Revista Sobrado
Fotos: Estúdio Tereza & Arianne / Divulgação

Lia Sophia: “Me inspiro no carimbó para fazer uma releitura das minhas raízes”

Lia Sophia segue a linha do carimbó pop, ritmo que a projetou nacionalmente com a música Aí Menina, destaque na telenovela Amor Eterno Amor, que foi ao ar em 2012 na TV Globo. Nessa música podemos perceber elementos eletrônicos, que agora ocupam mais espaço no novo disco da cantora, intitulado Eletrocarimbó, já disponível em todas as plataformas digitais.

Assim como eu, Lia Sophia tem o Pará como raiz. Há anos adotou Belém como casa. Ela nasceu na Guiana Francesa e mudou para o Brasil ainda menina. Hoje, na busca pela ampliação de sua carreira musical, ela mora em São Paulo, mas tem a sonoridade amazônica como referência e bandeira de luta. Em uma manhã de um abril pandêmico, conversamos sobre o disco Eletrocarimbó, a covid-19, o trabalho virtual que o momento exige e a saudade que ambos sentimos do Norte.

As raízes amazônicas estão presentes em todo o disco, composto por oito faixas e conta com a coprodução do baiano DJ Lucio K, que assina ainda os remixes de Ai MeninaIncendeia, dois sucessos do repertório de Lia, e da inédita O Que É Que Ela Tem?.

Participam do EP Igor Capela (guitarra), Márcio Jardim (percussão), Marcelino Santos (banjo), Adelbert Carneiro (contrabaixo), Daniel Delatuche (trompete), Jó Ribeiro (trombone) e Edvaldo Cavalcante (bateria).

Confira a conversa entre dois nortistas, loucos de saudade do Pará.

Sobrado: O EP “EletroCarimbó” ganhou vida em meio à pandemia da covid-19. Como foi o desafio de produzir de maneira virtual, dialogando com os músicos, produtores e convidados de longe?
Lia Sophia: A dificuldade da produção do disco se deu, principalmente, pela distância. Não reunir os músicos, juntar todo mundo dentro do estúdio, como estamos acostumados, posso dizer que foi a parte mais difícil. Fomos trocando informações e repassando tudo que íamos produzindo por aplicativo de mensagens. Cada músico gravando em suas casas. Os músicos todos estão em Belém. Eu estou em São Paulo. Então, foi uma produção remota. Eu gravei todas as músicas aqui em casa, sempre à noite, porque é mais silencioso. Montei um estúdio. Gravava as músicas e enviava. Depois, recebia as avaliações. E, assim, íamos definindo tudo. Foi um processo um pouco demorado.

S: Vocês tinham um prazo de entrega do EP?
LS: Sim. O projeto foi realizado via Lei Aldir Blanc. Tínhamos que entregar tudo até início de abril. Mas a produção à distância requer mais tempo. Esse processo de troca de avaliações, que presencialmente no estúdio a gente faz ali mesmo na hora, demora um pouco mais à distância. Ainda quanto aos prazos, as datas estabelecidas foram atravessadas pelo pior momento da segunda onda da pandemia, tornando as coisas mais difíceis. Mas conseguimos fazer um excelente trabalho, com muita paciência e sensibilidade entre as partes. Foi um processo grande de aprendizagem, onde conseguimos encontrar soluções para seguir trabalhando, produzindo, fazendo música.

S: No EP, você segue com o estilo carimbó pop que a projetou nacionalmente e investe em novas sonoridades e beats eletrônicos, contando com a coprodução do baiano do DJ Lucio K. Como aconteceu essa parceria?
LS: Eu conheci o trabalho do Lucio K em 2007, quando ouvi um remix que ele fez de uma música do Mestre Curica, chamada Carimbó pra Maria. Gostei muito do trabalho dele e virei fã. Quando comecei a pensar a produção de Eletrocarimbó, pensei nele. Não nos conhecemos pessoalmente, mas resolvi ligar e fazer o convite. A recepção foi maravilhosa. Ele ressaltou que acompanhava meu trabalho, também. Como você mesmo pontuou, uso as referências locais do Norte, da Amazônia, em meu trabalho, e misturo com o pop contemporâneo. Então, queria alguém que entendesse isso. Lúcio K era a pessoa ideal, a oportunidade de trabalharmos juntos era essa, o projeto caiu como uma luva. Lúcio K é muito sensível na troca e traz toda uma experiência nessas misturas. Desde o início, tivemos o cuidado de manter o equilíbrio entre os elementos que fazem parte do carimbó e os beats da música eletrônica. Minha preocupação era não suprimir os elementos do carimbó, que o eletrônico não se sobrepusesse. Conseguimos chegar a um equilíbrio, a um diálogo. Essa sensibilidade, esse diálogo, percorre todo o disco.

S: Você já gravou um disco só com bregas clássicos paraenses. Já regravou “Quero você”, de Carlos Santos e Alípio Martins. Agora, em “Eletrocarimbó”, traz uma nova versão de um clássico do carimbó que é “Sinhá Pureza”, do mestre Pinduca. Por que escolheu regravar essa música?
LS: Eu me considero uma discípula do Mestre Pinduca. Tenho todo carinho, respeito e admiração pelo trabalho dele. Regravar Sinhá Pureza foi uma forma de homenageá-lo. Quando fui conversar com ele, pedir autorização, ele disse que eu poderia regravá-la como quisesse, porque ele vê em mim a continuidade do trabalho dele. Ele é o precursor do carimbó mais elétrico. Ele lembrou que quando começou a gravar o carimbó com instrumentos eletrônicos recebeu muitas críticas dos que reivindicam o carimbó mais clássico e tradicional, os chamados puristas. Eu também recebo as mesmas críticas de alguns puristas, sempre estou preparada para isso. Sei que não faço esse carimbó tradicional, me inspiro nele para fazer uma releitura das minhas raízes, dialogando com outras sonoridades, com outras pessoas e outros ouvintes. Quem ouve meu trabalho vai identificar a presença do carimbó, isso faço questão de manter. Através do carimbó, da guitarrada, do brega, da lambada, misturados com outros sons, abro espaço para um novo público. Hoje, por exemplo, o público do DJ Lúcio K irá conhecer meu trabalho e a música do Norte. Sinhá Pureza resume essa minha trajetória, a bandeira que levanto em defesa da nossa música. Já abri vários shows com ela. É uma música que já tem várias regravações, por isso, foi um grande desafio fazer essa nova versão. Gostei muito do resultado.

S: O disco traz também uma nova versão de “Carimbó Caboclo”, de Sóstenes Rodrigues, que é uma música sempre presente em seus shows. A cantora paraense Lucinha Bastos já gravou. Por que registrá-la em “Eletrocarimbó”?
LS: Sóstenes é um grande amigo e parceiro, já fizemos algumas músicas juntos. Gosto muito do trabalho dele. É de Pernambuco e conversa muito bem com o coco e o carimbó. Já morou um tempo em Belém e é apaixonado pela música paraense.  Eu tinha gravado essa música para o disco Lia Sophia, lançado em 2013, mas acabei deixando ela de fora. Resolvi resgatá-la. Apresentei ao Lucio K e fizemos uma nova versão, uma nova batida. Ela está sendo uma das músicas mais ouvidas e curtidas do EP.

S: No disco temos o remix de “Aí Menina” e “Incendeia”, que são grandes sucessos de sua carreira. Por que trazer esses remixes neste trabalho?
LS: Aí Menina é um divisor de águas na minha vida e na minha carreira. Avalio que Eletrocarimbó também traz uma mudança no meu trabalho, aí fiz esse gancho para mostrar que essa mistura já fazia parte das minhas produções, pois seus arranjos originais possuem elementos eletrônicos. Agora, vamos além e destacamos ainda mais esses elementos. O Lucio K utilizou alguns elementos originais das músicas, como percussões, guitarras e sopros, adicionando synths, efeitos e bumbos eletrônicos. Avalio também que foi o momento certo de revisitar este trabalho, antes não me sentia segura em mexer. Já recebi muitos trabalhos de artistas que fizeram versões remixes de Aí Menina, mas elas iam ao sentido apenas da música eletrônica, apagando o gingado do carimbó. Era justamente isso que eu não queria fazer. Essa versão feita com Lucio K me deixou satisfeita, pois conseguimos o equilíbrio entre o carimbó e o eletrônico. O mesmo aconteceu com Incendia, que junto com Ai Menina, foram trilhas sonoras de novelas, e me abriram espaços importantes. Fizemos uma versão mais dançante. Os fãs estão adorando.

S: A música “O que Ela Tem” é uma parceria com Jana Figarella, que fala de Santarém, Alter do Chão e do Rio Tapajós. Como se deu a construção dessa música?
LS: A música foi toda construída à distância, virtualmente. Em junho do ano passado, ela me propôs fazermos uma música para o aniversário de Santarém, que ela cantaria em um telejornal local, e queria apresentar algo novo. A composição foi feita em um dia. Pensei num arranjo, coloquei uma guitarra e mandei de volta pra ela. Ela acabou não cantando no programa de TV. Como a música estava pronta, não ia deixar passar, aproveitei e a convidei para gravarmos juntas para o EP. Inclusive gravamos um clipe, eu aqui dentro de casa e ela em Alter do Chão, que lançaremos em breve. O que Ela Tem faz um paralelo entre uma personagem feminina e a cidade de Santarém, perguntando sempre o que é que ela tem. Aí vamos falando das belezas e da cultura da cidade. Eu amo Santarém, uma cidade localizada no meio do Pará, às margens do Rio Tapajós. É um lugar incrível, de muitos compositores e poetas, de uma cultura rica, forte e pulsante. Jana é uma dessas artistas incríveis de Santarém. Fico feliz por termos feito essa homenagem à cidade.

S: Hoje você mora em São Paulo, mas sempre com o pé firme no Norte. Na música “Ninguém Estraga Meu Dia”, você mostra esse forte laço com Belém (PA). Na pandemia a saudade foi mais forte e esse vínculo com o seu lugar foi um elemento importante para ajudar a passar por esse momento?
LS: Isso, hoje moro em São Paulo, mas sempre estou em Belém. Lá e cá. Pelo menos era assim, antes da pandemia. Há mais de um ano que não vou a Belém, que não vejo amigos e parentes presencialmente. A saudade só aumenta. Sinto saudade de tudo: da família, dos amigos, da comida. Hoje, a nossa troca de carinhos se dá via videochamadas. Em um desses dias, cheio de saudade, comecei a fazer uma reflexão em cima de textos e postagem do perfil do Instagram Manga Poética (@mangapoetica), que traz mensagens com expressões paraenses, com coisas que só nós falamos, com um humor típico do nosso povo e o seu jeito de encarar a vida. Assim surgiu a vontade de dizer que ninguém vai estragar meu dia. Fui enumerando coisas que deixam o paraense feliz como a rede, o açaí, a nossa música brega marcante. É uma música pra cima, alto astral.

S: Esses traços característicos da Amazônia estão presentes nas letras de suas músicas e ganharam destaques nas animações criadas pelo artista Kambô, feitas especialmente para o disco. Como ocorreu essa sintonia entre vocês?
LS: Assim como Luciano K, também não conheço Kambô pessoalmente. Ele é do Pará. Venho acompanhando o trabalho dele no Instagram. Ele traz uma linguagem moderna, pop, com símbolos da Amazônia. Isso é também o meu trabalho, a minha linguagem. Tem o índio, o rio, a mata, as cores. O grande barato do Eletrocarimbó foi esse, encontrar pessoas sensíveis, que mesmo de longe, construíram comigo esse trabalho que tem me deixado feliz.