Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

As torres e os sinos do Mosteiro de São Bento da Bahia: fragmentos de memórias e esquecimento

Passear em Salvador no século XIX era contemplar uma paisagem única, onde duas cidades, uma próxima ao nível do mar e a outra elevada, disputavam pela atenção de viajantes e dos olhares mais atentos. Desde o século XVIII, com as obras de aperfeiçoamento das igrejas da capital, as torres com seus sinos passaram a dominar ainda mais o frontispício da Lisboa revisitada sudanesa. No decorrer do século seguinte outro templo passou a se destacar ainda mais na paisagem da Cidade Alta, lugar do reduto de religiosos que acompanharam a história de Salvador.

O Mosteiro de São Bento acompanhou a história da Bahia desde o século XVI. No ano de 1581 foi determinada a fundação do Mosteiro e no ano seguinte nove monges chegaram no Brasil, na época do abade Antônio do Latrão Ventura. A Ordem de São Bento na Bahia foi a primeira casa beneditina no Brasil. Durante a invasão holandesa em Salvador, em 1624, o templo foi ocupado; parte significativa do mosteiro já estava erguida. O atual templo, lembra Maria Helena Flexor [Igrejas e Conventos da Bahia, IPHAN], foi iniciado na regência do abade Mâncio dos Mártires no ano de 1656. Ao longo de todos esses anos foi utilizado o emprego de mão de obra escravizada. Adentrando o século XVII novas obras apresentaram uma nova nave com arcos e demais estruturas para sustentação da cúpula seguindo planta barroca italiana. Pedras de arenito da Bahia foram empregadas na fachada e durante o século XVIII e XIX pedras de Lioz foram trazidas para Salvador. A parte mais elevada da cúpula, o zimbório, data de 1854.

Vista panorâmica com o Mosteiro de São Bento dominando a paisagem. Postal Joaquim Ribeiro & Comp. Década de 1920

As belas torres foram construídas no decorrer do século XIX, uma em 1877 e a outra em 1880. Internamente um riquíssimo conjunto de peças sacras e mobiliário decoram cada um dos ambientes e o Museu, atualmente fechado. O Mosteiro de São Bento guarda um dos maiores conjuntos em arte sacra da Bahia. A Biblioteca do Mosteiro foi iniciada em 1582, guardando milhares de títulos e mais de 20.000 livros raros datados desde o século XVI. Além das peças sacras o mosteiro possui um valioso acervo de telas de diversos nomes das artes plásticas da Bahia, entre eles: Carybé, Janner Augusto e Diógenes Rebouças.

Além do referencial religioso o Mosteiro também serviu de enfermaria durante as epidemias que assolaram Salvador sempre em atenção aos anseios de cada época. No ano de 1998 o Papa João Paulo II elevou a igreja do Mosteiro de São Bento a condição de Basílica Menor de São Sebastião. Foi tombado pelo IPHAN em 1938.

Um referencial urbano
Com o passar dos séculos o templo beneditino tornou-se um ícone na paisagem urbana da Cidade do Salvador. No decorrer dos anos de 1800 com a construção da cúpula e torres o Mosteiro se destacou ainda mais na velha cidade da Bahia. Naquela época ainda era possível desfrutar da bela paisagem ainda dominada pelas torres sineiras das igrejas, desempenhando função de “alarme” litúrgico das obrigações religiosas, “relógio” do ir e vir das pessoas e referencial urbano.

Desde sua criação o Mosteiro de São Bento esteve localizado muito próximo aos limites da antiga cidade fortificada, no início dos caminhos para a região Sul. Com crescimento urbano e a ampliação dos antigos limites o mosteiro é inserido definitivamente no conjunto de casarios que compunham a cidade. Ainda hoje é um símbolo de fé, arte e resistência na Avenida Sete de Setembro.

Na primeira metade do século XX as obras de alargamento para construção da Avenida Sete, no Governo J. J. Seabra, ameaçaram demolir parcialmente o mosteiro para passagem da via que era símbolo de modernidade. Graças a resistência religiosa e popular na época o mosteiro foi salvo permanecendo no mesmo lugar. Ainda hoje é visível que no trecho próximo ao Mosteiro a avenida é um pouco mais estreita.

Os sinos do Mosteiro
Do alto das torres do Mosteiro vislumbra-se a Ladeira de São Bento e uma belíssima vista para a Baía de Todos os Santos. O campanário é formado por 5 sinos que tocavam diariamente. Hoje, já silenciados, com exceção de um que ainda toca diariamente, os sinos ainda guardam os séculos de história que eram tão característicos na Bahia.

No século XIX os sinos do Mosteiro juntamente com os sinos da Conceição da Praia, e de outras igrejas do Centro Antigo de Salvador, compunham um repertório de avisos litúrgicos e sinais sonoros nas relações sociais dos habitantes de salvador. O caminhar do tempo e suas consequentes mudanças tecnológicas foram paulatinamente silenciando os velhos alarmes da Bahia.

Mosteiro e cidade: fragmentos de memória e esquecimento
Há muito tempo o estudo das cidades e também das paisagens, atrelado a cultura material, toma a vida de pesquisadores e historiadores. Um dos primeiros nomes a se dedicar a história urbana foi Fustel de Coulanges (1830 -1889) discorrendo sobre a cidade antiga. Já falando sobre a cidade e a modernidade destacando a vida dos indivíduos com suas autonomias e singularidade na vida moderna, podemos citar George Simmel (1858 – 1918), um dos primeiros a discorrer sobre as transformações e os impactos do crescimento das urbes face as heranças históricas e outras nuances.

Na Bahia a historiadora Consuelo Novais Sampaio e o Cid Teixeira, foram um dos expoentes em detalhar as transformações urbanas e a história visual de Salvador. Em seus trabalhos a capital é desnudada face as empreitadas de diversos agentes no decorrer do século XIX e XX. Novos equipamentos urbanos, reformas de vias e suas consequentes demolições, juntamente com os caminhos para a modernidade, traçam não só o panorama de iniciativas politicas de cada época, como também pontuam o impacto na vida das pessoas.

É de se imaginar, e instigar que novas pesquisas aconteçam, em como a construção das igrejas, o toque dos sinos, e o impacto dessas edificações no espaço urbano, ajudaram a moldar a cidade juntamente com homens e mulheres. O toque dos sinos do Mosteiro de São Bento ao longo de décadas foi um referencial na freguesia em que estava e em todo o seu entorno. Suas torres e cúpula foram a mais alta edificação de toda a região por décadas, até a construção dos primeiros prédios no desenrolar dos anos 20 e 30 do século XX. Todos esses pontos estabeleceram na vida urbana referencias do ir e vir, elos de lembranças nas memórias e no esquecimento dos habitantes. Para além das paredes em alvenaria, pedra e arenito, temos todo um impacto que atravessa o tempo e permeia na memória e nas ações do passado.  


RAFAEL DANTAS é historiador, professor e artista plástico. Pesquisador na área da cultura material e iconografia. É um apaixonado pelos encantos de Salvador, do Egito e da Bahia. Também dedica seu tempo em registar e contar nossa história em desenhos.