Revista Sobrado
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Projeto visa salvaguardar os Carrinhos de Café de Salvador

O hábito de tomar café como bebida prazerosa em caráter doméstico ou em ambientes coletivos se popularizou a partir de 1450, na Europa. O fruto africano chegou ao Brasil em 1727, pelas mãos do invasor português Francisco de Mello Palheta, que realizou o primeiro cultivo no Pará. Um século e meio depois, a planta se tornaria a principal riqueza econômica do país, baseada no velho modelo agrário do latifúndio e com a mão de obra de escravizados, com a produção concentrada na região Sudeste.

Há 150 anos, o Brasil detém o posto de maior produtor mundial de café. Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e Bahia são os maiores produtores internos, respectivamente, segundo os dados da Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic). Mas aqui se desenvolveu um jeitinho peculiar de levar o consumo do café às ruas da primeira capital do Brasil: os conhecidos carrinhos de cafezinho de Salvador.

Presentes no cenário urbano e no dia a dia da população soteropolitana, os carrinhos de café poderão ser reconhecidos como patrimônio material e imaterial da cidade de Salvador. Caso isso aconteça, será o primeiro bem público a receber os dois títulos ao mesmo tempo.  O projeto que luta pelo reconhecimento destes instrumentos de trabalho absolutamente inventivos está sendo desenvolvido pelo diretor artístico e teatral Edvard Passos e recebe o nome de Salvador Vai de Cafezinho – Programa de Mobilização Social na Perspectiva da Salvaguarda dos Carrinhos de Café

Edvard Passos é o idealizador do projeto que visa salvaguardar os vendedores de cafezinho | Foto: Divulgação

Histórico
De acordo com o museólogo Eduardo Fróes, a cultura do carrinho de café é uma expressão genuinamente soteropolitana. Em sua dissertação – Um patrimônio em movimento: os carrinhos de café nas ruas de Salvador (UFBA, 2018), afirma que “nenhuma outra cidade foi capaz de produzir semelhante artefato”.

Em sua pesquisa, Eduardo Fróes buscou recontar a história sobre a presença dos vendedores de café nas ruas de Salvador, “na condição que propiciou uma vivência no espaço da cidade, integrando-se ao cotidiano e ao cenário urbano da capital baiana”.

Ele não localizou registros documentais que sinalizassem ou demarcassem com precisão o ano do surgimento da atividade dos Vendedores de Cafezinho nas ruas da cidade. Traçou a linha histórica a partir de depoimentos orais dos vendedores mais velhos e de notícias registradas nas páginas dos jornais A Tarde e Diário de Notícias.

Verificou-se que a década de 1970 foi o período onde a venda do cafezinho nas ruas passou a integrar o cotidiano de Salvador. A maioria dos vendedores são homens, “que iniciaram o trabalho quando crianças ou adolescentes, geralmente explorados por patrões ou familiares, cumprindo longas jornadas de trabalho por uma remuneração insignificante ou simplesmente estabelecendo uma relação de escambo onde a força de trabalho era trocada por um prato de comida e um teto para se abrigar”, conforme registrou o pesquisador em sua dissertação.

Eles carregavam as garrafas nas caixas de madeiras conhecidas como Guias de Mão, que com o passar do tempo foram ganhando adaptações como as rodinhas até chegar ao formato que conhecemos hoje: os Carrinhos de Café.

O reconhecimento dos vendedores ambulantes de café, como parte do cotidiano da cidade, levou a realização de concursos para eleger os carrinhos mais bonitos. O 1º Concurso de Guias e Carros de Cafezinhos foi realizado no dia 14 de março de 1987, na rotunda do Mercado Modelo, organizado pelo fotógrafo e colecionador de arte Dimitri Ganzelevitch. Para Eduardo Fróes, o evento foi um marco significativo na trajetória histórica da atividade, visibilizando os vendedores enquanto pessoas dotadas de uma capacidade inventiva e artística, além de notabilizá-los enquanto protagonistas de uma classe de trabalhadores do comércio informal de rua.

Panfleto de divulgação do 1º concurso realizado em 1987, presente no acervo pessoal de Dimitri Ganzelevitch, reproduzido na dissertação de mestrado de Eduardo Fróes

Foram treze edições em um período de tempo correspondente a 20 anos, o último concurso tendo sido realizado no dia 19 de dezembro de 2007. O resgate dos concursos é parte do projeto de tombamento. 

Tombamento
O projeto Salvador Vai de Cafezinho – Programa de Mobilização Social na Perspectiva da Salvaguarda dos Carrinhos de Café é composto por três ações iniciais que visam chamar a atenção da cidade e dos poderes públicos para este patrimônio cultural original e nativo. A primeira, foi a realização de uma oficina de montagem de carrinho de café, que aconteceu no dia 24 de abril. A segunda ação foi realizada no dia 1º de maio, em homenagem ao Dia do Trabalhador: concurso virtual dos carrinhos de café, com premiações em dinheiro e júri de especialistas. A próxima ação será a exposição de fotografias, que estará disponível ainda este mês, no site www.salvadorvaidecafezinho.com.br.

Edvard Passos conta que a ideia do projeto nasceu nas rodas de bate-papo do projeto Patrimônio É, sobre patrimônio cultural material e imaterial da cidade de Salvador, promovidas pela Diretoria do Patrimônio, da Fundação Gregório de Matos (FMG). “Em 2020, mediei a mesa Carrinho de Café: Patrimônio em Movimento, com a participação do fotógrafo Roberto Faria e do museólogo Eduardo Fróes. Inspirado por esta experiência decidi revitalizar a ideia dos concursos de carrinho de café de Salvador, incrementando o projeto com outras ações”, ressalta.

“O carrinho de café sempre foi uma verdadeira paixão para mim. São fascinantes, hipnotizantes, tri-eletrizados, ambulantes. Eles são transformadores da paisagem da cidade, com muita irreverência, criatividade e ludicidade. É como um brinquedo, que é também instrumento de trabalho, artefato muito inventivo, com possibilidades performáticas imensas. Ele diz muito sobre nós”, completa.

Para Edvard Passos o carrinho de café é resistência, a materialização da inteligência e inventividade na luta contra opressão e pela sobrevivência. “Eles são herdeiros de uma linhagem estética popular barroca da Cidade da Bahia, são primos das barracas de festa de largo, netos dos saveiros, sobrinhos dos trios elétricos. Essa rica ambiguidade, esse design em prol de um trabalho que seja, ao menos, um pouco menos extenuante e mais prazeroso. Não é à toa que foi surgir justo em Salvador”, avalia.

Os vendedores
Francisco Carvalho de Souza, o “Ceará do Cafezinho”, que está na lida há 23 anos, é um dos que lutam e resistem diariamente, fazendo da venda de café o sustento da família. Ele comemora a realização do projeto e acredita que vai proporcionar um maior reconhecimento da profissão.

“Estamos nas ruas todos os dias. Mas nem sempre somos vistos com bons olhos ou respeito. Esse projeto é de muita importância, estávamos precisando de apoio. Isso vai trazer maior reconhecimento do nosso trabalho e, também, vai contribuir com nossa organização”, diz Ceará, que foi vencedor do concurso virtual dos carrinhos de café realizado no último dia 1º de maio.

Ceará do Cafezinho trabalha há 23 nos com a venda da bebida mais consumida no País | Foto: Divulgação

Edvard Passos concorda com Ceará e destaca o fato do projeto estar ajudando na organização dos vendedores. “O projeto contava com três ações – a oficina, o concurso e a exposição fotográfica. Mas ao longo do seu desenvolvimento, fomos realizando outras ações como a entrega de cestas básicas, para ajudar a amenizar o impacto da pandemia, a realização de cursos de capacitação e o início de uma organização entre eles, via o aplicativo WhatsApp”, relata.

Os vendedores de cafezinho de Salvador não têm uma associação ou sindicato, mas o projeto, mesmo que não pontuasse tal objetivo, está contribuindo para isso. Essa visão é compartilhada por Edvard e Ceará.

“Estamos percebendo a necessidade da organização de uma entidade, uma associação que reúna todos nós. Tenho fé que vamos avançar nesse sentido. O projeto vai permitir que a gente avance para a organização de uma associação dos vendedores de cafezinhos de Salvador. Isso é necessário”, pontua Ceará.

“O projeto pode sim cumprir esse papel de uma incubadora para a organização mais formal. O grupo tem hoje uma reflexão de classe. Eles debateram os critérios do desfile, depois discutiram representação, quando foi necessário conversar com a imprensa. Já discutiram o tema do preço do cafezinho. É um avanço para a organização mais formal deles”, defende Edvard.

O último passo dessa fase do Salvador Vai de Cafezinho é protocolar o pedido de registro de tombamento junto à Fundação Gregório de Mattos (FGM). “É um projeto genial, que homenageia homens e mulheres que criam trios elétricos ambulantes, com decoração, música e ritmo, os vendedores de café que inventaram essa forma original. São quase mini trios elétricos que desfilam pela cidade, encantam e divertem”, opina Fernando Guerreiro, presidente da FGM.

O tombamento vai fortalecer o segmento de vendedores de cafezinhos, permitirá a organização de eventos calendarizados, sendo um passo fundamental para a inclusão da profissão na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), como aconteceu com as baianas de Acarajé. Isso permitirá que Ceará e dezenas de outros vendedores de cafezinho circulem de cabeça erguida pelas ruas de Salvador, seja com a guia de mão, com os carrinhos de rodinha e seus sons eletrônicos. Não temos dúvida, é um reconhecimento merecido e necessário àqueles e àquelas que buscam estratégias diárias de sobrevivência, aliando melhores condições de trabalho à ludicidade e à alegria.