Revista Sobrado
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Tântrica Santina reimaginada

A palavra mais ouvida de março de 2020 até hoje, certamente é reinvenção. É fácil repensar, reinventar, replanejar, recriar, reformular com dinheiro em caixa. Para a produção artística – especificamente o teatro – a reinvenção foi diferente, mas não impossível. A companhia Oceano, que resiste há mais de dez anos no meio artístico, foi selecionada no edital Prêmio das Artes Jorge Portugal e o espetáculo teatral Tântrica Santina forjada em sangue a sorte imaculada e um homem morto ganhará versões em audiovisual.

Nos dias 26, 27 e 28 de fevereiro às 18h, além de assistir aos três atos da peça na versão “livre espetáculo live”, o público poderá interagir com a equipe criativa do espetáculo em três bate-papos com a atriz Rita Rocha acompanhada da assistente de direção do solo Alhandra dos Santos (26), a preparadora de elenco do solo Ilona Wirth (27) e do diretor e roteirista do solo, Thor Vaz (28). Um mês depois, em 27 de março, também às 18h, acontece o lançamento do filme, uma versão inédita e especialmente adaptada para o formato audiovisual.

O projeto tem apoio financeiro do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura e da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Programa Aldir Blanc Bahia) via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, Governo Federal.

A companhia Oceano nasceu em 2010, durante os estudos de linguagem para o espetáculo O Nórdico. Durante esses mais de dez anos nunca saiu de cartaz em diversas linguagens artísticas, como obras musicais, audiovisuais, teatrais e em literatura. A equipe hoje é composta por Thor Vaz, Leopoldo Vaz Eustáquio, Ludmila Brandão e Lua Martins. A companhia faz parceria com artistas de diferentes estados do Brasil, como João Saraiva, Laura Fragoso, Edu Coutinho, Rita Rocha, A, Laura Sarpa, Moisés Salazar, Rhenato Flauer, Agnes Oliveira e outros.

O espetáculo, carinhosamente chamado por Tântrica Santina, passou por três temporadas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Em março de 2020 estava na capital baiana e os trabalhos foram interrompidos por conta da chegada da pandemia do coronavírus ao Brasil.

Para a atriz Rita Rocha, que é formada em Direção Teatral pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), protagonizar é um ritual. “É um ritual meu enquanto atriz e um ritual da personagem. Cada movimento no espetáculo é pensado para atingir a emoção do espectador. Tomo cuidado com o timbre vocal, a personagem exige um timbre mais forte”, conta. “A personagem passa por um processo de depressão e eu já passei por isso”, complementa.

Foto: Joselia Frasão / Divulgação

Em cena, a atriz vive uma mulher em estado de delírio, atormentada por lembranças que por vezes parecem alucinações. A personagem compartilha as dores e decepções causadas por amantes cruéis e tenta se livrar da culpa pela morte do seu marido. Embora a obra não deixe clara uma definição de tempo e espaço, a personagem revela forte ligação com a igreja católica, uma relação de temor e adoração, mas não esconde sua postura insurgente contra costumes e tradições.

“O espetáculo diz sobre o lugar de fala de uma mulher, mas vai além disso, é uma questão feminina, é física, é sensorial. É importante que o espectador experiencie com o ponto de vista feminino. A personagem é vista a princípio como uma louca, mas isso é um julgamento preconcebido, claro que a experiência é algo bem particular e nós pensamos bastante na experiência sensorial. Me inspirei muito nas pessoas em situação de rua para fazer. É uma mulher que está ali, mas vive em um outro lugar”, conta Rita Rocha.

Thor Vaz, responsável pela direção e texto do espetáculo, dá destaque para esse trabalho sensorial na obra. “Foi um texto que ficou muito tempo na gaveta e ele é muito visual. O real significado do nome, não sei! Escrevo de uma forma muito sensorial, a peça começa com serenata, de uma forma bem leve e vai aumentando as batidas. É um texto rítmico, uma palavra chama a outra. Geralmente quando escrevo, leio em voz alta para mim mesmo, sou o primeiro espectador”, assume.

Nós, enquanto espectador, sempre nos perguntamos o que a obra vem comunicar, e Thor Vaz, que acredita na experiência particular de cada indivíduo, revela: “Eu acho bonito da arte que tem um diálogo direto com o espectador. Eu não posso limitar isso! Tem muita gente que não entende nada do espetáculo, tem gente que fica em êxtase. Tem gente que acha que é muito emotiva. É uma obra muito lírica e poética. É uma obra progressista”. Ele ainda expõe o que chama mais atenção: “o que eu gosto muito dessa obra é que o link dela vem por um viés emocional. Como ela é muito ritmada, você dança mesmo sem querer”, encerra.

Ao longo do processo de criação, atriz e diretor levantaram como referências diversas personagens femininas consideradas loucas pela sociedade, recorrentes na literatura e no cinema. Sob esse olhar, Rita Rocha conta que, para ela, “essa é a história de uma mulher que tem a alma tântrica e o corpo santino, e esses lados fazem as pazes”, conta. “A alma e o corpo fazem as pazes e ela se reencontra consigo mesma”, acrescenta. Rita também associa o trajeto da personagem às diferentes etapas de um processo de depressão. “É um lugar que você chega, esse lugar que não existe, esse vazio que seria tão dentro de você, que por isso é indefinido. Essa personagem tá nesse fundo do poço, mas no fundo do poço tem uma mola. Cada vez que ela chega mais fundo ela consegue renascer mais forte”, complementa.

Para iniciar a produção de Tântrica Santina, a motivação de Rita Rocha foi justamente trabalhar a atriz dela. “A iniciativa foi minha. Fui colega de Thor na Escola de Teatro da UFBA e eu admiro muito o artista que ele é. Eu estava querendo fazer um solo e eu procurei ele, aí recebi o texto, de cara achei um texto bem barroco e com várias imagens. Foram quatro meses decorando o texto e os ensaios começaram – o texto é bem ritmado. Só consigo falar ele de uma vez só”, pontua.

Foto: Joselia Frasão / Divulgação

Rita conta que por ser uma adaptação, todas as vezes que começavam uma nova temporada, Thor dizia que era um novo espetáculo. “Quando você muda o formato do espetáculo, você está começando um novo espetáculo, mas sem perder a essência. O espetáculo continua sendo ele”, afirma.

E apesar de se tratar de uma voz feminina, o diretor afirma ter consciência de que não é uma voz representativa do tema. “Não é minha intenção dirigir uma obra feminista e não vou ser demagogo ao dizer que escrevi há quase dez anos atrás com esse olhar. A personagem é uma forte algoz, vítima da sociedade. Não é especificamente dos problemas sociais enfrentados pela mulher que o texto fala”, afirma Vaz.

“Infelizmente nós artistas já estamos acostumados a dar pirueta quando necessário. Tanta peça que eu já fiz de graça, que eu já fiz ganhando pouco. A cia Oceano tava com o ano de 2020 todo programado, mas aí veio a pandemia, o teatro soube se remontar”, conta o diretor. “Vamos fazer três lives agora, são lives que tentam seguir o padrão teatral e têm a função, justamente, de ajudar na transição do teatro para o cinema”, complementa.

O diretor revela que se concentraram em Tântrica Santina para o cinema. Cada plano e cada sequência foi pensado para esse formato. Segundo ele, os efeitos e a coloração fazem com que a obra “seja tão boa quanto é no teatro”, e afirma ter tido todas as reuniões de forma remota e as gravações foram feitas com a equipe reduzida. Fotógrafos e a atriz cumprindo toda a norma de distanciamento social. “Nesse contexto de pandemia, o meu controle criativo sobre a obra cai muito. Preparei um documento, um roteiro muito bem detalhado, mas não vou estar presente, in loco, com a equipe. Então esse trabalho vai ser muito mais colaborativo. Isso é muito interessante também”, conta Thor Vaz.

A trilha sonora desta obra chama atenção. Ela é uma importante ferramenta na condução do público no espetáculo. Leopoldo Vaz Eustáquio, responsável pela trilha sonora do espetáculo, e consultoria de direção de fotografia e edição do filme, conta sobre o convite para o trabalho nessa obra: “É um dos textos mais antigos da companhia, já tive acesso a ele antes. Quando Thor me chamou, eu optei por não ler o texto novamente. É uma trilha bastante minimalista. Vai progredindo e o espectador não percebe que a trilha vai aumentando e acompanhando o ritmo do texto. Foi uma trilha bem diferente do que eu fiz. É bem ritualística, não é dramática”, afirma.

“A experiência teatral interativa, pouco se vê nas produções atuais. O espectador é ativo, ele não vai para assistir apenas, ela vai participar. O público também experimenta a exaustão física que o solo traz. A primeira temporada eu fiz a distância, antes da pandemia e essa experiência foi bem interessante, da entrada do público à saída toca música”, conta Leopoldo Vaz Eustáquio.

Do palco às telas
Nas temporadas presenciais do espetáculo, o público era convocado a dar um passo além da passividade de quem costuma assistir, caminhando ao redor da cena por um trajeto especialmente preparado pela produção. Os movimentos circulares feitos pelos espectadores consolidavam uma proposta de encenação instauradora de um ritual meditativo, coletivo, que aprofundava gradualmente os estágios de consciência da atriz, da personagem e do público até permitir a entrada em um modo alternativo de contemplação. O desafio de transpor Tântrica Santina do teatro ao audiovisual reside também em manter o caráter sensorial da obra, construída como uma sinfonia rítmica, minimalista e progressiva.

Leopoldo Vaz Eustáquio também é responsável pela trilha sonora do filme e conta que conseguiram fazer um formato audiovisual bem similar ao teatro. “A essência tá ali. As cores utilizadas na gravação, as locações, os cortes da edição, tudo remete a essência. É uma obra diferente, mas ao mesmo tempo você percebe que há a mesma atmosfera”, garante.