Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

As Ruínas do Museu Nacional e o arruinamento da nossa memória

“Há duas espécies de ruínas: uma é o trabalho do tempo, outra o dos homens”
François-René Chateaubriand¹

As ruínas podem atestar inúmeras intenções. Algumas são cicatrizes de modificações sob variadas alegações, outras assinalam o desejo de manutenção para a posterioridade ou simplesmente o ocultamento de um passado na forma de escombros. Ou mesmo podem representam abandono, descuido e a desvalorização do patrimônio. O incêndio do Museu Nacional em setembro de 2018 e as ruínas que ficaram expostas na época, atestam um pouco de tudo isso, é uma cicatriz de um país que não valoriza seu patrimônio e a sua memória.

Inúmeras cidades ao longo da história já foram destruídas ou incendiadas, perdendo palácios e bibliotecas. Só para citar alguns eventos marcantes destacamos: Cartago em 146 a.C., Roma e seu grande incêndio em 64 d.C. e a Biblioteca de Alexandria em 48 a.C..² Em 2018 d.C um museu com 20.000.000 milhões de peças de uma forma ou de outra também entrou nessa lista. “Pegou fogo” ou deixaram que em algum momento as chamas tornassem realidade e destruíssem seu acervo. O evento pode ser entendido como um marco, “antes e depois do grande incêndio do Museu Nacional”, ou pode simplesmente virar uma nódoa esquecida entre outras de um país que esquece rápido seu passado.

As imagens do grande incêndio evidenciaram um prédio com sinais de descuido cercado de verde, ocultado pelo meio sombrio e coberto por estátuas clássicas, sendo silenciado pelo fogo. É quase uma pintura dramática com pinceladas em inspiração neoclássica, que deixaria o pintor francês Hubert Robert (1733 – 1808), notável pintor de ruínas, com inveja. Na época as imagens do incêndio tomaram o noticiário mundo a fora rapidamente, e logo em seguida diversas pessoas e instituições começaram a se movimentar, em uma ação de buscar um resgate e o restauro do espaço. Hoje diversas peças de coleções que ficavam no museu foram recuperadas, a maioria foi destruída pelo fogo, e um projeto ousado busca reinaugurar o museu.

Foto: Marcelo Sayão / EFE

Tragicamente a estátua de D. Pedro II, que fica na frente do prédio em chamas, ilustrou em 2018 não só um elemento na paisagem em volta do Museu Nacional, um ícone que faz referência a um dos ilustres personagens que contribuíram para a formação do importante acervo. Mas também nos instigou a imaginar como o “Imperador das letras”, primeiro tradutor do árabe para o Português das “Mil e uma Noites”, imaginaria a situação do Museu hoje. Apenas uma reflexão, inserindo o personagem retratado na estátua e a história do Museu Nacional.

As chamas, cinzas, escombros e ruínas, de setembro de 2018 ocultaram dois séculos de uma instituição reduzida a restos. E milênios de história em artefatos, sob camadas da falta de sensibilidade de governantes e do descaso e sucateamento da nossa cultura. Afinal, qual a importância do crânio da Luzia, manto indígena, cerâmicas, fósseis, documentos, registros iconográficos que narram a construção do Brasil, múmias egípcias e artefatos greco-romanos [maior coleção da América Latina] perante outras tantas prioridades em um país de políticas arcaicas. A tragédia do Museu Nacional expõem uma ínfima parte da estrutura condenada do nosso país, uma triste alegoria do atraso, que continua presente e escancarada hoje.

Buda Mendes / Getty Images

As últimas décadas do Museu foram marcadas pela falta de verbas e o esquecimento por parte dos governantes com a centenária instituição. A velha história da não valorização da cultura brasileira e o arruinamento do nosso patrimônio. Esse era o cenário do Brasil em setembro de 2018 e persiste no Brasil de agora. Apesar do episódio não estar jogado em folhas e folhas de um passado distante, parece que muitas pessoas já esqueceram da tragédia, um país com memórias em ruínas. E uma inquietação que ainda é latente presente nos outros arquivos e instituições de memória no Brasil, grande parte imersos no esquecimento e problemas estruturais.

Quando Clio, a musa grega da História, começa a ser sucateada, deixada de lado, secundarizada, incendiada e arruinada, como os artefatos perdidos no Museu Nacional e a situação da valorização da nossa cultura hoje, é hora de refletirmos se já não vimos ou lemos em algum momento o esboço dessa narrativa. Em tempos de esquecimentos e radicalismos a história e a memória não podem ser esquecidas.

¹O Gênio do cristianismo. François-René Chateaubriand. Garnier Brothers, 1828.
²As cidades e locais apontados foram destruídos, incendiados e reconstruídos em diversos momentos, as datas escolhidas são as mais conhecidas.


RAFAEL DANTAS é historiador, professor e artista plástico. Pesquisador na área da cultura material e iconografia. É um apaixonado pelos encantos de Salvador, do Egito e da Bahia. Também dedica seu tempo em registar e contar nossa história em desenhos.