Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

O som de silêncios dos saveiros e da Baía de Todos os Santos

Caminhar pela Cidade Baixa é visualizar uma série de retratos de uma velha Bahia. Seja nos casarios que persistem em ficar de pé ao longo dos séculos, no relevo acidentado em encontro com o mar e nas embarcações do porto, cena quase romântica imersa em ares de atualidade.

Ao lado desses retratos de um tempo, de uma velha Cidade da Bahia, temos também as ausências, sumiços e ocultamentos que deixaram lacunas em um cenário de encantos e contrastes. Uma dessas ausências pode ser notada para quem observa a região portuária da cidade, especialmente ao lado do Mercado Modelo, antigo prédio da Alfândega. Em um passado não muito distante a famosa rampa do Mercado era repleta de embarcações, onde os saveiros eram personagens quase que sempre presentes. De milhares nas décadas de 1920 e 1930 hoje temos menos de 30 embarcações pela Baía.

Foto: Rafaella Azevedo / @rafaellaazevedo

Para falar sobre essa história é preciso embarcar com a certeza de que o tempo não será contado por maquinários de relógios ou pelo vai e vem das grandes cidades. É preciso se desconectar do caos engarrafado do centro de Salvador e de suas grandes avenidas para navegar por águas calmas ao toque do vento que pode ou não se manifestar. Para encarar esse translado é fundamental entender como o tempo pode ter diversas formas de se manifestar, inclusive ao som do silêncio.

Os Saveiros
Os saveiros estão presentes na Bahia desde o início da ocupação portuguesa na América. Tudo indica que as embarcações baianas seguiram o modelo de outras embarcações de lugares distantes do globo, regiões conectadas no mundo do século XVI e suas intensas trocas comerciais e culturais. Fato é que o saveiro encontrou na Baía de Todos os Santos o seu lar, tornando-se um elo inseparável no trânsito de mercadorias por séculos.

Em um momento onde as estradas eram escassas e os caminhos existentes eram na verdade passagens lamacentas em épocas de chuva, sem uma infraestrutura aperfeiçoada, o deslocamento via mar era mais eficaz. Além de Salvador da Bahia, que nasce enquanto cidade em 1549 em contato direto com o Atlântico e sua Baía, outras vilas, cidades e povoados começaram a se destacar tornando-se referência no envio de produtos e grandes centros econômicos. Não podemos esquecer de todo o protagonismo das cidades de Cachoeira, São Felix, Santo Amaro, Maragogipe e Nazaré das Farinhas, além de tantas outras, durante a Colônia e o Império.

O saveiro, portanto, possuíam uma relevância que estava além de ser uma embarcação que carregava em suas partes milênios de saberes, eram o próprio elo de ligação de uma corrente visível no ato de saída e chegada das embarcações nos portos recôncavo a dentro. Nesse tabuleiro móvel guiado pelos braços fortes de mestres saveristas e pelo vento / mar / rios, embarcação e homem foram moldados e moldaram seu entorno.

O Saber
Atualmente são poucos os mestres artesões que dominam a arte de construir um saveiro. Muitos morreram não legando para as outras gerações seu saber, outros mudaram de atividades concentrando seus afazeres em trabalhos mais procurados. E alguns ainda hoje se aventuram em uma longa espera até o momento de novamente construir a embarcação.

Foto: Tati Azeviche / @tatiazeviche

Construir um saveiro, da forma tradicional, é quase um exercício de paciência, um mantra que pode durar anos. Primeiro que os tempos não são mais os mesmos do final do século XIX e início do século XX, não desfrutamos das mesmas matas e das facilidades de encontrar madeiras adequadas para cada parte da embarcação. Só para termos uma ideia entre a lista de peças necessárias podemos encontrar o Cedro, o Vinhático e o Pau d’arco, madeiras nobres, caras e ameaçadas de extinção. As dificuldades não param por aí, é preciso encontrar um bom mestre saverista para confeccionar o quebra cabeça de madeira em encaixe pregado.

No passado o recôncavo baiano guardava em seu litoral diversos lugares especializados na construção de embarcações de grande e pequeno porte. Algumas pessoas possuíam até mesmo uma pequena frota de saveiros, girando pequenas fortunas e movimentando a economia local. Mesmo que hoje as áreas que no passado eram referência na construção das embarcações possuam outras atividades econômicas, o brilho de outrora ainda pode ser encontrado em documentos e relatos que falam sobre essa potencialidade baiana esquecida e arruinada. Para os mais pacientes e aventureiros ainda é possível encontrar no Rio Paraguaçu retratos dessas tradições em vilarejos.

O tempo da construção de um saveiro varia de meses a anos. Como foi dito é fundamental a procura da madeira, o corte no tempo certo, o tipo correto para cada parte da embarcação e a montagem ao longo dos meses. Até o momento de o saveiro chegar ao mar um longo percurso de contemplação, saberes e paciência é travado. Os mestres saveristas ainda hoje narram que a madeira do mastro tem toda uma história que vem do nascimento da árvore, e seu crescimento em um lugar de vale até atingir determinada altura e espessura, até, depois de décadas, ser derrubada e trabalhada para segurar a vela do saveiro. As outras partes compõem o mesmo esquema de conhecimento que não foi aprendido em livros e sim na oralidade e no graminho.

A Associação Viva Saveiro é o principal grupo que matem essas tradições vivas. Um dos responsáveis, o Sr. Malaca, é a personificação alegre de uma Bahia cheia de historias e causos. Ter o privilégio de conversar com Sr. Malaca é contemplar um rico repertório de frases que dialogam diretamente com o mar e com os saveiros. Durante a conversa ouvimos: “prosa que faz curva”, “disgotar”, “é ruim de manobra”, “a beleza é o silêncio”, entre outras. O significado de cada uma dessas frases combina a depender do tom de uma das inúmeras conversas durante a travessia feita em um saveiro do dia 2 de outubro de 2020, de Salvador até Maragogipe. Os parceiros que apoiam a Viva Saveiro são os últimos responsáveis pela manutenção das embarcações na Bahia.

A travessia
Para quem leu Grande Sertão: Veredas, do ilustre Guimarães Rosa, sabe que o livro narra uma travessia, inclusive a própria leitura emula essa ideia. Em certo momento na leitura do livro a dificuldade da “travessia” perde força e a história segue seu rumo. Passear em um saveiro é sentir toda uma travessia onde o tempo não segue o tempo das grandes cidades, onde as horas não passam, ao mesmo tempo em que a mente aprende a contemplar as formas de sentir o tempo passar. No decorrer do trajeto pessoa e embarcação parecem se conectar em um laço de proatividade e paciência.

Talvez o que chame mais atenção é o som. Na verdade a ausência do barulho e a predominância de um som de silêncio representado na água riscando a embarcação e o vendo empurrando as velas. Uma sinfonia “lenta” – ou melhor dizendo: no seu tempo – que vai pouco a pouco percorrendo o rio e o mar. Todo o translado nos faz imaginar como era o trajeto das cerâmicas de Maragogipe até Salvador em 7, 8 horas de viagem e toda a ligação entre a tripulação, onde cada um desempenhava um papel de complemento a atividade do outro. Isso pode ser visto no momento do levantar da vela até a retirada da água de dentro do saveiro que no passado era feita pelo cuiadeiro, aquele que com uma cuia retira a água.

O trajeto feito no último dia 2 revelou-se uma experiência única. Contemplação vista do mar, inicialmente, e depois do rio, de uma Bahia que não está nos cartões postais. Uma experiência sensorial.

Outro ponto de destaque na travessia foi contemplar os restos de passados em engenhos e igrejas do recôncavo, marcos da opulência, pujança e opressões de séculos passados. Tudo isso imerso no verde de matas que ainda são predominantes no cenário onde o homem é passageiro.

Recôncavo de fortes, igrejas, conventos, engenhos e do povo.
A ocupação do território baiano ao logo da colônia seguiu os caminhos dos interesses portugueses e da imposição da lógica além mar em terras tupinambás. Com o passar dos séculos as extensas áreas dominadas pelo verde extravagante em contato com o azul dos rios e do mar, foi perdendo espaço para vilas, engenhos e igrejas. A saga da fé, e a força da ótica econômica do açúcar, começaram a marcar os contornos de terra para nunca mais sair.

Antigo Engenho Vitória – Cachoeira. Rio Paraguaçu

A Cidade do Salvador ainda hoje se destaca como uma das cidades mais fortificadas do Brasil. Só em seu litoral temos dezenas de fortificações construídas desde o século XVI e reelaboradas e ampliadas nos séculos XVII, XVIII e XIX. As extremidades da Baía de Todos os Santos, e as entranhas do recôncavo, com seus fortes e fortins, refletem muito bem a preocupação portuguesa em defender a região das invasões de outros povos, o que se tornou realidade durante a ocupação holandesa em 1624. Cada uma dessas construções hoje são não só um amontoado de pedras com guaritas e ameias, mas sim um sinal evidente da relevância da Bahia no cenário da América Portuguesa e dos caminhos do Atlântico por séculos. Se Salvador da Bahia se destacou pelo seu porto, um dos mais importantes das Américas no século XVIII e XIX, no Recôncavo o cenário não seria diferente.

Os caminhos marítimos singrando baía a dentro levavam para cenários de imponência, pujança, diversidades, contrastes e da escravidão. O principal destaque ainda hoje para quem navega pelos caminhos do Rio Paraguaçu é notar, quase que encrustadas, velhas igrejas e conventos construídos ao longo de séculos, como o Convento de Santo Antônio do Paraguaçu. Alguns arruinados, outros ainda de pé, persistem como elementos quase que enraizados na paisagem de verde ainda presente. Parece até que o tempo tem esse toque mágico de fazer como que construções pareçam brotar da terra. Mas na verdade todos esses ícones construtivos estão imersos na exploração do trabalho de escravizados e de diversos outros agentes responsáveis pela propagação da fé em templos e conventos. Se hoje algumas ruínas parecem quase que brotar de uma pintura em verde, amarronzado e azul, no passado eram sinais claros da presença de complexas relações sociais e suas opressões.

O mesmo vale para os engenhos. Velhos hoje, arruinados, jogados a sorte e quase cobertos pelo mato. Mas, importantes elementos da cultura material que oferecem um rico panorama de estudo sobre o período em que eram elementos chave na produção do açúcar. As largas paredes e os encaixes de pedra, em uma tentativa de aproveitar cada ângulo em equilíbrio imerso em argamassa, expõem não só as cicatrizes do tempo e do descaso, mas também são testemunhas de todas as cicatrizes causadas em homens, mulheres e no meio em volta.

Há 100, 200 anos atrás, diversas embarcações se encarregavam de fazer o translado das produções de lugar em lugar. Junto com os produtos, ideias, intenções e informações, perambulavam em uma rede de conectividades presas ao tempo do vento e dos mares. E é no povo de cada uma dessas regiões, das vilas mais modestas as mais grandiosas, que se desenvolveu uma cultura plural unindo elementos de tradições e costumes indígenas, portugueses / europeus e africanos.

Da cerâmica de Maragogipe, as cestarias de tatas outras cidades, da cana e do fumo, de gente em gente, o recôncavo foi expandindo-se e enraizando-se Baia a dentro. Como seus rios, o Paraguaçu, Jaguaripe e Subaé, o lugar foi moldando-se em contornos únicos que só podem ser vistos da água. Essa sim é uma pintura onde o curso das águas pincela a tela de nome recôncavo.

Um novo olhar sobre a velha baía e os saveiros
Tanta riqueza e belezas naturais e históricas não foram o suficiente para assegurar o devido destaque da Baía de Todos os Santos. Com o passar do tempo e as transformações no cenário econômico baiano, cidades perderem sua relevância e pouco a pouco o que era pujante foi minguando. Novos rumos passaram a delinear os contornos políticos da Bahia e a geografia do lugar começou a ser readequada para a passagem de rodovias e novos caminhos de escoamento. Se por um lado essas medidas garantiram que o estado seguisse os caminhos da modernidade, por outro, assinalaram a gradual decadência de saveiros e das demais atividades ligadas ao translado marítimo.

Foto: Rafael Dantas / @rafadantashistorart

A Bahia, com sua Baía, seguiu tristemente, a valorização de apenas um meio de deslocamento e uso de caminhos possíveis. Primeiro podemos destacar as ações férreas, a partir da segunda metade do século XIX, depois o incentivo terrestre com as rodovias. Infelizmente as coisas caminharam levando ao sucateando do que existia, inclusive das estradas de ferro, onde o novo foi priorizado em cima do esquecimento ou arruinamento do velho. Mesmo assim até meados do século XX saveiros e demais embarcações persistiram em suas atividades. As fotografias de Pierre Verger nos oferece um vislumbre do que era a Rampa do Mercado Modelo nesse período. Fotografias e filmes antigos mostrando feiras e regiões costeiras de Salvador e Santo Amaro também evidenciaram essa persistência. Mas, como já foi dito, de milhares de saveiros que existiam, hoje só trinta resistem. Os outros ficaram na memória, estão submersos, foram reutilizados para diversos fins, estão à espera de recuperação ou não existem mais.

Se esse potencial náutico baiano foi deixado de lado, hoje a ideia que norteia a Secretaria de Turismo da Bahia – SETUR, com o gestor da pasta Fausto Franco, segue o caminho de dar o devido destaque ao que a Baía pode oferecer. Há meses diversas conversas e estudos direcionados a valorização da Baía de Todos os Santos e do Recôncavo estão em um construtivo processo de criação. As obras via Prodetur / SETUR – com os píeres e marinas, clareiam para um novo momento. A recuperação do Museu Wanderley Pinho, em Candeia, são talvez o principal expoente unindo uma conectividade náutica e valorização do patrimônio histórico.

A mais simbólica das ações talvez tenha sido o passeio de saveiro na Cidade do Salvador, do Terminal Náutico até a Ribeira, no dia 1 de outubro, por coincidência dia do lançamento do Ford Modelo T no ano de 1908. E do segundo passeio de saveiro, reunindo entusiastas da embarcação, no dia 2 do mesmo mês de Salvador até Maragogipe, onde parte do translado foi descrito nesse texto.

O passeio de saveiro pela Baía de Todos os Santos apontou como um farol para as diversas possibilidades de valorização dos saveiros que ainda existem. Também sinalizou para a necessidade do resgate das embarcações, do turismo náutico e de toda a preservação do patrimônio histórico e verde que ainda resiste no recôncavo. Uma riqueza em silêncio esquecida por décadas, que aos poucos vai se deteriorando, mas que pode ter a sua devida valorização. Navegar em um saveiro é contemplar a Bahia de uma forma diferente, é ver o tempo passar sob uma outra ótica. É quase que voltar no tempo vivendo na atualidade e não possuir o controle exato dos rumos existentes, mas sim aguardar que as águas e o vento da Baía ofereçam rumos, quem sabe, melhores.


RAFAEL DANTAS é historiador, professor e artista plástico. Pesquisador na área da cultura material e iconografia. É um apaixonado pelos encantos de Salvador, do Egito e da Bahia. Também dedica seu tempo em registar e contar nossa história em desenhos.