Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

Olhai as marisqueiras sobre o mar da Bahia

Ao longo do tempo os oceanos e os mares despertaram temores. Eram lugares quase que inacessíveis para alguns viajantes, enquanto para outras culturas eram caminhos a ser desbravados para garantir a sobrevivência e a conquista de novos territórios. Longe das profundezas e dos azuis abissais, que quase beiram o escuro extremo, nos litorais a realidade era outra, onde a vivacidade e a pluralidade de encontros há tempos marcam presença.

O encontro de terra e mar é por si só o limiar de começos ou evidências de um fim, depende do ponto de vista. Foram saindo da terra firme da Europa que muitos se lançaram em alto mar, ou contornaram continentes, para aventuras que mudaram os limites do globo e até mesmo dividiram o mundo entre espanhóis e portugueses. Antes disso chineses e polinésios, isso sem se aprofundar nos fenícios, já tinham desbravado águas desconhecidas legando feitos ousados.

O mar ao longo de todos esses séculos despertou o interesse dos homens e mulheres. As águas salgadas davam e dão frutos para aqueles que logo cedo saem para pescar. No Mediterrâneo, no litoral Africano, Asiático as águas também moldaram impérios, destruíram cidades. Foi no mar que um saveiro saiu e nunca mais voltou, lembrou o escritor Jorge Amado. 

Já sabemos de toda essa importância dos mares, os temores que despertou, e a relação com os homens, mas agora é hora de pontuar sobre os encantamentos. É no mar que muitos se inspiram adentrando em pensamentos e nos mais recônditos caminhos da mente. Foi por esses mares que muitos chegaram e se encantaram com a esperança da terra a vista, enquanto outros se depararam com os horrores do seu tempo. Mares e litorais são sempre caminhos de incertezas que dão em portos com longas camadas de histórias.

‘Marisqueiras’, serigrafia do artista plástico Carybé | Foto: Divulgação

É em um desses litorais que encontramos as personagem que figuram a imagem desse texto. Mulheres, mar e mariscos se tornam um só em sinergia imagética pintada por Carybé. O elegante jogo de cores, em nuances sensíveis de verde, azul e negro, destacam as mulheres e seu reflexo em um universo de histórias, tradições e tempos. A imagem instiga um encontro surrealista entre as personagens e seu reflexo em um solo instável onde seu trabalho garante os dias no por vir. Nossa visão é obrigada a primeiro ler o cenário de uma maré onde muitos caminharam, seguindo a tradição de leitura do ocidente da esquerda para a direita, até encontrar as personagens curvadas “flutuando” sobre as marés da Baía de Todos os Santos, quem sabe.

As marisqueiras são uma entre outras tantas que por ali passaram olhando e catando os mariscos da Baía. Personagens que devem ter seus temores, encantamentos e esperanças, tendo ao fundo o mesmo mar de incertezas, projeções e conquistas de outros tantos. Mar que jogou na praia embarcações, pessoas, vontades e desejos, pedacinhos de tempo em cristais de areia e mariscos. O tempo em sua sabedoria inalcançável nos mostra que também é preciso olhar as marisqueiras sobre o mar da Bahia.

Como rendeiras traçamos nossas vidas na doce ilusão em completar toalhas, catamos fios em traçados tortos e linhas frágeis. Não mais olhamos os mares como aqueles que tempos atrás imaginaram o fim do mundo. Olhamos os mares com a certeza do nosso fim catando mais tempo, como as marisqueiras catam mariscos.


RAFAEL DANTAS é historiador, professor e artista plástico. Pesquisador na área da cultura material e iconografia. É um apaixonado pelos encantos de Salvador, do Egito e da Bahia. Também dedica seu tempo em registar e contar nossa história em desenhos.