Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

Naquele meu tempo… Lembranças, infâncias, culturas e poéticas da gestão

Naquele meu tempo…

Eu, Curumim-Erê que era… um caboclinho a saudar naquele meu corpo infantário minha ancestralidade afro-indígena. E nem sabia qual era o sentido daquilo, que subjetividades me despertava, mas já sentia uma forte identificação muito nítidas com aquele universo ancestre mítico, miscigenado. “Todo dia era dia de índio, mas agora ele só tem o dia 19 de abril”. Isso era naquele meu tempo. Lá pelo comecinho dos anos 1980. Cerca de 40 anos depois, nem mais um dia, dentre os 365 do calendário ocidental, os donos da terra têm tido mais para chamar de seu, para celebrar com seus torés e danças circulares. E, nos últimos quatro anos, as notícias que têm chegado de Brasília, da Amazônia, do Mato Grosso e de tantos outros cantos onde os indígenas ainda se refugiam, são de lamento. As terras, dos verdadeiros donos da terra, cada vez mais devastadas. Demarcação para que, não é? Suas florestas queimadas, seus animais mortos, seus povos, seus direitos, seus corpos, sua Mãe-Natureza. Tudo vilipendiado, há 520 anos sendo dizimado.

Naquele meu tempo…

Eu, Erê-Curumim que fui… Um Bacurinho a ecoar naqueles meus pensamentos pueris as vozes dos que me antecederam. Das realezas que éramos em terras além-mar. Apesar do navio negreiro e dos camburões e rabecões, apesar do banzo e tanta depressão, apesar de nos amontoarem em senzalas, hospícios e prisões, apesar dos pelourinhos, cadeias e detenções, das chibatadas e cassetetadas, apesar dos grilhões, camisas de força e algemas, apesar de tantos, tantos, tantos pesares… Em nossos corpos reais, em nossos sentimentos reais, em nossas essências reais, em nossas existências reais… Os que vieram antes de mim tiveram força e coragem para se multiplicarem em terras alheias. Parirem outros reis e rainhas, que pariram outros reis e rainhas, que pariram, que pariram, que pariram… até que fui parido, como tão bem dito pelos poetas, pelo ventre livre do navio em cujo porão trouxemos o Brasil. Filho de Rei. Kawó Kabiesilé, meu pai. Herdeiro de Rainha. Òóré Yéyé ó, minha mãe.  Eis o que sou. Um privilegiado sobrevivente. Uma estatística positiva que contraria as expectativas hediondas da casa grande. Um entre muitos refugiados que traz na esperança que me toma, a esperança dos que vieram antes e que em mim sobrevivem. 

Naquele meu tempo…

Eu, Curumim-Erê que continuo sendo… Um Cangurito a reverberar nessas minhas ideias já não tão infantes, as vozes dos pajés, dos caciques, dos caçadores, dos guerreiros, das flechas, dos arcos, dos tacapes. As vozes dos verdadeiros donos dessa minha aldeia Pindorama. Dos guardiões da Mãe Terra. Dos nossos mais velhos irmãos aqui nascidos bem antes de nós. A natureza, o rio, o sol, a chuva, o fogo, o mar, o vento, o tempo, a montanha, os animais, as folhas, as florestas e tudo de vivo e material orgânico que nelas habita. Apesar da quase extinção dos nossos e dos nossos irmãos, apesar da devassa que o colonizador operou nas bandas de cá, o ciclo da vida segue seu fluxo e o meu povo originário segue resistindo, se perpetuando. Perpetuando… Perpetuando… Perpetuando… até me gerarem como sou. Um afluente de rios a irrigar cada terra do meu corpo. Eu! Uma pororoca de sangue, lágrimas, suor, sêmen e outras águas que se encontram, se misturam e se dispersam.

Naquele meu tempo…  

Eu, Erê-Curumim que hei de pra sempre ser. Um Caboclinho a percutir nesse meu pré-pubescente corpo-tambor as vozes dos que me precederam. A repercutir nas minhas entranhas em formação, vísceras, células, lembranças inconscientes, as memórias presentes dos meus antepassados. Percutem… Percutem… Repercutem avamunhas, alujás, ijexás, batás, bravuns, adarruns, vassis, aguerés, opanijés e torés. Minha pele vermelha amarronzada de ébano abronzeada pela miscigenação de dendê e urucum, trespassada pela memória sincrética das peles dos meus e suas tatuagens ritualizadas em cortes, perfurações e tinturas de efun e jenipapo. Banto, Nagô, Jeje, Hauçá, Malê… De que áfricas eu vim? Tupi, Tupinambá, Tupiniquim, Kiriri, Kariri-Xocó, Funi-ô, Tumbalalá, Tuxá, Tuká, Kaimbé, Kantaruré, Pankararé, Payayá, Pankarú, Atikum, Pataxó, Pataxó Hãhãhãe… De que pré-Brasis  Kirimurê eu vim?

Naquele meu tempo…

Que felicidade eu sentia com a proximidade do 27 de setembro. Para mim, até hoje, o verdadeiro Dia das Crianças. Dia dos Ibejis, dos Vunjis, dos Erês, dos Meninos, dos Dois Irmãos, de Dois Dois, dos Gêmeos, dos Mabaços, de Cosme e Damião… É no 27 de setembro que os coloridos da chegada da primavera e da alegria infantil se juntam numa mesma aquarela. O cheiro das flores misturado ao cheiro do dendê exalado das panelas e tachos gigantes, que me cabiam dentro, borbulhando carurus, vatapás, xinxins, farofas e afins. Naqueles dias de balbúrdia, de carurus e mesas de doces, eu brincava tanto com os meus amigos encantados que, quando chegava o 12 de outubro, meus brinquedos apanhados nos rasga-sacos da vida já estavam tão gastos que nem ligava mais para os apelos do capitalismo da data.

Para manter vivas nas lembranças e no meu corpo as sensações de felicidade e de prazer que naquele meu tempo vivenciei, sempre que chega o 24 de agosto e vai se aproximando o 27 de setembro, me pego a olhar e re-olhar fotos daquele meu tempo. Algumas vezes guardo só pra mim os sorrisos e olhares daquela criança cativante que posava para uma Kodak ou uma Polaroid. Outras vezes, compartilho com os meus nas redes sociais, e que diversão a enxurrada de curtidas, likes e comentários para aquela criança linda e meiga que posa naquelas minhas recordações.

Nesse 2020, tão turbulento ano acinzentado, o colorido do agosto/setembro insistiu em acontecer em mim. Eu mal acabara de desabrochar 40 primaveras, as flores do setembro ainda se abrindo, uma mensagem me fez viajar nas lembranças daquele meu tempo. Anúncio de uma amiga de havia mandado pra mim, por uma outra amiga vizinha, um delivery de caruru (e completo!). A boca salivou na hora. Pense numa criança feliz… Eu ao receber aquela quentinha cheia de afetos deliciosos e que fiz questão de compartilhar, tal qual as balbúrdias daquele meu tempo, com outras vizinhas. Noção de irmandade. 

Entre as imagens daquele meu tempo revisitadas na solidão do isolamento desse 2020, uma me fez parar e mergulhar em minha essência. E me inspiraram a me compreender tal qual dito no intróito destes escritos. Uma foto bem emblemática daquele meu tempo e que minha mãe tinha se encarregado de reproduzir e emoldurar em um calendário de parede enviado para toda a família. Passei anos encontrando aquela minha imagem em paredes do Rio, de Ilhéus e de outros cantos para onde meus parentes se diasporizaram.

Olhando aquela foto, talvez com 2 ou 3 anos, uma criança de pele negra, com uma bochecha boa de apertar, um sorriso maroto e contagiando, vestindo um saiote e cocar de penas amarelas alaranjadas e, no peito nu, colares de missangas encruzilhados. Uma vaga lembrança tenta se despertar do meu inconsciente toda vez que olho pra essas fotos feitas em alguma atividade, certamente relacionada ao Dia do Índio, na minha primeira escola. No isolamento desse 2020, o brilho dos olhos e do sorriso daquela criança, distanciada de mim pelo tempo, trinta e poucos anos, quase 40 se passaram, pelas correrias da vida e pelas adultices do mundo, pareciam querer me dizer algo. E, no silêncio dos dias de isolamento, me pus a escutar:

quando eu crescer
eu quero ser criança
eu quero continuar sendo criança
eu quero brincar
quando eu crescer
não deixa de brincar comigo
me deixe continuar sendo criança
continue sendo criança comigo

As palavras ditas pelos olhos e pelo sorriso daquela criança que eu fui e que esses dias tem me convidado a continuar sendo, tem reverberado em minhas ideias e me reconectado a experiências mais recentes que tenho vivenciado acerca do ser criança. E tudo isso tem me feito refletir muito sobre a razão de ser dessa minha existência e sobre a minha atuação profissional no campo da cultura e da gestão, assuntos que tenho me proposto a escrever aqui na Sobrado. Antes porém de falar sobre isso, gostaria de compartilhar mais uma experiência sobre o que tenho aprendido sobre ser criança.

Recordo que, no saudoso ano passado, durante a Balada Literária de São Paulo que homenageou o mestre Paulo Freire e a mestra Vovó Cici, a quem eu peço a benção, ouvi o escritor indígena Daniel Munduruku dizer para uma plateia atenta, que havia uma pergunta que jamais devia ser feita a uma criança: o que você vai ser quando crescer? Ora pois, uma criança já o é, em toda sua plenitude, tudo aquilo que ela precisa ser: CRIANÇA. E basta. E isso não é pouco, muito ao contrário.

Quantas vezes aquela minha criança foi indagada sobre o que ela ia ser quando crescesse? E quantas vezes ela tentou balbuciar com os olhos e com o sorriso, da mesma forma como me disse naquela foto: eu quero ser criança, eu quero ser criança, eu quero ser criança. E os adultos, surdos em suas adultices, ignorando o lugar de fala daquela criança, as suas opiniões, os seus desejos, respondendo por ela e tentando projetar nela seus próprios desejos e frustrações: Ele vai ser é médico, uns apostavam. Esse menino tem que ser advogado, outros asseguravam. Tão paciente, esse guri tem jeito de professor, outros afirmavam.

Ser criança é uma universidade de experimentos e aprendizados práticos que se perpetuam pela vida inteira e que tentamos transmitir em teorias para os que chegam. É na infância que experimentamos abrir os olhos para ver o mundo, chorar para reclamar de fome ou de dor, levantar a cabeça, sustentar o tronco para sentar, engatinhar, falar as primeiras palavras, equilibrar-se sobre os pés, dar os primeiros passos, brincar, ler, escrever, somar e multiplicar, mas também subtrair ou dividir. E a maior parte dessas experiências se dão de maneira individual, no tempo de cada um, o que frustra muitos adultos que tentam ser catalisadores dos processos de aprendizado infantil.

Cresci ouvindo repetidas vezes enquanto era repreendido por ter feito fora dos padrões: É de pequeno que se faz grande. Eis a pedagogia de mainha. De fato, o adulto que somos é reflexo da criança fomos. E não o contrário. Uma infância bem vivida é avalista de uma vida adulta bem sucedida – e bem sucedido aqui tem um sentido lato, amplo, não apenas em aspectos econômicos e das posses materiais e conquistas capitalista alcançadas, mas também no sentido da essência, do emocional, do espiritual, do afetivo e, porque não dizer do sexual.

Sendo assim, a criança não deve ter seu precioso tempo desperdiçado em se ocupar com aquilo que ainda não vivenciou, a ela cabe vivenciar, experimentar, experienciar e tudo em seu tempo, inclusive a aprender com os erros. E Munduruku nos faz rememorar a sabedoria dos povos originários, que o colonizador e o mundo ocidental e capitalista nos faz esquecer: não é necessário darmos conta daquilo que ainda não experienciamos e que o ocidente denomina de futuro. O porvir é, portanto, uma invenção ocidental bem recente. O apego excessivo ao futuro acaba nos impossibilitando de o presente em sua plenitude.

O futuro, então, não é um tempo existente nas culturas ancestrais. O que não foi experimentado, vivenciado, experienciado, não pode ser contado. A existência do tempo está relacionada à experiência advinda da vivência, seja pelo que está acontecendo no presente, seja pela memória experimentada no outrora. Talvez seja por isso que o colonizador e o capitalista tão ocupados com o amanhã, com o acumular agora para o depois, venha tratando ao longo do tempo as culturas os povos não ocidentais com tanto desdém, como fosse algo primitivo e de menor valor. Talvez seja por isso que as escolas e alguns outros setores responsáveis pela educação seguem (re)produzindo ideias infantilizadas ou, mais equivocadas ainda, acerca dos índios, dos africanos e seus descendentes.

Em geral, as narrativas referenciadas nas culturas afro-indígenas, normalmente remetem ao aqui e agora, ou às experiências vivenciadas no tempo atrás. Isso me faz lembrar de itan iorubano que deixa muito nítida essa relação com e entre o presente e o passado e ignora o futuro: Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só atirou hoje.

Retornemos, pois, ao assunto de deixar a criança ser criança, mesmo depois que ela cresça. E antes que os leitores mais afoitos reclamem das minhas divagações sobre a minha infância afroindígena, também vamos falar um pouco sobre o assunto que tem norteado meus escritos nesta revista: a gestão cultural. Que relações são estabelecidas entre o ser criança e a gestão cultural? O que vem a ser a cultura infância? Como os gestores culturais podem contribuir

Há 3 anos, tenho falado bastante, inclusive em ensaio publicado anteriormente aqui nesta mesma Sobrado, sobre a poética da gestão. Ao me apresentar essa expressão que tenho adotado e buscado elaborar uma conceituação, Diego Pinheiro evocou o trabalho que a atriz e gestora cultural Isabela Silveira inaugurou enquanto esteve à frente da coordenação do Espaço Xisto Bahia voltado para o público infantil. Tive o prazer de ser colega e de realizar muitas trocas com a “tia do teatro”, como as crianças participantes das atividades que ela promovia passaram a chamá-la, enquanto estive na coordenação do Cine Teatro Solar Boa Vista e na minha passagem pela Diretoria de Espaços Culturais da SecultBA.

Em sua estadia à frente da gestão do Xisto (2012-2015), Isabela provocou uma verdadeira revolução no que tange à participação da criança não apenas como espectadora, mas também como produtora de obras artísticas. Isabela contribuiu para despertar na gestão pública uma compreender mais ampliada acerca da participação efetiva da infância nas políticas culturais da Secretaria de Cultura do Estado. A gestora levantou a bandeira da infância enquanto categoria social, as crianças enquanto sujeitos portadores de direito de farto, e que, portanto, não devem estar “submetidos integralmente a decisões, quereres e mesmo equívocos de uma outra categoria social: os adultos.” (SILVEIRA, 2019, p. 253)

É fundamental, portanto, que os gestores culturais contribuam para sanear os constantes “apartamento desses sujeitos das decisões e dinâmicas sociais [que] termina por influenciar negativamente a construção de hábitos e práticas culturais”. (p. 252) Sendo assim, considerando o pensamento de Silveira, os gestores culturais possuem um papel fundamental na compreensão das especificidades da infância e no seu engajamento nas questões coletivas, com direito a voz ativa e a influenciar as decisões.

Nesse sentido, o Espaço Xisto Bahia passou a desencadear ações e projetos de mediação que traziam as crianças para o centro, passando de meros espectadores passivos de obras de arte construídas por adultos para eles, a produtores, gestores e críticos das ações que os abarcavam. Umas dessas ações de mediação cultural que alcançou bons resultados foram os Encontros de Domingo. A ideia era oferecer ações voltadas para a criança, mas que envolviam também seus pais e familiares, quebrando, portanto, o distanciamento existente entre crianças e adultos, gerando a oportunidade do diálogo e a interação inter-geracional. Começando pelo café da manhã, passando por produções e intervenções artísticas desenvolvidas pelas próprias crianças com a participação de seus acompanhantes, até assistirem um espetáculo e discutir sobre ele.

Outro projeto, ainda mais robusto, e com uma ampla ação de mediação envolvendo escolas e instituições infantárias, o Festival Xistinho que passou a promover atividades voltadas paras as várias etapas da infância. Embora o ápice e a ida ao teatro fossem no mês de outubro, o trabalho de mobilização das escolas e educadores e de mediação com as crianças se iniciava meses antes e não se encerrava com o fechamento das cortinas.

No mesmo livro Um lugar para os espaços culturais, em que se encontra o meu artigo sobre A poética da gestão em espaços culturais, encontramos um artigo da Isabela Silveira onde ela apresenta as Experiências em mediação cultural para a infância no Espaço Xisto Bahia. Essa mesma coletânea também traz um artigo da professora e mediadora cultural Poliana Bicalho que também traz luz sobre assuntos relacionados a Mediação cultural e formação de espectadores, descortinando a atuação do edifício teatral como espaço artístico-pedagógico.

Outros exemplos práticos sobre o envolvimento e centralidade da infância na gestão e políticas culturais são desenvolvidos por espaços culturais aqui de Salvador, destacando aqui alguns muito próximos. Como o Espaço Cultural Alagados que, assim como o Espaço Xisto Bahia, também é gerido pela Secretaria de Cultura do Estado através de sua Diretoria de Espaços Culturais. A gestora Jamira Alves, que também tive o privilégio de ser colega, desenvolve um importante trabalho envolvendo as crianças, adolescentes e jovens do Uruguai, bairro localizado na Península Itapagipana de Salvador. Em parceria com a Escola Comunitária Luiza Mahin, considerada como uma escola transformadora que tem como objetivo “formar cidadãos aptos para lutar por seus direitos, exercendo deveres em prol de uma sociedade justa e igualitária para todos”.

Outro espaço soteropolitano que merece destaque pela atuação envolvendo a infância é o Programa Avançar. Mantido pela Santa Casa de Misericórdia da Bahia, desde 2009, funciona em caráter de centro comunitário com o objetivo de contribuir para atenuar as necessidades sociais e culturais do Bairro da Paz. O espaço reúne uma série de projetos voltados à promoção social, incentivo à cidadania e protagonismo juvenil, além de qualificação profissional, oferecendo a crianças, adolescentes e adultos do Bairro da Paz aulas de informática, yoga, balé, desenho, inglês, dança afro, teatro, empreendedorismo, grafite e pintura em tela. Em 2017, o Avançar foi contemplado pelo Edital Espaços Culturais Boca de Brasa, o que contribuiu para o seu reconhecimento e aprimoramento enquanto espaço cultural. O que também está acontecendo com a Casa do Sol Padre Luis Lintner, em Cajazeiras V, também contemplada por este edital, em 2019. 

Só para sairmos um pouco dos limites geográficos de Salvador, em Nova Olinda, município do Ceará, a Fundação Casa Grande é um importante exemplo de poética da gestão que dá conta de um pleno protagonismo da criança dos diversos processos da gestão do espaço. Atuando como um Memorial do Homem Kariri, esta instituição tem o objetivo de proporcionar a crianças e jovens e seus familiares  formação social e cultural através da vivência em gestão institucional.

Nesses escritos, resolvi compartilhar um pouco dos sentimentos e desejos que tem reverberado em mim a partir das palavras ditas pelo olhar e pelo sorriso daquela criança negríndia da foto: Eu quero ser criança! E trazer à tona essa breve reflexão sobre a importância da centralidade da infância nas políticas públicas, especialmente, aquelas destinadas ao setor cultural. É de responsabilidade de nós adultos, artistas gestores e outros fazedores de cultura, implementadores de políticas culturais, darmos voz às nossas crianças, considerando-as como sujeitos sociais de direito, escutando-as e envolvendo-as nas tomadas de decisões, principalmente quando elas são as principais impactadas.  

Que essa energia infantil que nos envolve no entorno do Dia das Crianças, seja o 27 de setembro ou o 12 de outubro, nos ajudem a criar os meios necessários para que as nossas crianças continuem sendo crianças, até mesmo depois de terem (termos) crescido. O Curumim-Erê que me habita, esse corpo afro-indígena que sou, saúda e consagra a infância ancestre que habita cada um dos se dedicaram a ler essas minhas utopias.

Tempo-Erê
Lembro bem
Daquele Tempo-Erê
Que brincava comigo
Aquele menino peralta,
Levado, traquino, travesso
Que me fazia
E ainda hoje me faz
Correr picula pra alcançá-lo
E vasculhar os esconderijos
Mais inusitados de minha existência
Um, dois, três
Salve eu
Comportadamente sonso
Sonsamente sereno
Serenamente curioso
Curiosamente astuto
Viva eu, viva tu
O Tempo da minha
Santa inocência infantil
Pulando amarelinha
Corda, elástico
Com o Tempo
Ora sendo criança
Ora brincando de ser adulto
Médico, professor
Cantor de trio elétrico
Sonhos de profissão
Mesmo sabendo
Que não podia meter o bedelho
Na conversa dos mais velhos
Fazia boca de forno
E os adultos paralisados
Se faziam de estátuas
Para ouvir a opinião
Do menino-ancião
O Tempo-Amigo-Tempo
Segue a acompanhar
Cada movimento que faço
Nas subidas e descidas
Nessa gangorra que é viver
Cada volta da roda gigante
Que o mundo dá
Ao redor de mim
Me faz rodopiar
Dou saltos nos trampolins
Das novas experiências
Do existir
Que em mim
Se revela
A cada dia
Em novas marcas
Dessa minha convivência
Com o Tempo
Eterna a cada nova estação
Me germinando, me brotando
Me florescendo, me despetalando
Me frutecendo, me amadurecendo
Me despencando do pé
Me desfolhando
Me fazendo renascer
Num infinito espiral
De ciclos e reciclos
Que me faz continuar sendo
A mais terna e feliz criança
Ao lado daquele
Meu pra sempre
Meu amigo Tempo
E eu…
(Prossigo!)


CHICCO ASSIS transita, há 20 anos, por várias áreas do campo cultural. Multifacetado e inquieto, é artista, pesquisador, produtor e gestor cultural. Mestre em Cultura e Sociedade ( UFBA), especialista em Gestão e Políticas Culturais (Universidade de Girona/ Itaú Cultural) e graduado em Comunicação Social (UCSal). Desde 2006, atua como gestor de espaços culturais. Atualmente, assume a Gerência de Equipamentos Culturais da Fundação Gregório de Mattos. É um dos criadores do Cine Janela.