Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

Te dou parabéns

“Ai, meu Jesus, que negócio é esse daí? É mulher? Que bicho que é? Prazer, eu sou arte, meu querido. Então pode me aplaudir de pé”. Inicio este texto com um trecho de Dona, canção cujo clipe já possui mais de seis milhões de visualizações no YouTube, com letra composta por Daniel Garcia Felicione Napoleão e cuja interpretação se dá pelo seu alter ego: a drag queen Gloria Groove. Podemos e devemos aplaudir Daniel e Gloria: ele, pelo talento abarcado; ela, pelo talento representado; ambos, pelo recado dado. “Pra um dia contar a história da mina que mudou tudo. Que veio da Zona Leste pra virar dona do mundo”. Ao Daniel, a glória.

“Eu sou um homem, cisgênero, gay, e esse é o meu trabalho, drag é uma expressão artística. Eu não sou uma mulher 24h por dia, esse é o meu trabalho, é uma coisa que eu realmente levo como estética para dentro do meu trabalho no mercado fonográfico. E, depois que eu consegui unir drag à música, foi quando eu realmente consegui me encontrar no mundo, encontrar um lugar onde eu podia canalizar as minhas referências do jeito que eu gostaria de fazer desde sempre, mas que eu não sabia que era possível, pois eu não conhecia a arte drag” [Daniel/Gloria, em entrevista realizada em 2017].

Chegou a vez de a rainha brilhar, de ser o holofote e de se orgulhar. De não mais ser vista como entretimento exótico e caricato, reservada a ambientes guetificados. “Podemos registrar um grande crescimento da cena drag, ocupando especialmente o cenário musical brasileiro, a citar Glória Groove e Aretuza Lovi que, assim como Pabllo [Vittar], muito têm investido em parcerias com artistas renomados do cenário pop nacional”, afirmam os pesquisadores Djalma Thürler e Armando Azvdo, em publicação científica para a Revista Crioula, da Universidade de São Paulo. Se, em 2020, para falar (com a devida honestidade) de música pop no Brasil é imprescindível evidenciar a cena drag, este fruto tem sementes germinadas no século passado.

Nos anos 1960, as Divinas Divas – especialmente na figura da travesti Rogéria – já evocavam o transformismo no Brasil, com todo o glamour, representatividade e revolução. Na década seguinte, foi o surgimento do grupo carioca Dzi Croquettes o responsável por confrontar os valores da época, com seus espetáculos de teatro e dança, em plena vigência da ditadura militar. A existência daquelas maquiagens e figurinos já era, por si só, um comportamento de resistência. Tal qual faz hoje Pabllo Vittar, paralelamente e quase cinco décadas depois, ao invadir os televisores das famílias tradicionais brasileiras em pleno Domingão do Faustão.

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“Ainda que com uma vida curta (1972 – 1976), o grupo Dzi Croquettes foi a ponta de lança para movimentos artísticos contestadores de um status quo mantido por agentes dominantes e repressores. As performances do grupo integraram práticas culturais e de sociabilidade que fomentaram certo tipo de cena musical que favoreceu a abertura de caminhos para as performances queer na cena musical brasileira”, explicam os professores Carlos Magno e Felipe Viero, em artigo para a revista Contracampo, da Universidade Federal Fluminense. “Ney Matogrosso destacou que a influência dos Croquettes ocorreu tanto nas performances do grupo Secos e Molhados quanto em sua carreira solo”, complementam os autores.

Se os anos percorridos distanciam cada época pelo fator temporal, suas manifestações artísticas se assemelham e se reconectam pelo enfrentamento moral. Em um Brasil governado por mentalidades como a de Marcello Crivella e Jair Bolsonaro, ter uma drag queen, transexual ou travesti em alta no mercado fonográfico e publicitário é um ato político­­­­. “Não podemos desconsiderar também que, por vezes, as avaliações de caráter artístico se misturam com o incômodo de parte de parcelas mais conservadoras da sociedade com o fato de uma artista drag, que no seu cotidiano se comporta como um gay afeminado, ter alcançado um sucesso tão grande no país”, criticam Tess Chamusca e Edinaldo Mota Junior, do Centro de Pesquisa em Estudos Culturais e Transformações na Comunicação da Universidade Federal da Bahia.

Estamos aqui falando do país que lidera o ranking mundial de assassinatos de transexuais. Dados da ONG Transgender Europe (TGEu) mostram que, de janeiro de 2008 a junho de 2016, pelo menos 868 travestis e transexuais foram mortos no Brasil – o México, em segundo lugar, alcançou 259 mortes. Até o último dia 31 de outubro, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) registrou 151 assassinatos de pessoas trans nos dez primeiros meses de 2020 – isso já representa 22% a mais de mortes do que todo o ano de 2019, quando foram contabilizados 124 assassinatos. “Com uma média de 15,1 casos por mês, em 2020 tivemos uma pessoa trans assassinada a cada 48h”, calcula a Antra em seu quinto boletim bimestral.

 A Linn da Quebrada salvou a minha vida. Me fez acreditar na minha própria existência

Lina Pereira, em entrevista ao programa Conversa com Bial

São dados alarmantes como esses que dão ainda mais significado e importância para este atual momento da música pop nacional. De um lado, Pabllo Vittar, Gloria Groove, Aretuza Lovi e Lia Clark comandam a cena drag; do outro, artistas trans se destacam ano após ano – desde Candy Mel (ex-integrante da Banda Uó), passando por Assucena Assucena e Raquel Virgínia em As Baías (ex-As Bahias e a Cozinha Mineira), à voz marcante de Liniker ou mais recentemente pela cantora Urias. Na música A Lenda, a travesti Linn da Quebrada toca novamente na ferida das palmas: “Me arrumei tanto pra ser aplaudida, mas até agora só deram risada“. É hora de abrir os ouvidos, os olhos e, principalmente, a cabeça. E, por que não dizer, até mesmo os leques.


JOÃO CAMILO é jornalista e Técnico-Administrativo no Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT). Nascido em Aracaju (SE), já morou na Bahia e hoje reside em Brasília. Apaixonado desde sempre por música e pelo Palmeiras, e desde 2018 também pelo sobrinho Cauã.