Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

Falhei, Marie Kondo

A pessoa capaz de jogar isso fora só pode ser um monstro. Desculpa, Marie Kondo, mas não vai rolar.

Enxergo agora que nem filme o presente me sendo entregue embalado num papel pardo, como se o embrulho mal feito fosse capaz de protegê-lo das 10h de voo.

Eu achei que você fosse gostar mais desse, o outro era daquele bem colorido, sabe? Sabia. Me conhecia muito bem. Quase quatro anos, afinal.

O embrulho trazia um daqueles galinhos portugueses de cerâmica, nas cores dos famosos azulejos. Achei muito bonito, apesar de não saber exatamente onde colocá-lo.

Gostou? É claro que eu gostei, mas riu da minha resposta e voltou à porta do apartamento. Abriu, saiu e entrou de novo com uma sacola enorme e me entregou. Perfume, pacotes e mais pacotes de chocolate importado, outros souvenirs e comida típica portuguesa que acho que você não vai gostar, mas experimenta primeiro, viu? Fiquei que nem besta. O galinho ficou lá no canto da mesa enquanto os chocolates tomavam conta do espaço todo. Na próxima você também vai e a gente compra junto. Minha família já te convidou e estão te esperando.

Menos de um ano depois, o perfume que eu pouco usei por ser muito forte – talvez ele não me conhecesse tanto assim, ou talvez tenha comprado pelo frasco, agora jamais saberei –, mas ainda guardava, foi morar no armário e no pescoço da minha tinha. A alheiro, juro por deus, fez aniversário de dois anos no meu congelador em fevereiro. Mas o galinho, Marie Kondo, eu não consegui.

O bichinho passou mais de um ano olhando meus livros na estante, já tendo passado por uma cirurgia de recuperação com Super Bonder após uma queda – já estava velhinho, também. Não me lembro como se deu sua aposentadoria do posto de guardador, mas foi recente. Parecia prever a pandemia e o isolamento social, mas se manteve seguro quanto à possibilidade de ir para alguma sacola de bazar. Daqui têm saído muitas pós-pandemia, Marie Kondo, porque, como você deve saber, além de ter ganhado uns quilinhos e não me reconhecer em mais nenhuma peça de roupa, eu reli seu livro

Hoje o galinho mora numa caixa azul em cima do meu armário, junto com outras lembranças que não consigo jogar fora. Dei um fim até naquela bolsa laranja que ganhei de aniversário da minha melhor amiga, Marie, mas no galinho, não.

A pessoa capaz de jogá-lo fora só pode ser um monstro. Desculpa. Falhei. Achei que seria interessante me justificar pessoalmente por esse meu perrengue chique.


MARIA LUIZA MACHADO é escritora, poeta e psicóloga. Flerta com a Psicanálise; lê compulsivamente. Tem dois livros publicados: Algumas Histórias sobre a Falta (2018) e Todos os Nós (2019). Organizou a antologia Corpo que Queima de poetas baianas (2019).