Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

Sou do mundo, sou Minas Gerais

“E mais uma vez penso que o Clube não pertencia a uma esquina, a uma turma, a uma cidade, mas sim a quem, no pedaço mais distante do mundo, ouvisse nossas vozes e se juntasse a nós”. Era 1996 quando Milton Nascimento escreveu esse posfácio para o livro Os Sonhos Não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina, de autoria do seu amigo e parceiro Márcio Borges. Somente agora, 24 anos depois, descobri esta obra literária para, então, poder refletir e compreender o que Milton dissera ali. Se um dia ele cantou que todo artista tem de ir aonde o povo está, cada um de nós também faz parte daquele Clube. E, hoje, aqui é a nossa Esquina.

Esse lugar de encontros e conexões, tal como o cruzamento das Ruas Divinópolis e Paraisópolis, em Belo Horizonte. Aquela capital onde uma juventude despretensiosa fez dos anos de chumbo um momento para cantar, tocar, compor e sonhar. Mesmo em meio a tantos gases lacrimogênios que sufocavam vozes, letras e melodias, ainda valia sonhar. “O Clube da Esquina teve significativa importância no contexto cultural da ditadura, com a formação de uma nova linguagem sonora e manifestações críticas em relação à situação política”, afirma a pesquisadora Cauhana Tafarelo, no artigo “O Clube da Esquina no contexto ditatorial”.

Minas reunia todo o tipo de inspiração: as paisagens das montanhas, as cidades históricas, as esculturas de Aleijadinho, a obra de Guimarães Rosa, a poesia de Drummond. A atmosfera cultural ideal para aglutinar aquela miríade musical. De BH, brotou a vocação dos irmãos Márcio e Lô Borges; de Montes Claros, a veia poética de Beto Guedes; de Três Pontas, a sutileza dos arranjos de Wagner Tiso; de Caldas, o dom nato para a composição de Fernando Brant (1946-2015) – que definiu os Gerais como “essa mistura maluca de mato e cidade, interior e metrópole, missa cantada e cantigas de roda, rádio Nacional e viola na roça, quintal e mundo”. Nesse caldeirão, ainda caberia uma pitada fluminense: de Niterói, o lirismo de Ronaldo Bastos; e, da capital do Rio de Janeiro, viria o mais mineiro de todos os cariocas.

O Milton é um estado de espírito

Criolo, em depoimento à série documental Milton e o Clube da Esquina, exibida pelo Canal Brasil

Nada mais seria como antes depois que, ainda aos dois anos de idade, Bituca mudou-se para Minas Gerais. É de Elis Regina a autoria da célebre frase que, “se Deus cantasse, seria com a voz do Milton”. Faltavam suas cordas vocais para ancorar toda aquela embarcação mineira de talentos. Para levar o prêmio de melhor intérprete e de 2º Lugar no Festival Internacional da Canção de 1967, quando apresentou Travessia ao mundo, soltou a voz nas estradas e nunca mais parou. Até 1972, Milton havia lançado quatro LPs, dividindo cada vez mais a autoria das canções com seus companheiros de estrada. Já reconhecido nacionalmente e prestigiado pela gravadora, ele convidou Lô Borges para dividir a assinatura do seu quinto álbum de estúdio: um LP duplo, com 21 faixas, na mais concreta celebração da amizade na discografia brasileira.

“Dentro da imensa diversidade sonora produzida até então, o Clube da Esquina ressituou o espaço da MPB certificando, com qualidade, a incorporação dos diversos elementos propostos pelos movimentos que o antecederam”, explica Ivan Vilela, mestre em Composição Musical, em artigo publicado para a Revista USP. “Vimos isso no uso do falsete com o objetivo de se conseguir um efeito vocal, um timbre diferente e não como último recurso para se alcançar uma nota aguda. O violão ganhou outro caráter ao ser usado como instrumento harmônico-percussivo. A percussão tomou outra dimensão na medida em que passou a ser um evento de vida própria que corria, às vezes, com um volume maior que o dos instrumentos melódicos harmônicos”, complementa. Mas, afinal: qual lugar é dado, na História, ao Clube da Esquina?

Quando se fala dos movimentos musicais surgidos no Brasil, é um lugar-comum enaltecer, com os devidos méritos, a Jovem Guarda, a Bossa Nova e a Tropicália. Cada um deles, ao seu estilo e à sua época, consolidou-se como um paradigma ao público e a todos os artistas que se sucederam – impulsionado, em grande parte, pelo apoio maciço da mídia, a exemplo dos programas Jovem Guarda e O Fino da Bossa, exibidos pela TV Record. Ao contrário dos baianos tropicalistas, os mineiros não empunhavam a bandeira de um movimento, o que em nada deveria minimizar a influência e o impacto causados por estes na estética musical desenvolvida no Brasil a partir de então. Tudo isso resultou numa singularidade que tão bem observa Pedro Henrique Varoni, doutor em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos. “A música do Clube da Esquina foi mais ouvida do que vista, mais cantada do que falada”. E acrescenta:

“Há uma sensação de injustiça quando se pensa no reconhecimento do Clube da Esquina no contexto da música popular brasileira (MPB). As características de inovação, refinamento harmônico, melódico, rítmico e poético da produção de artistas mineiros, difundida principalmente nos anos 1970, não teriam encontrado o devido valor no panteão dos grandes movimentos que redefiniram a linguagem da MPB. Tanto a mídia quanto os pesquisadores ligados à história da canção popular elegem outros estilos, como o samba, a Bossa-Nova, a Jovem Guarda e o Tropicalismo, deixando à margem o Clube da Esquina, em desacordo com a importância das músicas criadas pelo grupo”.

Com ou sem a alcunha de movimento, os sons de Minas guiaram toda uma geração, muito além dos álbuns Clube da Esquina (1972) – 7º lugar na lista dos 100 maiores discos da música nacional pela revista Rolling Stone Brasil – e Clube da Esquina II (1978). O Clube não foi apenas um recorte da trajetória de Milton. Foi também o aclamado Som Imaginário de Wagner Tiso. Foi O Trem Azul que trilhou a carreira de Lô Borges, com as frases que o vento vem às vezes nos lembrar. Foi O Sal Da Terra de Beto Guedes e a certeza de que um mais um é sempre mais que dois. Foi Flávio Venturini e o surgimento do 14 Bis, falando das coisas bonitas que eu acredito que não deixarão de existir. Ao fim e ao cabo, aqueles mineiros foram nada mais, nada menos, do que mensageiros naturais de coisas naturais. Ainda bem que a gente escutou.


JOÃO CAMILO é jornalista e Técnico-Administrativo no Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT). Nascido em Aracaju (SE), já morou na Bahia e hoje reside em Brasília. Apaixonado desde sempre por música e pelo Palmeiras, e desde 2018 também pelo sobrinho Cauã.