Revista Sobrado

Revista Sobrado lança o podcast especial ‘Modernismo em Salvador – Os 100 anos da Semana de Arte Moderna’

Como parte das comemorações pelo centenário da Semana de Arte Moderna – evento que ocorreu nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo – a Revista Sobrado lança, hoje, o primeiro episódio do podcast especial Modernismo em Salvador – Os 100 anos da Semana de Arte Moderna.

O especial contará com oito episódios, que serão divulgados semanalmente no site da revista e nas principais plataformas de streaming. Você já pode ouvir o primeiro episódio, A chegada da maré modernista em Salvador, clicando aqui.

Leia a transcrição do primeiro episódio abrindo a caixinha abaixo:

Transcrição do episódio

(Arte Sonora – Poema de Edison Carneiro recitado por Tarsila Carvalho)

Tarsila Carvalho – Com suas virtudes e defeitos, a Semana de Arte Moderna de 1922 representou o cume de uma quebra com formas de fazer arte que eram tidas como norma nas comunidades artísticas do nosso país.

Roberto Aguiar – A busca por uma forma de fazer uma arte essencialmente brasileira foi um dos pontos centrais do movimento. Mas o que era uma arte brasileira, sobretudo para tantos artistas que vinham de estudos na Europa? O que é o nacional? E afinal, o que é ser brasileiro?

Vinícius Marques – Para nós, baianos, como as marés modernistas repercutiram na forma de fazermos e pensarmos a arte? Você está no podcast Modernismo em Salvador, da Revista Sobrado, eu sou Vinícius Marques 

Tarsila Carvalho – Eu sou Tarsila Carvalho 

Roberto Aguiar – E eu sou Roberto Aguiar, e hoje conversaremos sobre nomes e movimentos que se desenvolveram na capital baiana à luz das reformas artísticas iniciadas em São Paulo.

(Vinheta)

Vinícius Marques – Realizada nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, a Semana de Arte Moderna foi um evento que reuniu artistas plásticos, escritores, músicos e arquitetos, e que foi marcado pela vontade de contestar a estética e o modo de fazer arte que vigorava no Brasil até aquele momento. O evento, no entanto, ficou restrito, a princípio, aos artistas do eixo Rio-São Paulo. O principal objetivo desses artistas era romper com as normas da arte como conhecíamos, mirando no propósito de uma liberdade criativa para todos.

Tarsila Carvalho – Naquela época, os parâmetros artísticos que vigoravam eram mais voltados para a representação da realidade ou para a representação de cenas de romances literários, sempre com uma tônica do figurativismo e na representação mais verídica possível. O público estava acostumado com o artista reproduzindo a realidade.

Roberto Aguiar – Então os modernistas queriam que isso tudo fosse deixado de lado em função da criatividade, da liberdade de expressão, da pesquisa permanente, da experimentação permanente, sobretudo da expressão pessoal do artista. Ele iria pintar o que lhe interessasse, da forma que ele achasse melhor.

Vinícius Marques – Com isso, vem a questão da deforma. A deforma era justamente a contrariedade da forma clássica. Isso tudo vai espantar o público, porque eles estavam acostumados a ver uma arte que reproduzia realidade, que se aproximava o mais possível da realidade. Do modernismo em diante, o artista não vai ter mais compromisso com proporção, em colocar cor exata, parecida com a realidade, mas vai poder fazer um homem amarelo, por exemplo.

Tarsila Carvalho – Que foi o que a Anita Malfatti fez na obra intitulada ‘O Homem Amarelo’, de 1917, exagerada nas pinceladas, nas tonalidades, desprezando um pouco o desenho como guia e passando a pintar livremente. É uma liberdade de experimentação que olha para os movimentos modernistas dessa vanguarda europeia e os Estados Unidos também, mas busca uma vinculação com a cultura nacional.

Roberto Aguiar – O modernismo brasileiro também vai ter a particularidade de olhar para fora e de olhar para dentro ao mesmo tempo, assimilar as novidades do mundo, mas também adaptando-as à realidade local. É importante ressaltar que este foi um movimento burguês, que fala para uma determinada classe social, mas que também pretendia essa reverberação, como nos explica o professor da Escola de Belas Artes, Luiz Freire

“Tanto é que eles se valeram de uma instituição consagradora, que era o Teatro Municipal, e de pessoas que eram influentes, tanto economicamente, quanto politicamente, quanto intelectualmente. O que eles vão propor é isso, liberdade de criação e que o trabalho deles expresse os seus interesses pessoais, o seu lugar, lugar de fala, lugar geográfico, cultural, geopolítico”.

Roberto Aguiar – A Revista Sobrado, que é um projeto que tem o objetivo de construir um jornalismo cultural de qualidade, vivo e crítico, não poderia ficar de fora do debate acerca do centenário de um evento cultural de grande importância como a Semana de 22. Um evento que muda a forma de produzir, consumir e pensar a arte. Evento que traz a liberdade ao plano da criação artística, que rompe com os padrões e as formas tradicionais cristalizadoras, que seguiam sempre as normas estabelecidas pelos moldes conservadores e tradicionalistas, em estilo, marcado pela tradição política e religiosa.

Vinícius Marques – Mas nosso objetivo central não é debater a Semana de Arte Moderna em si, mas discutir como o modernismo se desenvolveu aqui na Bahia. Quais os impactos da Semana de 22 em Salvador, a primeira capital do Brasil? Como as mulheres, os povos indígenas e os afrodescendentes, população majoritária na cidade mais negra do mundo fora do continente africano, participaram desse processo? Quais personagens foram centrais na construção do modernismo baiano? Foram essas perguntas que nos moveram à construção deste projeto de podcast, que será formado por 8 episódios. As respostas às essas perguntas começam a ser formuladas a partir deste episódio.

Vinícius Marques – Na ocasião, não havia artistas baianos na Semana. O evento dificilmente contou com a participação de artistas de outros estados. Alguns teóricos afirmam que os ventos mais velozes e demolidores da primeira fase do modernismo chegam na Bahia por influência de Pernambuco. Essa chegada, no entanto, não significa que os ideais propostos na Semana tivessem sido bem aceitos no estado logo de cara.

Tarsila Carvalho – Historiadores ouvidos pela Sobrado associam essa resistência ao conservadorismo em que o estado vivia. Para eles, os grupos conservadores eram extremamente articulados e poderosos, e estavam presentes em todas as posições da sociedade, desde o governo até as instituições privadas de cultura, como as redações de jornais. Os historiadores afirmam ainda que foi preciso conquistar os suplementos culturais para que se pudesse haver uma discussão e uma divulgação da arte moderna baiana.

Roberto Aguiar – O que acontecia na Bahia era o tradicionismo dinâmico, um movimento encabeçado pelo médico, poeta, acadêmico, colunista e crítico do jornal A TARDE, Carlos Chiacchio. Somente no ano de 1928 que Chiacchio, ao lado de Pinto de Aguiar, Eurico Alves, Godofredo Filho, Carvalho Filho e outros, fundam a revista Arco & Flexa. Considerado um marco na história do modernismo em Salvador, como pontua a escritora Edilene Matos, que também é professora da Ufba e vice-presidente da Academia de Letras da Bahia.

[fala da escritora]

A vice-presidente da Academia de Letras da Bahia também destaca o papel do poeta Hélio Simões na concepção da revista Arco e Flecha. 

[fala da escritora]

Esse movimento inspirou o surgimento de outras revistas, como a Távola e, mais tarde, a Samba e a Meridiano, essa última resultando no surgimento do grupo Academia dos Rebeldes. Só então os ventos começaram a mudar. É possível dizer que antes disso, a Bahia não conhecia o modernismo.

Vinícius Marques – Na literatura, as coisas avançavam. Mas nas artes plásticas, ainda faltava uma união e uma aceitação desse novo movimento. Somente em 1932, quando José Guimarães, um aluno da Escola de Belas Artes, retornava de uma viagem à Europa, a Bahia teve o primeiro contato com a arte moderna nos quadros.

Tarsila Carvalho – Esse contato aconteceu numa exposição realizada em Salvador, no andar térreo do edifício do jornal A TARDE, na Praça Castro Alves, montada por Guimarães, onde o mesmo mostrou para todos as suas produções realizadas durante sua passagem pela Europa. A recepção não foi das melhores.

Roberto Aguiar – Segundo Luiz Freire, a crítica foi favorável ao artista, mas a negativa dos professores de Guimarães, em especial a do mestre dele, Presciliano Silva, fez com que o jovem artista decidisse migrar de Salvador para o Rio de Janeiro, na tentativa de continuar trabalhando com sua arte. Mesmo assim, o trabalho dele não repercute no local, que tinha uma cena muito dinâmica.

“Entender o modernismo, os pressupostos dos modernistas, não era fácil. Exigia uma reeducação do olhar, exigia uma reeducação do conceito de arte. A arte estava muito ligada à habilidade manual, artesanal e de uma certa forma o modernismo vai quebrar com isso”

Vinícius Marques – Diferentemente de São Paulo, aqui não houve um grupo de artistas interessados em mudanças que pudessem se associar a Guimarães, como houve em função de Anita Malfatti e sua decisiva exposição de 1917, quando ela foi duramente criticada por Monteiro Lobato. O resultado dessa associação de artistas em defesa de Malfatti foi o que resultou na Semana de 22.

Tarsila Carvalho – Muitos anos se passaram até que a Bahia pudesse ter um grupo de artistas e condições culturais para entender e fomentar essas mudanças. Freire conta que isso só vai acontecer entre o final da década de 1940 e o início da década de 1950. Entre os pioneiros estão Carlos Bastos, Mario Cravo Júnior, Genaro de Carvalho e Lygia Sampaio, apoiados mais tarde com a chegada dos estrangeiros Carybé e Pierre Verger.

Roberto Aguiar – Vai, então, se criando toda uma geração de artistas entre a década de 1950 e 1960 que vão lançar as bases da baianidade modernista, que tem como grande característica a representação dessa paisagem cultural afro-baiana com as cores e as formas simplificadas, assumindo a bidimensionalidade da tela e do desenho.

Tarsila Carvalho – Com tudo isso, não podemos deixar de falar sobre uma lacuna que a Semana deixou: a contradição entre o fato de que o Movimento desejava romper com o tradicionalismo representado pela arte da Europa, ou, como sugeriu Oswald de Andrade, que as influências estrangeiras fossem “digeridas” e transformadas em uma arte de essência brasileira, e um outro fato – o de que a Semana de Arte Moderna foi também um evento branco, encabeçado por uma elite econômica.

Roberto Aguiar – Apesar de muitas obras modernistas encenarem símbolos e situações culturais de negros e indígenas, como é o caso de Macunaíma, obra prima de Mário de Andrade, do quadro “A Negra” de Tarsila, das “Mulatas” de Di Cavalcanti, artistas negros e indígenas não tiveram espaço na Semana de 22. 

Vinícius Marques – Ficaram de fora do elenco de pilares do movimento nomes de artistas negros como Pixinguinha, que com os Oito Batutas já representava a música nacional por outros países enquanto a Semana acontecia, Lima Barreto, que também já se debruçava sobre as questões de nossa identidade e linguagem na literatura, e os irmãos João e Arthur Timótheo da Costa, artistas plásticos cariocas. 

Tarsila Carvalho – Esse panorama é sintomático da sociedade brasileira à época – pouco mais de 30 anos da abolição jurídica da escravidão. Cabe a nós um olhar crítico com relação ao processo. Não podemos deixar de lembrar que a identidade nacional é um conjunto de ideias em disputa, não podendo ser representada apenas pelo olhar do branco, do homem, da elite econômica, sobre a realidade. 

Roberto Aguiar – Na Bahia, o cenário artístico que repercutiu da Semana permaneceu hegemonicamente branco e masculino, mas nomes como o de Édison Carneiro, poeta negro integrante da Academia dos Rebeldes, figuram entre os principais. 

Vinícius Marques – A Academia, da qual falaremos mais no episódio três, foi um grupo de intelectuais formado em Salvador no final dos anos 1920. Entre seus participantes, além de Édison, estavam Jorge Amado, Aydano do Couto Ferraz, Clóvis Amorim, João Cordeiro,  José Alves Ribeiro,  Walter da Silveira e  Pinheiro Viegas.

Tarsila Carvalho – Conforme defende o pesquisador Luiz Rossi, em sua tese “O Intelectual “Feiticeiro” – Édison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil”, “a vida de Édison Carneiro, portanto, expressa com vigor dilemas e transformações que acometeram não apenas o campo de estudos das relações raciais, mas também as ciências sociais brasileiras como um todo, cujo processo de institucionalização destravou, a partir da década de 1930, o rompimento com um modelo de intelectual que ele encarnava muito bem: o polígrafo, autodidata”. De acordo com Rossi, “sua atuação e suas metamorfoses na evolução do debate racial nacional urdiram com forma uma experiência, senão exemplar, certamente expressiva do processo de gênese e formação deste campo de estudos”.

Roberto Aguiar – Neste primeiro episódio falamos sobre a importância histórica da Semana de Arte Moderna, como o modernismo foi se desenvolvendo na Bahia e ganhou características próprias. Não foi um movimento sem embate, pois sofreu uma forte resistência dos que tentavam sobreviver o neoparnasianismo, que vigorava por aqui. Esse embate, foi travado por personagens que vamos conversar sobre eles nos episódios seguintes. Começaremos pelo escritor e poeta Godofredo Filho, considerado o pioneiro no modernismo baiano.  Também vamos falar à Academia dos Rebeldes, movimento que revoluciona a literatura em Salvador. 

Vinícius Marques: – Mostraremos quem foi Lygia Sampaio e a força das mulheres no modernismo soteropolitano. No episódio dedicado a Diógenes Rebouças, pautamos o modernismo na arquitetura urbana de Salvador. Sobre Rubem Valentim, destacaremos a dívida histórica que temos com o modernismo negro soteropolitano. A arte moderna de Carybé e de Mário Cravo Júnior estarão em destaques nos últimos episódios deste especial.  

(Vinheta final)

Tarsila Carvalho – A Revista Sobrado é um veículo independente da cidade de Salvador, que surge com o objetivo de construir um jornalismo cultural de qualidade, vivo e crítico. Acesse nosso site: www.revistasobrado.com.br e visite nossos perfis nas redes sociais pelo @revistasobrado. O podcast Modernismo em Salvador tem pesquisa, redação e narração dos jornalistas Vinícius Marques, Roberto Aguiar e Tarsila Carvalho. Esse projeto foi contemplado pelo Prêmio Riachão – Projetos de Pequeno Porte, da Fundação Gregório de Mattos, Prefeitura Municipal de Salvador, por meio da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, destinado pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, Governo Federal.

“A Semana de 22 foi um evento que mudou a forma de produzir, consumir e pensar a arte no Brasil. Evento que traz a liberdade ao plano da criação artística, que rompe com os padrões e as formas tradicionais, que seguiam sempre as normas estabelecidas em estilo marcado pela tradição política e religiosa. Por isso, foi um evento revolucionário”, pontua Vinícius Marques, editor da Sobrado.

“O objetivo do nosso podcast é mostrar como as marés modernistas da Semana de 22 repercutiram na capital baiana. Vamos falar sobre o papel das mulheres, dos povos indígenas e os afrodescendentes nesse processo. Para isso, selecionamos alguns personagens e movimentos que foram centrais na construção do modernismo baiano”, completa Vinícius.

O primeiro episódio será dedicado a uma discussão mais geral da Semana de Arte Moderna de 22 e seus impactos em Salvador. Os demais episódios serão dedicados a personalidades e movimentos que introduziram o modernismo na primeira capital do Brasil: o escritor e poeta Godofredo Filho, considerado o pioneiro no modernismo baiano; a Academia dos Rebeldes, movimento que revoluciona a literatura em Salvador; a desenhista e pintora Lygia Sampaio e a força das mulheres no modernismo soteropolitano; Diógenes Rebouças e o modernismo na arquitetura urbana de Salvador; o escultor e pintor Rubem Valentim e a dívida histórica com o modernismo negro soteropolitano; a arte moderna de Carybé e de Mário Cravo Júnior, que encerram o especial.

O podcast Modernismo em Salvador tem pesquisa, redação e narração dos jornalistas Vinícius Marques, Roberto Aguiar e Tarsila Carvalho. Esse projeto foi contemplado pelo Prêmio Riachão – Projetos de Pequeno Porte, da Fundação Gregório de Mattos, Prefeitura Municipal de Salvador, por meio da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, destinado pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, Governo Federal.