leve para o presente. “Quantos clowns de cinema trouxeram a alegria que o mundo precisava tanto em momentos de normalidade como dramáticos como durante as guerras mundiais, durante a gripe espanhola… De Chaplin a Buster Keaton, O Gordo e o Magro, e mesmo até hoje o Mr. Bean. No Brasil, Mazzaropi, Grande Othelo, Os Trapalhões. O riso do palhaço é especialmente inclusivo pela sua simplicidade”, lembra Demian.

Ciclo de Conversas – Agenda de Convidados
9 de março: Ahpracti (Ismael Ahpracti Krahô)
16 de março: Shampoo (Nelian Carlos Reis)
23 de março: Terapeutas do Riso – Bacural Quebra-Mola (Edmar Dias de Oliveira) e Ciranda Sambalelê (Dalvacy Rosa Gomes de Oliveira)
30 de março: Bafuda (Felícia de Castro)
6 de abril: Tiziu (João Lima)