Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

História da Festa e Lavagem do Senhor do Bonfim: Elo de mundos na Bahia

Para falar sobre o festejo do Senhor do Bonfim é preciso contextualizar a Bahia no século XVIII. Naquela época o Atlântico descortinava caminhos para um mundo conectado. Pelo mar a Bahia adentrou o mundo e o mundo adentrou a Bahia. Ao longo dos séculos a intrínseca relação de homens e mulheres com o mar, e suas relações marítimas e comerciais, foram moldado a capital da América Portuguesa. Não é atoa a tradição naval existente, já descrita no texto anterior sobre os saveiros, no Recôncavo baiano.

É nesse contexto de homem e mar que tínhamos o Teodosio de Faria, comerciante e traficante de escravizados, que depois de sobreviver a uma tempestade em alto mar traz para a Bahia uma imagem do Senhor do Bonfim no ano de 1745. Em Salvador a Imagem do Bonfim foi colocada na Igreja da Penha. Em Portugal o culto ao Senhor do Bonfim já era uma realidade.

Nesse mesmo período diversos outros festejos religiosos já estavam inseridos em terras baianas, caracterizando a província como um dos lugares mais plurais nesse contato entre tradições e costumes. A religião era o grande foco da organização social no lugar. As igrejas estabeleceram ao longo do tempo importância que ultrapassava os limites da fé e atingiram as esferas políticas, administrativas ou mesmo territoriais, já que foi por causa de diversos templos, irmandades e conventos que freguesias nasceram e foram se consolidando. Ainda em 1745 surgiu a Irmandade do Bonfim e nos nove anos seguintes foi construída a Igreja na Colina Sagrada, na época um lugar ermo.

Na década de 50 do século XVIII a imagem do Bonfim é transladada em procissão da Ribeira, onde fica a Igreja da Penha, até a Igreja do Bonfim que nessa época ainda não possuía o traçado que passou a adornar o templo no final do século XVIII e primeira metade do século XIX. Surge então a procissão ao Senhor do Bonfim que passará por modificações nas décadas seguintes, ainda na no XVIII. O festejo já foi comemorado na época da Páscoa a depois, em 1773, passa a ser comemorado no segundo domingo depois da epifania, dia de Reis. Em 1804 o Papa Pio IV concede o breviário para a celebração da festa no segundo domingo depois de Reis. Em seguida, no ano de 1811, durante a festa já temos a presença de diversas atividades comerciais no entorno da igreja.

No início do século XIX as fitinhas do Bonfim não eram como as que conhecemos hoje, coloridas e pequenas. No início eram grandes e conhecidas pelo nome de “Medidas”, com 47 cm, tamanho do braço direito da imagem do Bonfim, e feitas com diversos tecidos e adornos.

Em 1772 a Igreja do Bonfim é concluída, mas passa por diversos acréscimos em sua fachada e interior no século XIX.  A parte externa possui fachada rococó e o interior é neoclássico. Destacam-se ainda exemplares da arte dos pintores Franco Velasco e Teófilo de Jesus.

A Lavagem do Bonfim
A ligação com o universo de tradições e costumes afro-baianos está presente desde o início do culto no Bonfim. Provavelmente a Lavagem do Bonfim surgiu ainda no século XVIII estando ligada aos preparativos de limpeza e arrumação da igreja para o dia de festa. No decorrer de todo o século XIX diversos representantes das elites políticas e eclesiásticas se manifestaram contrárias a Lavagem e aos batuques, festejos afro-baianos no mês de Janeiro durante os festejos do Bonfim. A Lavagem chegou a ser proibida em 1890.

O príncipe Maximiliano, em visita a Bahia em 1860, registrou em seu diário que ficara chocado com os batuques e as manifestações populares na festa do Bonfim. Maximiliano de Habsburgo não estava só nas severas e conservadoras críticas aos festejos. As tentativas de proibir a lavagem e estabelecer posturas moralizantes no festejo continuaram na primeira metade do século XX. Na década de 1930 a lavagem passa a ser feita no adro da Igreja na década de 1940 é proibida a lavagem no adro, que passa a ocorrer nas escadarias e arredores, e só retorna ao adro da Basílica do Bonfim décadas depois especialmente devido o incentivo e negociação do prefeito de Salvador, e depois governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães.

Em 1888 registram apontam que a abolição dos escravos foi celebrada aos pés do Senhor do Bonfim.

O Trajeto
A Consolidação do trajeto festivo da Igreja da Conceição da Praia até a Igreja do Senhor do Bonfim data da década de 1930. Até esse período o festejo começava em diversos pontos da cidade. No decorrer do mesmo século a festa e lavagem do Bonfim continua como a principal festa da capital baiana. Diversos artistas plásticos, escritores e fotógrafos, registraram em suas obras o Janeiro de festas consagrado ao Bonfim e o hibridismo cultural marcante nas ruas da Cidade Baixa. Odorico Tavares, por exemplo, menciona o “O Ciclo do Bonfim” no livro “Bahia: Imagens da terra e do povo”, com ilustrações de Carybé.

Aliada ao turismo local e a forte visibilidade por parte da mídia e de políticos, a partir da segunda metade do século XX os festejos do Bonfim ganharam projeção ainda maior. Nas décadas de 80 e 90 a Bahiatursa ajudou na divulgação da festa e das tradicionais baianas, milhares participavam, como símbolo da identidade local e construção de uma baianidade aflorada que foi construída nesse período. Nesse mesmo momento posturas conservadoras do arcebispado baiano, na figura de Dom Lucas Moreira Neves, posicionavam contrariedades a lavagem. Mesmo que a lavagem e as baianas representassem esse elo de mundos ao logo do tempo a Igreja Católica em diversos momentos não encarou como algo pertinente as tradições da Igreja.

Território de uma Bahia
Os festejos do Bonfim podem então ser entendidos como um grande momento que hoje representa bem a intersecção de costumes, invenções de tradições e mundos; universos presentes em um solo plural. Desde o século XVIII, passando pelo XIX e XX, com todas as medidas conservadoras e o racismo de cada época, juntamente com a fé de todos os povos presentes aqui na Bahia, o janeiro do Bonfim foi aos poucos sendo consagrado como elemento de divulgação da terra. O caráter de uso político e turístico construídos em meados do século XX, ressaltado nas décadas de 70 e 80, só elevaram a importância do evento atrelado a uma ideia de baianidade. Por fim, o Bonfim acabou mesmo se consagrando com um território plural, que mesmo sendo regido pela batuta católica, está em outro nível de pertencimento, é da Bahia, portando do Senhor do Bonfim e da fé em Oxalá também. O branco das vestes e o colorido das fitinhas do lugar mostram bem essa diversidade imersa em conflitos e resistência.


RAFAEL DANTAS é historiador, professor e artista plástico. Pesquisador na área da cultura material e iconografia. É um apaixonado pelos encantos de Salvador, do Egito e da Bahia. Também dedica seu tempo em registar e contar nossa história em desenhos.