Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

Sobre enquanto transitava

Tenho uma teoria nem um pouco fundamentada cientificamente que mulheres com cabelo cacheado e crespo atraem umas às outras, e para além dos grupos, fóruns e perfis na internet em que nos encontramos para debater a melhor forma para cuidar de nossos tipos de cabelo – já que, até poucos anos, tudo era na base da tentativa e erro, e não havia profissionais nem mães, pais e cuidadores que pudessem explicar ou minimamente manusear os fios com carinho. É uma atração que acontece nas ruas, numa loja, num bar; uma conversa de pouquíssimos minutos que se inicia com elogios e termina com sorriso grande no rosto. Bom, pelo menos por aqui é meio assim. E pelo menos comigo, onde quer que eu esteja, será assim também – puxar conversa e pedir informação com desconhecidos na rua sem nenhuma vergonha é uma das minhas habilidades.

E, assim como as tantas mulheres com esses tipos de cabelo que eu atraí – aliás, tantas não, todas -, eu alisei meu cabelo até poucos anos atrás. Eu tentei diversas químicas, as consagradas, as mais recentes. Eu ouvia, das mesmas pessoas que diziam que meu cabelo cacheado era feio, que meu cabelo alisado estava “acabado e ressecado de tanto alisar”. Vi recentemente fotos minhas de quando era criança – antes de alisar, pois comecei a fazer os procedimentos ainda nessa fase – e me perguntei “mas por que deixamos isso acontecer com nossos cabelos?”.

A resposta vem imediatamente: por causa de tudo. Dos apelidos; do bullying; dos choros; da falta de paciência em casa dos familiares de quem você herdou o cabelo; da comparação com os familiares de quem você não herdou o cabelo liso e loiro; das dores; do puxão das escovas; dos nós que se formavam e não se desmanchavam, nos fazendo perder um punhado de cabelo para a primeira tesoura cega que achasse na frente; a falta de produtos e inexistente vontade, da indústria ou das pessoas próximas, em sair buscando uma solução para substituir o L’oreal Kids, que só mostrava crianças de cabelo liso em sua propaganda entre os desenhos (e o pensamento “será que meu cabelo fica liso assim, se eu usar?); e, é claro: o não reconhecimento.

Falar de não reconhecimento sendo uma mulher lida como branca é esquisito. Vejo minha cor aos arredores, mas meu cabelo, até pouco tempo, nunca via. Mas eu também não me reconhecia no espelho quando me via – porque sim, apesar de meia hora com o couro cabeludo ardendo por causa do relaxamento, quando acabava o procedimento e me olhava no espelho, não me via. Ou via, mas não gostava. Alisar o cabelo doía fisicamente tanto quanto pentear um cabelo cacheado sem o mínimo de cuidado, a diferença era que, fora do salão, na escola, o cabelo alisado não me causava mais dores.  

Imaginar que uma menina cresceu sentindo dores piores que as minhas, quando criança, pelo fato de ser negra e por isto ter seu cabelo chamado de outros “apelidos”, com outras referências, é dilacerante. Porque a inadequação que eu sempre senti, para mim, já era o ápice do mal estar. Mas, se pensarmos de forma mais ampla, não era. Eu só tive uma pequena noção disso aos quatro ou cinco anos quando, na escola, só existia mais outra menina que andava com os cabelos cacheados para trás todos os dias como eu. Eu ainda tinha alguns amigos, mas ela não. Ela era negra. E provavelmente deve ter alisado seus cabelos em algum momento, talvez até mais cedo que eu.

Lembro com frequência de frases que ouvi e de quem ouvi quando a vontade de deixar meu cabelo livre das químicas surgiu. Era como se aquilo que é grudado em minha cabeça estivesse também grudado na daquelas pessoas, a maioria muito próximas, de tanta “preocupação” e invasão. Crescer com os cabelos cacheados, frequentar escolas em que seus colegas apontavam o dedo para sua cabeça era muito doloroso; ouvir, já adulta, quase 20 anos depois, o que você deve ou não fazer com seu cabelo, além de doloroso, chega a ser enlouquecedor. De todas, eu destaco a que ouvi mais vezes “pode ter o cabelo cacheado, mas não precisa ser assim”. Assim como? Volumoso? Frizzado? Seco? Poroso? Vocês conhecem algum cabelo cacheado que não seja naturalmente desse jeito? Se disserem que sim, estão mentindo, porque não existe. Então sim, meu cabelo cacheado vai ser assim, e é realmente uma pena que isto seja algo que incomode alguém.

Mas ao contrário do que algumas pessoas pensam (sobretudo minha mãe, algumas vezes já conversamos sobre isto), não foram questões ideológicas que me fizeram abandonar o cabelo liso. O medo das progressivas e os perigos à saúde foi a primeira coisa, e depois, o calor. Viver em Salvador, lavar o cabelo quase todos os dias e, em todas as vezes levar quase duas horas para escovar, pranchar, passar reparador, fazer um coque e deixar por mais uma hora para que fique com umas “ondas naturais” e ainda ter que viver, é muito difícil. Teve um dia que desisti. Estava com calor. Precisava estudar. Não queria ficar tanto tempo na frente do espelho.

Mandei no grupo das colegas da faculdade, meio que me desculpando, avisando que amanhã eu estaria diferente. Que não tinha dado tempo de escovar o cabelo depois do banho.

No outro dia, ninguém reparou.

Só uma amiga que, não aleatoriamente, tem cabelo crespo, parou e disse: tá muito melhor!, com um sorriso no rosto. Até hoje lembro do dia.

Já tive momentos em minha vida pós-transição capilar que ouvia que meu cabelo parecia ser o culpado por outras questões que eu tomava para mim mesma como problemas que me afligiam – “é que esse cabelo assim também dá a sensação de um rosto mais gordo, né? O liso, não”. Foi a resposta que eu recebi uma vez quando comentei que estava insatisfeita com meu peso.

Me entristece parar para pensar que as frases proferidas vieram todas de pessoas muito próximas e que o meu “basta” demorou muito a chegar. Hoje não ouço tais comentários com tanta frequência, mas não acredito que o motivo seja porque “aceitaram” ou passaram a respeitar o meu cabelo e a minha escolha de usá-lo da forma que ele é, mas sim para evitar discussões – que sim, a partir de determinado momento, passei a comprá-las todas. Não sei quando foi que passei de uma mulher que ouve tudo e chora no quarto depois para a que rebate, inclusive familiares. Mas ele aconteceu, e sou grata por isto. Foi mais uma importante transição.

Desde que parei com os alisamentos, os químicos e os térmicos, meu cabelo nunca mais formou nenhum nó que só sumia com uma tesourada. Eles ainda existem em minha cabeça, mas são desfeitos com cada mulher de cabelo cacheado ou crespo que atraio com esse campo de força invisível que a gente constrói. Sorrimos sempre umas para as outras.


MARIA LUIZA MACHADO é escritora, poeta e psicóloga. Flerta com a Psicanálise; lê compulsivamente. Tem dois livros publicados: Algumas Histórias sobre a Falta (2018) e Todos os Nós (2019). Organizou a antologia Corpo que Queima de poetas baianas (2019).