Revista Sobrado
Foto: Caio Lirio / Divulgação

Experiência imersiva da vida artística e cultural de Salvador na pandemia

Sair de casa durante uma pandemia mundial para ir à uma exposição de artes visuais parece no mínimo esquisito, mas com as flexibilizações das autoridades, isso já é possível aqui em Salvador e, aos que não têm medo de se expor na rua, o Goethe-Institut, no Corredor da Vitória, segue com a exposição coletiva Zonas Limítrofes. A galeria recebe visitação até o dia 6 de novembro, de segunda a sexta-feira, das 11h às 17h. A entrada é gratuita e a visita deve ser previamente agendada em www.sympla.com.br/goethebahia.

A mostra tem curadoria de Tiago Sant’Ana e reúne obras inéditas, criadas para a ocasião. Os artistas que fazem parte da exposição coletiva são Iris Helena, No Martins, Rafael BQueer e Ventura Profana, residentes do Programa de Residência Artística Vila Sul, do Goethe-Institut de Salvador.

Visitei a exposição na última quinta-feira, 15. Resolvi passar pela experiência e trazer a realidade para vocês. Então me cadastrei no link, recebi os ingressos por e-mail e fui até o Goethe-Institut. Desde já, quero avisar que, enquanto jornalista, vou fazer meu trabalho de viver a experiência e passar a informação, não quero motivar ninguém a sair de casa, esse é um texto informativo.

CUIDADO: esse é o olhar de um jornalista recém-formado, como costumam dizer por aqui, “ainda cheirando a leite”. Vou passar aqui nesse texto os sentimentos que foram acionados na hora da visita. Detalhe importante, apesar de ser pela manhã, estava com um bom humor e alimentado!

O acesso é liberado às 11h e eu peguei logo o primeiro horário (das 11h às 11h30) para evitar encontrar pessoas – risos. Cheguei umas 10h50, pontualmente às 11h o acesso foi liberado pelo segurança que aferiu minha temperatura e me indicou o totem com álcool em gel para higienizar as mãos, sala com ar condicionado desligado e portas abertas – coisas comuns nesse tempo de pandemia.

Sentinela avançada, guarda imoral | Foto: Xande Fateicha

Logo uma instalação à direita me chamou a atenção, foi a Modus operandi da justiça penal, do artista paulista No Martins. Me veio a memória imediatamente o provérbio que diz “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”. Um lado pintado de branco enrolado, no conforto, e o outro lado pintado de preto todo esticado e se arrebentando. Uma crítica social com o apoio fundamental de signos. Coisas que só a arte consegue promover.

Na mesma galeria que está a instalação, estão mais duas obras de No Martins e eu decidi ficar lá para sentir as obras, antes de ler ao texto de abertura. Uma obra Sem título – Da série Contrariando as estatísticas e a outra Suas amarras não me prendem. Nas duas, o protagonista é negro.

A primeira é um jovem de corpo inteiro, com uniforme de time de futebol e uma bola na mão, tendo atrás de si um medidor de alturas típico de processo de fichamento policial, mais uma vez o diálogo dos signos com a crítica social se fazendo presente na obra de No Martins.

A segunda que experimentei é uma acrílica sobre a tela enorme e a pessoa que está por trás das tiras – que parecem uma grade -, não me parece estar se importando muito com quem a observa, pensa ou não a seu respeito. A personagem segue lendo e vivendo, independente das tiras – amarras – da sociedade. Não quero ser repetitivo, mas uma pessoa que pesquisa semiótica vai amar essa galeria.

Enfim cheguei no texto de abertura e adorei que tem um QRCode com o programa da exposição. Em época de pandemia isso é muito higiênico, e espero que isso seja algo a ser adotado após a vacina chegar. Eu detesto levar programas de exposições e espetáculos para casa (geralmente faço foto) e com o programa virtualizado, eu posso levar o arquivo em PDF, a partir da leitura do código. Isso reduz a minha produção de lixo no mundo e meu espaço em casa para guardar programas.

Na galeria maior, onde estava o texto, tinham três espaços com as obras de Iris Helena, Rafael BQueer e Ventura Profana. Fui sentir a instalação Tropicaos 1 de Rafael BQueer e me encantei com o painel de tecido estampado com folhas, flores e pena, que me colocou em um lugar tranquilo, mas um rasgo no meio do tecido me incomodou – logo eu que sou virginiano. Tem um vídeo que mostra o processo da instalação e, a partir disso, eu lembrei que a arte está aqui para movimentar mesmo. O estereótipo da tropicalidade ganha realidade quando é mostrado o que está por trás da imagem.

Na outra parede da galeria, a obra da artista Ventura Profana, Dona do ouro e da prata é Jesus, viver como trava é o prêmio da guerra, um trabalho com a fotografia de Shai Andrade e costura de Ana Rita Ferreira. Há pontos marcantes nessa obra, a protagonista é a própria Ventura Profana, a pastora das travestis, que está alocada na Igreja de São Francisco de Assis – Pelourinho. Essa é a famosa igreja de ouro, que foi construída pelos negros escravizados por colonizadores e hoje é considerada uma das setes maravilhas de origem portuguesa no mundo.

Sim, mas voltando à obra de Ventura Profana, ela está vestida numa túnica com a frase “LADRA QUE ROUBA LADRÃO” bordada. A fotografia foi feita num plano contra-plongée dando voz, vez e lugar à pastora das travestis e fazendo a crítica necessária aos normativos.

Foto: Caio Lirio / Divulgação

Na obra Memorabilia, da artista Iris Helena, muitos materiais são usados. Me incomodou bastante ficar ali, não sei se por questões pessoais, ou o barulho de vidro quebrando no vídeo Às mãos negativas, da ação criativa que fica também exposto na galeria. Não sei ao certo, mas sei que fiquei angustiado – e angustia de máscara não é para qualquer um.

São memórias individuais com vivências coletivas a partir de fotos pessoais de diferentes famílias que foram estragadas pelo tempo. Um outro material é criado ali a partir da junção de diferentes arquivos, um novo objeto com o resultado. O lugar do híbrido ganha forças nessa obra, ao mesmo tempo que a marca forte de cada foto separada continua e se ela é observada sozinha, a semelhança com as memórias que são perdidas é marcante. É como se fossem duas – ou mais – obras em uma.

A exposição conta com nove obras, ou mais (risos). Trouxe aqui as que, de alguma forma, me inspiraram para escrever esse texto. Esse retorno me fez entrar em contato com a arte de forma presencial e segura.