Revista Sobrado
Arte: Yago Vieira / @yagoquefez

Saveiros: Entre a estética poética e o enigma iconográfico

Foi em um 1 de novembro de 1501 que uma expedição europeia margeou as calmas águas do grande mar interior, de nome kirymuré, terra dos tupinambás. A bordo das naus homens com a ótica cristã aproveitaram o calendário e nomearam as regiões por onde passaram com referências católicas. Surgia então a Baía de Todos os Santos, que séculos depois também seria a Baía de Todos os Santos e dos saveiros – assim ouso nomeá-la hoje. Com o passar dos séculos as embarcações extrapolaram o sentido de meio de transporte de gente e mercadorias para se tornarem um referencial estético baiano, cantado, pintado em tela, capturado em fotografias e descrito em livros.

Na semana passada destrinchamos as histórias dos saveiros no mar da Bahia, a conectividade com o recôncavo baiano e as particularidades de um passeio a bordo de um saveiro. Hoje vamos perambular pelos registros visuais e sonoros que capturaram o movimento sobre o mar das embarcações em contato com a Bahia. Documentos em preto e branco ou coloridos cheios de intenções. O texto de hoje tem como objetivo ser claro, como as águas da Baía, mostrar que por trás de toda a poesia, incluindo a iconográfica, existem camadas de história, com perfis e particularidades carregas de tempo.

O segredo das imagens
De forma sucinta temos que ter em mente que cada registro iconográfico possui camadas que podem ser lidas, como em um livro sem palavras, mas que o “texto” está presente no visual. Para além do primeiro plano onde se registra algum personagem, construção ou embarcação, temos todo um panorama onde cada um desses retratados possuem uma história, identidades com um intricado contexto que não pode ser despercebido na hora da leitura de uma imagem, de um livro ou de uma música.  

Diversos teóricos se debruçaram no estudo cuidadoso das fontes iconográficas. E um dos pontos em comum presente em diversos estudos é justamente o aviso para o fato de que as imagens podem enganar, que um cuidadoso jogo de ângulos e focos podem mostrar intenções que estão além do retrato, e são nessas camadas que encontramos o segredo das imagens. Segredo presente em todo o registro de tempo.

Cientes desse aviso preliminar podemos avançar nos mares da Baía de Todos os Santos, e nos seus portos, e ver um pouco de como os saveiros e os saveiristas foram retratados com sua estética particular e uma poesia em diálogo com o mar. Mas para além dessa moldura de encantos é necessário descortinar o que nem sempre na imagem está presente.

A construção de uma Bahia em preto e Branco
Desde o advento da fotografia no século XIX a capital da Bahia foi destaque em uma série de imagens que circularam o mundo. A ênfase de Salvador e de algumas cidades do Recôncavo Baiano, como Santo Amaro e Cachoeira, fora consolidada por uma série de fatores ligados a pujança econômica e a relevância no eixo das relações socioculturais ao logo dos séculos XVIII e XIX. A Baía de Todos os Santos, para além de suas belezas naturais, possibilitou uma intrínseca relação entre as cidades costeiras e todo o comércio de mercadorias e pessoas via mar.

Rampa do Mercado com Saveiros. Fotografia de Pierre Verger. As velas das embarcações emolduram o cenário da velha Cidade da Bahia

Livros oficiais, postais, litografias, fotografias, impressões em porcelana e gravuras das imagens dessas cidades, circulavam como verdadeiras lembranças de viagens ou mesmo um registro de como esses lugares eram importantes no cenário mundial no XIX. Só para termos uma dimensão dessa relevância a Cidade de Cachoeira e Salvador, apareceram ao lado de Londres, Amesterdã e outras tantas cidades europeias em impressões de postais e em jogos de chá. As impressões variavam entre o preto e branco das fotografias, quando não eram colorizadas, e delicadas nuances de verde, vermelho e azul em outros suportes. Um pedacinho da Bahia e do seu Recôncavo do açúcar, cerâmicas e fumo, que rodava o Brasil e o mundo.

Desde séculos atrás, ainda no XVII ou mesmo no XVIII, diversas outras publicações inseriram a Bahia entre as grandes rotas mercantis. Gravuras e mapas sinalizavam uma geografia particular e a evidência política da “cidade presépio”, capital da América Portuguesa até 1763, no Atlântico Sul (no instagram @rafadantashistorart tem uma série especial sobre esse tema). Com a abertura dos portos em 1808, e todas as mudanças socioeconômicas nos anos posteriores a Cidade da Bahia, Salvador, se abriu para o mundo e essa abertura também consolidou seu porto com um dos maiores nesse contexto.

No final do século XIX e início do XX algumas publicações com o intuito em mostrar as características de cada lugar do Brasil ressaltaram justamente esse contato de Salvador e do litoral baiano com o mar. A capital fora elencada como uma cidade tradicional, onde a fé católica estava sempre presente, e onde suas atividades comerciais eram seu grande destaque. No decorrer do período republicano outros tantos livros elevaram Salvador como um lugar moderno, que não ficava atrás do Rio de Janeiro, e que seguia a linha de virar uma “Paris dos Trópicos”.

Salvador da Bahia uma cidade em contato com o mar. Ilustração publicada na década de 30 do século XIX, gravado por S. Davenport

Nessa corrida em evidenciar cada lugar as imagens e registros então produzidos seguiam a ótica de selecionar o que era de interesse dos agentes políticos. O que era capturado nas imagens e postais, muitos divulgados nessas edições, de fato selecionava uma Salvador como queriam que fosse conhecida: moderna, “civilizada”, com um comércio forte, casarios modernos e ecléticos, em consonância com o momento e os padrões vigentes. A Salvador plural, marcada pela diversidade de sua cultura, a cidade com suas feiras e multiplicidade de mercadorias, com o colorido de sua gente, não estava presente nas representações citadas. Para ser mais específico, não existia a intenção em mostrar as desigualdades e todos os problemas sociais existentes nesses grandes centros. Ou seja, não basta somente olhar as imagens por si só, é fundamental ver o contexto e saber os pormenores de cada época.

Em meados do século XX muitos dos visitantes que chegavam na região portuária de Salvador se deparavam com um cenário de contrastes. A área era um misto de um vai e vem frenético de pessoas, veículos, embarcações, prédios decadentes – alguns já arruinados, mas ainda de pé – e ruas repletas de mercadorias pinceladas de dendê e outros produtos importados. De pianos e móveis europeus a tamborins e tamboretes encostados em parede de casarios coloniais ou no ecletismo do antigo Mercado Modelo. Essa era a grande feira a céu aberto na Cidade Baixa por onde mulheres e homens, muitos vestidos em linho branco, outros tantos em tecidos coloridos, e muitos outros com as costas nuas ou descalços em seus trabalhos diários. Uma cidade viva com sua gente no sobe e desce de ladeiras e na fé das igrejas e terreiros.

[…] No cais o velho Francisco balança a cabeça. Uma vez, quando fez o que nenhum mestre de saveiro faria, ele viu lemanjá, a dona do mar. […]
Mar Morto. Jorge Amado. 1936

Mar Morto. Jorge Amado. Edição de 1936. Edição José Olympio. Coleção Particular

O Escritor Jorge Amado foi um dos artistas proeminentes, ao lado de Caymmi, que revelaram essa cidade de cortiços, agressões, baixadas e ladeiras. Uma urbe além da imponência de imagens oficiais e panoramas para mostrar sua modernidade de cada momento. O preto e branco das letras na folha do papel fez com que seus livros viajassem pelo mundo, inclusive fazendo com que outros artistas se encantassem pela Bahia. Na década de 1930 publicou seus primeiros livros: O País do Carnaval, Cacau, e Suor em 1934, retratos de uma Bahia com um pano de fundo social bem aflorado. Em Suor, por exemplo, Salvador é descortinada com seus cortiços e desigualdades. Longe do ecletismo de palacetes e prédios comerciais da zona portuária da capital. No livro na Ladeira do Pelourinho um velho casarão é transformado em personagem evidenciando uma Bahia além do cartão postal. Seria em outro livro, Mar Morto de 1936, que essa ligação com o mar da Baía de Todos os Santos ganharia outro destaque. Na obra os saveiros dos homens e de Yemanja se tornaram um elo indelével entre os personagens e a magia das águas baianas.

Se o escritor Italo Calvino, nascido em Cuba e naturalizado italiano, tivesse encaixado a capital da Bahia em uma das suas Cidades invisíveis, livro publicado em 1972, Salvador seria uma grande feira com 365 igrejas, segundo Caymmi, com canais e diversos saveiros levando pessoas e mercadorias. Se nem Calvino nem Amado escreveram o toque irreal da descrição anterior, um francês se aventurou com suas lentes em capturar momentos da realidade em uma conexão entre o real e o fantástico. As fotografias de Pierre Verger evidenciaram a gente da Bahia imersa em uma cidade de becos, casarios, o mar e as velas de saveiros.

Mastros dos Saveiros. Rampa do Mercado Modelo. Fotografia de Pierre Verger

Se as imagens de Verger mostraram toda a poesia de meados do século XX em Salvador, devemos sempre lembrar que uma imagem é uma seleção de um momento, uma captura artística onde cada click é uma pincelada. Entre as pesadas velas dos saveiros temos homens com anseios, dificuldades, desigualdades, imersos em um panorama social complexo e as aventuras em mar com translados de 7, 8, 9 horas embaixo do Sol escaldante entre as cidades do Recôncavo Baiano. A imagem, portanto, capturam a poesia no dançar de corpos no subir e descer de velas e na retirada das mercadorias. Ao mesmo tempo em que nos alerta para os outros panoramas que não estão na imagem, mas sim nas vivências de cada época. Lembremos sempre dos “segredos das imagens” e nas camadas visíveis e invisíveis de cada registro.

O mágico no toque de Caymmi e Carybé
Outro ponto da estética poética que acalanta os saveiros está presente na música de Dorival Caymmi. Se Amado e Verger escreveram e fotografaram, respectivamente, as embarcações, Caymmi cantou como ninguém sobre o mar, a Bahia e os velhos saveiros. É importante destacar que o três citados, aliados a Carybé e outros artistas, formaram as bases do imaginário baiano, seja em preto e branco ou no colorido narrativo de livros e pictórico de telas. Em uma de suas canções Caymmi, que também era pintor, canta:

Cidade de músicos, de cores, de casarios de homens e mulheres e também dos saveiros. Elementos sempre presentes nas obras do artista plástico Carybé

Nem bem a noite terminou
Vão os saveiros para o mar
Levam no dia que amanhece
As mesmas esperanças
Do dia que passou

Quantos partiram de manhã
Quem sabe quantos vão voltar […]

Saveiros. Dorival Caymmi.

A letra ajuda a traduzir toda uma rotina saveirista que talvez em uma olhada rápida em uma fotografia não esteja evidente. Mas na música existe toda uma narrativa de preparativos antes de sair no mar, de madrugada, a espera do vento e do levar de yemajá, com todas as esperanças, “as mesmas esperanças do dia que passou […]”. O que nos leva a imaginar os desejos, projetos, expectativas desses homens, de suas famílias, mulheres e crianças, dia após dia. Incluindo a esperança de homens e mulheres de que voltarão vivos para casa: “[…] quem sabe quantos vão voltar[…]”.

Cada um desses registros, seja nas fotografias de Verger, nos livros de Amado, nas músicas de Caymmi e nas obras de Carybé, expõem um realismo mágico, moldado no axé, levados por saveiros e sambas, complementos necessários para a leitura dessa estética poética. Das gravuras, dos mapas, das fotografias, postais, pinturas e músicas a Baía e os saveiros possibilitaram metres em transformar o encanto em arte.

A cidade do Salvador aparece montada em suas duas Cidades, a Alta e a Baixa. Na frente do antigo Mercado Modelo os saveiros dando as boas vindas em uma cidade em contato direto com o Mar. Painel de Carybé

Saindo do preto e branco, e do toque do violão, outro nome também retratou os saveiros e os saveiristas da Bahia. Carybé foi um dos mestres banhados pelas águas do Axé que pincelaram a vida em contado com o mar e com as curvas do povo baiano. Longos mastros e uma multiplicidade de saveiros em portos saíram da Rampa do Mercado para marcarem telas e gravuras com um vívido colorido e traçado característico carybeano. Atrelado em feiras, festejos e no dia a dia dos trabalhos, mastros e velas saltearam como imagens de um movimento único imersos na criatividade do artista. A rica produção de Carybé seguiu os caminhos da valorização dos costumes e das peculiaridades da Baía. Foi a contribuição em cor para o enigmático que envolve o universo dos saveiros. 

O referencial e o enigmático das velas dos saveiros
Mesmo com o rareamento das embarcações e o sumiço de sua presença na Rampa do Mercado, já descrito no texto anterior, os saveiros continuaram vivos nas fotografias, pinturas, esculturas e na música. Suas carcaças tiveram diversos reaproveitamentos e as velas ainda permanecem na memória dos mais antigos como lembranças do tempo em que o som do silêncio ainda era ouvido nos mares da Bahia.

Demais artistas como Voltaire Fraga, Bel Borba, Nilton Souza, Henrique Passos, Mario Cravo Neto, Kiko Silva, Rafaella Azevedo, Giácomo Mancini e tantos outros, com seus estilos e sensibilidades, nos oferecem produções de uma poesia incrível. Cada vela de um dos menos de 30 saveiros existentes representa uma esperança enigmática de bons ventos ou do cruel declínio da tradição. Luzes de sensibilidade apontam para a volta do passeio em saveiros, projeto da Secretaria de Turismo da Bahia, aliada a resistência dos integrantes perspicazes da Associação Viva Saveiro.

Se no passado cada uma das velas levava as embarcações Baía a dentro, hoje elas estão a espera de novos sopros de histórias. Cada uma das imagens aqui descritas são retratos de um tempo que apesar de ter os saveiros como personagens principais, mostram o auge, em meio a tradições e cicatrizes, e o declínio, entre a esperança. Ao leitor cabe a difícil tarefa de ler, ler além das palavras ou da imagem retratada. Ler entrando na história e saboreando o som do silêncio em visões enigmáticas carregadas de amores, dores e poesias.


RAFAEL DANTAS é historiador, professor e artista plástico. Pesquisador na área da cultura material e iconografia. É um apaixonado pelos encantos de Salvador, do Egito e da Bahia. Também dedica seu tempo em registar e contar nossa história em desenhos.