Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

Realce! Quanto mais melanina, melhor

O branco, se soubesse o valor que o preto tem, tomava um banho de piche e ficava preto também. Foi assim que Paulinho Camafeu escreveu e o Ile Aiyê desfilou no carnaval de 1975. O preto, se soubesse o valor que tem, tingia a palma da mão pra ser escura também. Foi assim que o grupo Racionais MC’s deu o recado na letra de “Júri Racional”, quase duas décadas depois. Mudaram-se os anos e os interlocutores, mas a mensagem musical era a mesma: valorizem o povo negro. Porque falar sobre música no Brasil é, por história e por dever, falar sobre negritude. E hoje, aqui na Sobrado, MPB vai ser sinônimo de Música Preta Brasileira. 

Afinal, neste país, MPB é som e ritmo desde sempre. No barulho do batuque que ecoava das senzalas, nas danças praticadas nos quilombos, no canto às divindades cultuadas nos terreiros. “No universo da cultura negra, a memória do corpo-música e a da música-corpo são indissociáveis, dependentes uma da outra, complementando-se, interpenetrando-se e reelaborando a “África” na sua dimensão rítmica, na palavra oral sacralizada, nas devoções religiosas aos ancestrais”, esclarece Amailton Magno Azevedo, Professor Doutor do Departamento de História e do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP. Explicar essa correlação do corpo negro com a origem da nossa MPB é como tentar entender o dilema da Morena de Angola: será que ela mexe o chocalho ou chocalho é que mexe com ela?

Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp com a tese “Do Samba ao Rap: a música negra no Brasil”, Maria Eduarda Araújo Guimarães (1998) afirma categoricamente:

“De fato, a maior influência dentre aqueles que formaram a sociedade brasileira, no âmbito musical, é a dos negros, uma vez que os índios, dado o afastamento das cidades e a consequente interiorização a que foram obrigados pelo processo de colonização, pouco influenciaram na formação de uma música popular brasileira urbana e, com relação aos portugueses, ainda que mais substantiva a sua participação nessa área cultural, não chegou a proporcionar a criação de um ritmo que se distinguisse daquele produzido em Portugal, não sendo fator de criação de uma música que fosse possível caracterizar como nacional”.

E é aí que o samba entra na roda. Negro, forte e destemido, como tão bem definiu Nelson Sargento. O samba, tão estigmatizado como o som oriundo daqueles negros que insistiam em não sucumbir, que teimavam em resistir, que mesmo perseguidos ainda conseguiam sorrir – o samba só provocava choro em seu diminutivo. O samba do início do século XX no Rio de Janeiro, que reunia seus amantes no quintal da casa de uma mãe-de-santo que virou tia. “Quando você fala do samba brasileiro, é impossível você não pensar em Tia Ciata. Em termos de História, (…) qual o lugar que é dado a Tia Ciata? Quando se conta a história do samba no Rio de Janeiro, ou quando se conta a história do Brasil, será que Tia Ciata é relembrada com a veemência que ela merece, no papel que ela teve? Você tem que pensar Tia Ciata como um pilar de uma identidade nacional, porque a identidade brasileira passa pelo samba” (Conceição Evaristo, em depoimento ao filme documental sobre Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata).

Cultuar a MPB é reverenciar Pixinguinha e venerar Cartola. É ter Bezerra da Silva para chamar de Voz do Morro. É pesquisar sobre a obra de Ataulfo Alves, Almir Guineto e Nelson Cavaquinho. É poder escolher entre a Portela de Paulinho da Viola, a Vila Isabel de Martinho ou a Mangueira de Jamelão. É fazer de Dona Ivone Lara aPrimeira Dama do Samba, é ter uma Jovelina para chamar de Pérola Negra. É ainda poder assistir ao vivo Alcione e Leci Brandão. É dedicar-se a produzir um documentário e terminá-lo com frases assim: “Esta é uma obra composta coletivamente. Pelo direito à memória. Pelo direito à perpetuação do patrimônio cultural brasileiro chamado Clementina de Jesus. E pelo dever de exaltação à Cultura Negra”.

Cultuar a MPB é olhar o Brasil em suas mais diversas regionalidades. É compreender a grandiosidade de quem foi Luiz Gonzaga, Dominguinhos e Jackson do Pandeiro. É mergulhar na infinita imensidão cultural de Pernambuco. “A dimensão sagrada incorporada na musicalidade dos ritos, nos batuques e na dança são as heranças negras de origem africana que o maracatu incorporou”, observa Renato de Oliveira Ferraz, mestre em História Social da Cultura pela PUC-RIO, ao traçar uma análise da questão racial presente na banda Chico Science & Nação Zumbi.

Cultuar a MPB é aplaudir Jair Rodrigues apresentando Disparada no Festival da TV Record de 1966. É nascer no mesmo solo de Toni Tornado e Jorge Ben Jor, de Elza Soares e Elizeth Cardoso, para então ouvir Djavan cantar Luanda e receber a bênção: “eu te batizo africamente”. É desfrutar o prazer e orgulho de ter Milton Nascimento para chamar de gênio. É ter se deliciado com as vozes de Emílio Santiago e Luiz Melodia. É destacar que ela nunca se aquietou e sempre foi muito além. A gente importou o soul de James Brown e fez nascer nossa própria black music. A gente dançou Tim Maia, Cassiano e Sandra de Sá, jogando nas pistas de dança aquilo que muitos negam: a verdade é que você, e todo brasileiro, tem sangue crioulo.

Foi esse sangue crioulo que pulsou no carnaval soteropolitano e deu origem aos blocos afros, do afoxé Filhos de Gandhy ao Ile Aiyê, do Olodum ao Badauê. Na Bahia que fica ainda mais preta quando o BaianaSystem arrasta uma multidão com o seu Navio Pirata. Na Bahia que deu luz a Margareth Menezes, empossada no último dia 21/08 como embaixadora do Folclore e da Cultura Popular do Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU). Na Bahia de Dorival Caymmi, que tão bem retratou a negritude no campo musical e das artes plásticas. Na Bahia de Gilberto Passos Gil Moreira, aquele que, para mim, é a maior representação da MPB.

Foi esse sangue crioulo que circulou na cena paulistana e deu origem aos Racionais MC’s. Se, décadas atrás, absorvemos o hip hop vindo do Bronx e do Harlem de Nova York, foi a MPB que tratou de dar condições ao surgimento dos nossos próprios ícones. Se hoje produzimos nomes do patamar de Criolo e Emicida, foi porque gente como MV Bill, Thaíde e Sabotage abriram as portas. Para tantos jovens, são esses sons que representam a resistência diária que é viver na periferia brasileira, tão violentada e discriminada. Djonga, Rael, Rincon Sapiência, Karol Conka, Drik Barbosa, BK’, Rico Dalasam, Baco Exu do Blues: essa é a MPB que põe o dedo na ferida.

Foi, e sempre continuará sendo, esse sangue crioulo a dar vez, voz e visibilidade a novos nomes na MPB. E que seja cada vez mais feminina, em resposta a uma invisibilidade que tanto perdurou: é a hora de Iza, Ludmilla, Teresa Cristina, Gaby Amarantos, Anelis Assumpção, Luedji Luna, Xênia França, Liniker, Mahmundi, Bia Ferreira, Agnes Nunes. Que a MPB siga executando a premissa que Wilson Simonal cravou em Tributo a Martin Luther King: “cada negro que for, mais um negro virá; para lutar, com sangue ou não; com uma canção, também se luta, irmão”.


JOÃO CAMILO é jornalista e Técnico-Administrativo no Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT). Nascido em Aracaju (SE), já morou na Bahia e hoje reside em Brasília. Apaixonado desde sempre por música e pelo Palmeiras, e desde 2018 pelo sobrinho Cauã.