Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

Convento de Santo Antônio do Paraguaçu: Uma poesia arruinada e espoliada, resistente às margens do rio

A Bahia e sua Baía de Todos os Santos guardam encantos que nem mesmo o tempo ou o abandono conseguiram destruir. Na frente do Rio Paraguaçu, no Recôncavo baiano, encontramos uma joia imponente da arquitetura Barroca no Brasil. Obra de arte que encanta em seus detalhes e nos aproxima com sua suavidade ligada ao entorno ainda preservado pintado de verde. A Igreja e o Convento de Santo Antônio, na Vila de São Francisco do Paraguaçu, é um daqueles lugares que são retratos de um tempo, com cicatrizes e belezas cheias de história. 

O Rio Paraguaçu e a edificação
Para compreendermos a história desse símbolo de religiosidade e referência geográfica no Recôncavo é preciso destacar a importância do Rio Paraguaçu e das cidades do entorno com sua cultura do fumo e do açúcar. Cachoeira e Santa Amaro da Purificação foram lugares por onde passaram as fortunas de senhores de engenho e comerciantes na época colonial. Muitos engenhos, acompanhados de suas belas capelas, ainda hoje retratam a pujança de outrora, tudo isso imerso na realidade escravista até o século XIX. 

As ligações entre o Recôncavo e a então capital da América Colonial Portuguesa, Salvador, eram intensas, em um intricado jogo de trocas comerciais, vai e vem de pessoas e ideias pelas calmas águas da Baía. 

A ordem Franciscana, responsável pela construção da edificação, chegou na região na segunda metade do século XVII. Outras igrejas nesse mesmo espaço de tempo também foram construídas nos arredores do Recôncavo, o que mostra a relevância da região e a capilaridade da fé católica na sociedade colonial baiana. É também destaque o outro convento, esse em Cairu, também dedicado a Santo Antônio. 

A Igreja e o Convento as margens do Paraguaçu destacam-se por ser uma das primeiras construções franciscanas na América Colonial Portuguesa, erguidas na segunda metade do século XVII e possivelmente finalizadas nos ano de 1686, o convento, e 1660 a Igreja; conforme consta em registro gravado na portada. Entretanto, é importante salientar, que nos anos seguintes outras intervenções em seus espaços e decoração interna também foram incrementadas. 

As ligações entre o Recôncavo e a então capital da América Colonial Portuguesa, Salvador, eram intensas, em um intricado jogo de trocas comerciais, vai e vem de pessoas e ideias pelas calmas águas da Baía.

Toda a edificação, tanto o noviciado que fica ao lado como a Igreja, está ligada diretamente ao rio pelo imponente jogo de escadarias e patamares.  Uma rampa que no passado era utilizada por mercadores, navegantes e romeiros em procissões e demais festejos, completa o visual. A cena encanta pelos contrastes entre as águas calmas do rio, o verde do entorno e o céu azul da Bahia. A fachada apresenta-se em composição piramidal com três níveis ladeada por uma torre sineira. De linhas barrocas a edificação também encarna outras influências advindas dos contatos entre os religiosos franciscanos e o mundo português no Sul Asiático e demais regiões mundo afora. 

Detalhes do interior
Internamente a Igreja era barroca com uma decoração rica em adornos e talhas em seu altar e altares laterais. É possível que tenha sido um dos mais belos exemplares da região, reflexo claro da riqueza nos século XVII e XVIII. Uma antiga fotografia, de cerca de 1910, nos oferece um vislumbre do que foi o interior da igreja e parte do altar e do arco do cruzeiro. O antigo registro apresenta o nível de detalhes presentes nas talhas, retábulos, a incrível grade em jacarandá, que ficava entre a capela mor e o corpo da igreja – fruto do empenho dos artistas baianos – imagens sacras e demais detalhes compondo o púlpito, rendilhados e o rico arco do cruzeiro.

Parte da grade em jacarandá citada anteriormente encontra-se na escada de acesso, logo depois do hall, do Museu de Arte da Bahia, no Corredor da Vitória. Antes partes da grade e de outros adornos foram paulatinamente retirados, vendidos, para adornar casas de particulares no Recôncavo Baiano e outros lugares do Brasil.

As outras áreas da Igreja seguem o traçado das edificações religiosas do período, mas, infelizmente, atualmente algumas dependências estão arruinadas e sem as decorações de outrora. A sacristia deveria ser de notável beleza, os indícios apontam que era coberta de azulejos portugueses provavelmente talhas barrocas e caixotões policromados no teto. A pia batismal em pedra nobre foi arrancada e levada para a Região Sudeste do Brasil, ficando na casa de um colecionador de artes.

Outros elementos decorativos, como as talhas e azulejos, foram espoliados ou vendidos no decorrer do século XX. No nível superior, logo em cima da sacristia, ficava a biblioteca, espaço amplamente aberto com portas, conversadeiras e balcões que davam para os fundos da Igreja. Se lembrarmos das bibliotecas franciscanas ainda existentes, exemplo da biblioteca da Igreja e Convento de São Francisco de Assis em Salvador, poderemos vislumbrar a riqueza que deveria ser o espaço e os títulos existentes; afinal ali também funcionava como noviciado de grande relevância no Nordeste brasileiro.

Hoje ambos os espaços, sacristia e biblioteca, formam um vazio arruinado, sem o madeiramento que separava os dois andares, madeiras essas que foram saqueadas ou vendidas nas primeiras décadas do século XX para colecionadores e comerciantes de arte. 

Mesmo com o arruinamento, o local possui uma beleza impar, um misto de poesia em escombros e histórias em camadas de passados. Alguns querubins em azulejos ainda repousam em uma das paredes da sacristia ao lado de uma composição destoante de diversos restos de azulejos portugueses, barroco-rococó, quebrados inseridos em uma parede. Na outra extremidade é visível restos de azulejos que foram retirados com brutalidade em décadas passadas. Nos anos de 1950 algumas imagens sacras foram roubadas.

Na direção Norte, temos as ruínas do claustro, convento / noviciado, com suas dependências, cozinhas, salas de almoço, quartos, selas e áreas médicas. O claustro está arruinado com algumas colunas em arenito repousando sob o Sol e a chuva, sob o tempo. Logo ao lado temos a torre sineira que ostenta dois sinos. Nas paredes alguns resquícios de azulejos persistem em nos mostrar a memória e a história da fé e da arte na região. As amplas portas, hoje molduras em pedra adornada com paredes sem reboco, exibem pedras e mais pedras montadas em um quebra-cabeça de encaixe que revela a ótica construtiva de meados do XVII e XVIII imerso em uma sociedade escravista.

O espaço contava com um sistema de abastecimento de água sofisticado, onde um aqueduto, ainda existente, trazia água da fonte para os fundos da cozinha. Alguns indícios apontam que essa água poderia passar por um aquecimento, devido a proximidade com o forno da cozinha para ser distribuída em pias de cantaria em espaços térreos. Ainda nesse pavimento ao menos duas pias sobreviveram. A distribuição dos espaços aponta para uma organizada logística e organização dos afazeres no convento. 

Todo o conjunto foi edificado com a finalidade de ser seminário, admitindo e abrigando noviços que almejavam a vida franciscana. Com o passar dos séculos e as reformas e estatutos políticos / religiosos, os mais de 200, 400 frades e outros tantos religiosos, no século XVII, foram rareando no século XIX. Descrições de frades nessa época já sinalizavam para a situação de arruinamento das edificações. 

É possível até mesmo imaginarmos a cena bucólica de um ou outro franciscano, no final do século XIX, perambulando entre corredores decadentes repletos de mobiliários em madeira escura e paredes desbotadas pelo tempo sob o olhar piedoso de virgens talhadas em madeira e tinta dourada. Se hoje as ruínas do antigo convento mostram decadência, no passado refletiam a saga da fé.

Se hoje as ruínas do antigo convento mostram decadência, no passado refletiam a saga da fé.

Passos de um desmonte
Em 1914, devido a situação deteriorada do espaço, aliada as condições já expostas nas mudanças diversas no cenário religioso, a Igreja e o Convento de Santo Antônio do Paraguaçu foram entregues a Arquidiocese de Salvador da Bahia. Na época era arcebispo Dom Jerônimo Tomé da Silva. O que aconteceu nos anos e décadas seguintes foi a devastação do seu interior, venda das talhas, partes do imóvel e área do entorno, que no passado compreendia a mais de 27.000 m².

Da opulência barroca em talhas, adornos e pinturas. Do brilho fosco pelo tempo nas imagens sacras. Da mobília coberta pelas camadas de pó de história, com seus trançados em palhinha desgastadas. Das voltas e curvas na cantaria e mármores sob portas e sobre pórticos. Dos madeiramentos de uma nobreza perdida no passado. E dos entalhes de mestres artesões, só temos no presente vislumbres dos fragmentos deixados como escombros. Corredores vazios, lindos em sua imensidão de arruinamento, pincelados por restauros e intervenções feitas no decorrer do século XX. Uma edificação carregada de história e relevância para a vila do entorno.  

Na nave da igreja, nas paredes laterais, azulejos portugueses ainda resistem repousados em silêncio sob o coro. Silêncio esse que sempre esteve presente na Igreja e no convento, afinal, fazia parte das dinâmicas religiosas das ordens, quando não era rompido pelo soar dos sinos e das orações e festejos. Os toques dos dois sinos ainda ecoam no vilarejo de São Francisco do Paraguaçu. Vez ou outra o seu Antônio, guardião do lugar, toca o sino. 

O som dos sinos além de um chamado com o divino e uma lembrança para as atividades religiosas, também resgatam histórias, imagens, lembranças perdidas no tempo e vivas nas paredes com cicatrizes. O lugar é um tesouro da Bahia que ainda persiste em frente ao Rio Paraguaçu.


RAFAEL DANTAS é historiador, professor e artista plástico. Pesquisador na área da cultura material e iconografia. É um apaixonado pelos encantos de Salvador, do Egito e da Bahia. Também dedica seu tempo em registar e contar nossa história em desenhos.