Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

Abram alas de uma vez por todas: elas querem e vão passar

Não nos faltariam nomes e exemplos para destacar e enaltecer a presença de mulheres na música brasileira, em alusão e reverência ao dia 8 de março. Independente do gênero ou ritmo, este País foi agraciado, no transcorrer dos séculos, com inúmeras e expressivas personalidades femininas no cenário musical. E foi assim, das ondas do rádio às nuvens do streaming, que nos tornamos – cada vez mais, mas bem menos do que já poderia ser – um Brasil cantado por elas. Nada disso, entretanto, foi conquistado e desbravado sem que incontáveis barreiras (sociais, culturais, regionais, profissionais, étnicas, dentre tantas outras) fossem derrubadas. Um Brasil cantado por elas não se traduz em um Brasil cantado para elas.

“Atentar para as representações de gênero na música popular é importante não apenas para entender como essas identidades são expressas num dado produto cultural, mas, também, porque esse artefato tem adquirido cada vez mais força ao longo da história da indústria do entretenimento. A centralidade da música popular na rotina urbana faz com que ela se configure como um poderoso meio de significação e, portanto, bastante disputado”, explica Isabela Senra, em sua dissertação para o mestrado em Comunicação Social. Se há uma disputa em jogo, então, existe ainda um questionamento fundamental a ser respondido: qual posição a mulher ocupa neste cenário erguido por estruturas enraizadas e preestabelecidas?

Por trás de qualquer artista que grave uma canção ou que se apresente ao público, existe toda uma engrenagem que se sustenta em torno do capital. Em 2019, o DATA SIM – núcleo da Semana Internacional de Música de São Paulo (SIM/SP) voltado à pesquisa e organização de dados e informações sobre o mercado musical no Brasil – analisou a participação feminina neste setor de trabalho. O mapeamento resultou no relatório Mulheres na Indústria da Música no Brasil: Obstáculos, Oportunidades e Perspectivas, dirigido por Daniela Ribas, doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em Gestão e Políticas Culturais pelo Itaú Cultural/Universidade de Girona (Espanha).

Ao longo das 56 páginas, diversos questionários exploraram perfis socioeconômicos e profissionais, variáveis sociodemográficas, fontes de renda, condições e jornadas de trabalho, vínculos empregatícios, níveis hierárquicos e projeções de carreira. “A maior parte de respostas vêm do Sudeste (71,2%), região que concentra boa parte da indústria da música no Brasil. Embora a produção artística brasileira seja descentralizada e diversa, a indústria e suas profissionais concentram-se na região Sudeste, evidenciando as desigualdades regionais do país”, aborda a pesquisa, que enfoca ainda a questão racial. “Mesmo muitas das atuais artistas emergentes sendo negras, a maior parte das profissionais é de origem branca (70,3%). Apenas 10,9% delas se identificaram como pretas e 15% pardas. Juntas, essas duas categorias representam apenas 25,9% do total de respostas. Esse perfil indica quais aspectos que devem ser trabalhados para a construção de um mercado menos desigual”, sinaliza o relatório.

Foto: Reprodução

De volta aos estudos de Isabela Senra, a autora corrobora os dados reunidos pelo DATA SIM e acredita que a presença da mulher na indústria fonográfica, e do entretenimento de modo geral, serve a interesses masculinos. “Considerando-se o universo da produção musical inserido no contexto social mais amplo, cujos sujeitos privilegiados são os homens, podemos pensar que eles têm mais autonomia, acesso aos meios de produção, possibilidades de ascensão no mercado musical, enfim, mais facilidade para investir nessa carreira artística”, afirma a pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Os privilégios aos quais ela se refere também recaem no campo daquilo que é escrito e interpretado no Brasil. Em 2018, a União Brasileira de Compositores (UBC) passou a publicar o relatório anual “Por Elas Que Fazem a Música”, um levantamento da participação feminina no segmento tendo como referência a base de dados da UBC – associação sem fins lucrativos que, desde 1942, reúne em seu quadro de filiados compositores, editores, intérpretes, músicos e produtores fonográficos, para gerir coletivamente seus direitos autorais. Em sua última edição, o documento apontou que, dentre todos os associados da UBC, somente 15% são mulheres. E mais: em 2020, a cada R$ 100,00 distribuídos, o valor destinado a elas foi de apenas R$ 9,00.

“Não podemos deixar de mencionar, com relação à autoria, o nome extremamente expressivo de Chiquinha Gonzaga, que nasceu em 1847 e estreou profissionalmente como compositora em 1877, atuando até a década de 20”, relembra Valéria Pereira, doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). “Mesmo na década de 60, um tempo de rupturas em vários aspectos, a contaminação por ideias masculinas anteriores prevalece em relação às novidades daquele momento”, comenta a acadêmica, no artigo “A representação da mulher na música popular brasileira: eu poético e voz autoral”, que traz reflexões sobre os discursos que construíram a imagem feminina no cancioneiro nacional.

Pois não se esqueça: um Brasil cantado por elas não se traduz em um Brasil cantado para elas. E nem mesmo sob a ótica delas. Tal como a doutora Valéria Pereira, a professora Valeska Zanello, do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB), também abordou a representação da mulher na música popular, durante uma live realizada em 2020 – com ênfase na temática das músicas sertanejas (gênero mais tocado e consumido no País) pensadas enquanto reprodutoras de valores e estereótipos. “O mundo sertanejo ainda é um mundo masculino. E muito dos consumidores são consumidoras. O quanto que essas músicas são fármacos, uma espécie de remédio para o nosso dispositivo amoroso?”, questiona Valeska.

O 8 de março é um Dia Internacional que, muito além de uma data no calendário, é mais uma oportunidade de reflexão conjunta com a qual a sociedade se depara. A música originada, escrita, cantada, disseminada e lucrada em solo brasileiro não pode se furtar desse exame de consciência por parte de todos aqueles e aquelas que pertencem a essa cadeia produtiva. Porque música só existe por ser substantivo feminino: seja ao pé da letra ou ao pé do ouvido.

JOÃO CAMILO é jornalista e Técnico-Administrativo no Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT). Nascido em Aracaju (SE), já morou na Bahia e hoje reside em Brasília. Apaixonado desde sempre por música e pelo Palmeiras, e desde 2018 também pelo sobrinho Cauã.