Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

Moraes Moreira (eterno): assim vou lhe chamar, assim você vai ser

Não, não é uma estrada, é uma viagem. Tão, tão viva quanto a morte, não tem sul, nem norte”. Os versos aqui citados datam de 1970 e entoam os primeiros acordes de É Ferro na Boneca!, álbum inaugural d’Os Novos Baianos. Na capa daquele disco estão Luiz Galvão, Baby Consuelo, Paulinho Boca de Cantor, e um quarto integrante que, ao longo de 72 anos, não teve sul, nem norte. Teve o Brasil inteiro: ora descendo a ladeira, ora atravessando os sete mares, ora enchendo de alegria a praça e o poeta. Nesta minha primeira coluna na Sobrado, eu vos convido: aumente o seu volume! Moraes Moreira está tão vivo quanto a morte.

Capa de É Ferro na Boneca! (1970) | Foto: Divulgação

Foi com um misto de espanto e tristeza que, no dia 13 de abril deste ano, acordei com a notícia do seu falecimento. Subitamente, sem previsão aguardada por alguma doença que o acometesse, o destino levou Moraes para outro plano – afinal, a vida não é uma estrada, é uma viagem. Que começou em Ituaçu (BA), lá em 1947, até desembarcar em Salvador, quando ele completou 19 anos: rumou à capital para estudar Medicina, mas acabou matriculado no Seminário de Música da Universidade Federal da Bahia (ao que parece, uma decisão acertada). Na pensão onde morava, conheceu outros dois hóspedes, ninguém menos que Paulinho Boca e Luiz Galvão. Surgiria ali O Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal, espetáculo que estreou em agosto de 1969, no Teatro Vila Velha, na capital baiana. Dentre os participantes: Galvão, Paulinho, Pepeu, Baby e Moraes. O que veio depois está na História.

Eles eram a gravidez cósmica da juventude do momento

Tom Zé, em depoimento ao documentário Filhos de João – O Admirável Mundo Novo Baiano, de 2009

De 1969 a 1975, junto a Os Novos Baianos, Moraes Moreira alicerçou de forma inabalável seu nome na música brasileira. Quatro dos oito álbuns de estúdio da banda tiveram sua presença e assinatura. É impossível (repito: é impossível) falar honestamente sobre influência musical no Brasil sem citar Moraes Moreira – e não estou me referindo apenas ao período de seis anos supracitados, embora todo o legado ali deixado já tivesse sido suficiente. O que a parceria entre Moraes & Galvão frutificou não se dimensiona: como não reconhecer, por exemplo, Preta Pretinha e Besta é Tu no imaginário do cancioneiro popular? Como não elencar Novos Baianos F.C. (Continental, 1973) e Acabou Chorare (Som Livre, 1972) entre os álbuns mais importantes da nossa história? – nem me estenderei sobre este último, pois ele por si só já valeria uma coluna exclusiva. O fio condutor de tudo isso perpassa pelo baiano de Ituaçu.

Quando decidiu deixar o grupo para iniciar uma carreira solo, Moraes mostrou o quanto ainda tinha a oferecer às gerações que se sucederiam. E, mais uma vez, é impossível (repito: é novamente impossível) falar honestamente sobre carnaval no Brasil sem citá-lo. “Moraes Moreira será o grande desbravador e será dele a letra da primeira canção composta para o carnaval e enunciada de cima de um trio elétrico, assim como será dele também a voz a puxá-la frente às multidões no ano de 1976”, dissertou o historiador Rafael Ribeiro. Era o nascimento de Pombo Correio, fazendo sua trajetória voar ainda mais depressa. E não parou por aí: Chão Da Praça, E Assim Pintou Moçambique, Chame Gente, Festa Do Interior, Bloco Do Prazer, Vassourinha Elétrica, Eu Sou O Carnaval. Moraes era o Pierrot e a Colombina, da Bahia a Pernambuco, da guitarra elétrica de Armandinho ao sax de Spok Frevo. E que se registre: por muitos anos, distanciou-se do Carnaval de Salvador ao ser um crítico ferrenho à elitização de uma festa popular mercantilizada pelos blocos, cordas e abadás.

Enquanto, na primeira fase da carreira, foi com a vigorosa e lendária parceria com Galvão que Moraes tornou-se referência, os anos seguintes firmaram encontros igualmente relevantes. E o mais exitoso deles talvez tenha sido ao lado do cearense Fausto Nilo. Além das já citadas Chão Da Praça e Bloco Do Prazer, a dupla produziu pérolas como Santa Fé (tema de abertura da novela Roque Santeiro), Pão e Poesia, Meninas Do Brasil e Coisa Acesa. Nos anos 90, junto a Marisa Monte, compôs Palavras Ao Vento, eternizada na voz de Cássia Eller. Com Jorge Mautner, destaque para Pelas Capitais e a fabulosa Lenda Do Pégaso – “e assim o passarinho feio quis ser até pombo-correio”. Moraes foi tudo o que quis e ainda foi além.

Não bastasse se comunicar através das composições e pela harmonia das melodias, ele encontrou na literatura uma nova fonte de inspiração. Escreveu quatro livros: A História dos Novos Baianos e Outros Versos (Língua Geral, 2007); Sonhos Elétricos (Azougue, 2010); Poeta não tem idade (Numa Editora, 2016); e Dá pra viver sem cultura? (Numa Editora, 2019). Tornou-se assim um cordelista assíduo e, em 2015, passou a ocupar a cadeira de número 38 na Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Por falar em literatura, está previsto para ainda este ano o lançamento da biografia Moraes Moreira – de cantor para cantador. A obra foi iniciada em 2017 e vem sendo idealizada graças à parceria entre o jornalista potiguar Joaquim Crispiniano Neto e o escritor José Walter Pires, irmão do baiano.

Em 2014, quando eu residia em Aracaju (SE), Moraes foi fazer um show na cidade em alusão à turnê comemorativa intitulada 40 anos de Acabou Chorare. Eu tenho uma memória pessoal com a canção “Mistério do Planeta” e, em razão disso, queria ter o prazer de conhecê-lo para poder dizer o quanto ele era (foi e continua sendo) importante na minha vida. Assim que escutou o relato, respondeu-me: “Bicho, que coisa fantástica. Que incrível! Saiba agora que Mistério do Planeta foi tocada em sua homenagem”. Abram um parênteses e não esqueçam: Moraes Moreira (eterno).

O colunista João Camilo ao lado do (eterno) Moraes Moreira | Foto: Arquivo pessoal

JOÃO CAMILO é jornalista e Técnico-Administrativo no Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT). Nascido em Aracaju (SE), já morou na Bahia e hoje reside em Brasília. Apaixonado desde sempre por música e pelo Palmeiras, e desde 2018 pelo sobrinho Cauã.