Revista Sobrado
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Uma reflexão sobre o amadurecimento em ‘Special’, da Netflix

Este jornalista que vos escreve precisa roer muito osso para fazer uma crítica – recém-
formado, sei que, de longe, esse texto será um comentário sobre as duas temporadas da
série Special, que estão disponíveis na Netflix. Pela minha experiência – desde o ventre de
minha mãe – como uma pessoa LGBTQIA+ e PCD (Pessoa Com Deficiência), avalio como
importante debater sobre essa produção audiovisual aqui na Revista Sobrado.

A primeira temporada da série foi lançada em novembro de 2019 e a segunda em maio de Vou partilhar algo muito particular: quando assisti pela primeira vez, não tinha a cabeça que tenho hoje, não me identificava como uma pessoa com deficiência, mudei meu olhar.

A série é baseada no livro “Eu sou especial: e outras mentiras que contamos a nós
mesmos”, de Ryan O’Connell. Connell também é o protagonista, assina roteiro e produção
da série. A trama é de um jovem adulto diagnosticado com paralisia cerebral, gay, e que
vai em busca de sua independência. Apresenta, principalmente, uma “saída do armário” –
não por ser gay, mas por ser um PCD. Sair do armário quando se é LGBTQIA+ é difícil, é
violento, mas sair do armário quando se é uma pessoa com deficiência é provar o tempo
inteiro que se é “capaz”, é deixar de ser desejado. É muito difícil.

A primeira temporada é composta por oito episódios com cerca de 15 minutos de duração
cada. Já nela, a gente sente que a série chega para causar. São trazidos ao debate temas
que, numa realidade normativa, passam despercebidos, pelo fato de fazerem parte de
pautas de minorias representativas. O tema do racismo é colocado na série, do amor
próprio, da afetividade, da importância de relações, do amadurecimento. No entanto, pela
curta duração dos episódios, o debate desses temas não é aprofundado.

Mas, mesmo em pouco tempo, cenas marcantes ficam registradas na memória, principalmente de um LGBTQIA+ e PCD. A importância de uma amizade, o momento que
Ryan perde a virgindade, o apoio de um amigo para fazer algo que é mais difícil, mas sem
melindre, sem pena. O spoiler vem na ponta dos dedos, quer se soltar, mas prometo que
não fornecerei nenhuma informação indelicada.

A segunda temporada tem episódios um pouco mais longos, com uma média de 30
minutos cada. Nela, conseguimos perceber que há uma continuidade, mas com diálogos
amadurecidos, com o dobro de tempo em cada episódio. Além disso, há a inserção de
temas mais variados da comunidade LGBTQIA+, como mais personagens representando
as letras da sigla em sua diversidade e o aparecimento de mais personagens PCD. Os
membros da comunidade podem se enxergar nas telas, saber que não é impossível viver e
chegar lá.

Ryan vive ciclos e todo ciclo tem começo, meio e fim. O problema dessa segunda
temporada da série não foi o fim, mas o meio. Fica parecendo que as coisas mudam da
água para o vinho e o roteirista, que é o próprio Ryan, atropela algumas coisas para
encerrar logo e contar tudo. De uma forma abrupta, quem é mocinho vira vilão em diálogos
rasos.

Gostei muito de como a série termina, mas o caminho até chegar ao fim me incomodou. A
maturidade é bem discutida nessa segunda temporada da série, o começo e o fim mostram
um Ryan maduro, mas o que está entre o começo e o fim não conquista.

Ao meu ver, o erro é uma possibilidade fantástica que a pessoa tem para melhorar as
ações. Ryan se relaciona com pessoas que erram, ele também erra, mas onde o diálogo
foi parar? Nós erramos, conversamos, aprendemos, fazemos diferente, esse ciclo se
repete sempre na vida. A vida não é precisa, exata como uma fórmula.

A série se encerra nessa segunda temporada, provavelmente pelo alcance da audiência
que não foi como o esperado pela Netflix. Nós temos diversos veículos de comunicação
que falam de séries, filmes, músicas e tantas outras produções. Canais no youtube,
portais, podcasts – veículos inclusive da comunidade LGBTQIA+, mas são poucos os que
debatem a série.

Dentre os privilégios no âmbito social, na comunidade LGBTQIA+ não é diferente. A bicha
PCD é apagada, por padrões e normas, disfarçados de “alternativos”. A série Special
termina cheia de signos e ressignificações que te deixam empolgado e pensando que pode
ser diferente, mas também lembra o quão diferente é a realidade: inacessível. Realidade
em que a pessoa com deficiência lida com gente que se aproxima por pena, que olha
como um “especial” (no sentido do diferente) ou uma “inspiração”. Esquecem que somos
seres humanos e que temos sentimentos, desejos, afetos.

Ryan mostra no desfecho de sua trajetória que, com amadurecimento, essa realidade pode
mudar. Pois vamos amadurecer, pessoa com deficiência, pessoa sem deficiência,
mulheres e homens cis, pessoas trans, todas e todos. Vamos amadurecer!