Revista Sobrado
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Uma reflexão sobre a linguagem a partir de Sound of Metal

Atenção: esse texto contém spoilers (revelações sobre o enredo) do filme Sound of Metal O
Som do Silêncio)

Concorrente em seis categorias do último Oscar, Sound of Metal levou duas das estatuetas:
Melhor Montagem (Mikkel E.G. Nielsen) e Melhor Som (Nicolas Barker, Jaime Baksht, Michelle Couttolenc, Carlos Cortes e Philip Bladh). À primeira vista, se apresenta como um drama centrado na problemática da perda de audição, cujo protagonista que a enfrenta é, justamente, um músico. No decorrer da trama, o filme nos apresenta por meio da jornada de Ruben Stone (Riz Ahmed) questões ainda mais complexas com as quais qualquer espectador pode identificar-se: o drama da existência, as contradições da linguagem e a busca pelo equilíbrio num mundo povoado por excessos e faltas.

Ao lado da namorada Louise (Olivia Cooke), com quem divide o duo de heavy metal
Blackgammon – ela na guitarra e nos vocais, ele na bateria – Ruben leva uma vida de nômade. O universo criado pelos dois está bem representado no trailer que lhes serve de casa: um microcosmo de significados compartilhados por eles, que é mostrado em pequenos detalhes do roteiro e em momentos captados pela câmera.

Ao mesmo tempo em que seguem uma intensa rotina de shows para públicos amantes do
gênero musical e dirigem rumo à próxima cidade, Ruben e Louise dialogam na linguagem do heavy metal e naquela criada por eles enquanto casal. As marcas de cortes no braço de Louise sugerem tentativas de automutilação, provenientes talvez de um grave quadro depressivo. A contrapartida do companheiro à sua dificuldade de levantar-se da cama é preparar um suco de frutas e vegetais e acordá-la para dançar. Por sua vez, sugere-se que Louise tenha tido um papel importante em ajudar o companheiro a largar o vício em heroína, uma vez que os quatro anos em que esteve “limpo” também são os mesmos quatro anos em que esteve se relacionando com ela.

O que a perda progressiva e rápida do sentido da audição provoca em Ruben é uma trajetória de perda geral de sentidos (as motivações da vida que leva): o que faz um músico de heavy metal frente ao desaparecimento tão repentino de seu principal meio de trabalho? O universo a dois com Louise também rapidamente desmorona – tamanha frustração do companheiro, em face de uma questão inédita em suas vidas, é algo que ela não tem condições de compartilhar. Tampouco tem sugestão mais coerente do que a que lhes dá Hector (parece ser seu empresário ou talvez psicólogo) pelo telefone, que encontra para Ruben uma Casa na zona rural para a educação de surdos, que também oferece um programa de recuperação para aqueles com algum vício.

Lá, o baterista é recebido por Joe (Paul Raci), idealizador do projeto, que perdeu a audição na guerra do Vietnã e, após isso, enfrentou o alcoolismo. Enquanto Ruben tem em mente realizar uma cirurgia caríssima para introduzir em sua cabeça um implante auditivo, Joe propõe que ele “aprenda a ser surdo”. Convicto de que o implante trará de volta os sentidos que o moviam para a vida, Ruben protesta ao pensamento bem-intencionado de Joe tanto quanto às suas doutrinas comportamentais controversas. Frente à ansiedade de Ruben, Joe lhe determina que acorde às cinco da manhã e “busque a quietude” numa sala vazia, munido apenas de papel e caneta. Mas não compreende que essa quietude está muito além das possibilidades do jovem e não poderia jamais ser introduzida nele a fórceps.

Nem tudo são penas. Durante sua estadia na Casa, Ruben aprende a American Sign Language (ASL), língua de sinais americana e tem um bom desempenho comunicando-se com as crianças da turma da professora Diane (Lauren Ridloff), como seu auxiliar. Um dos alunos lhe desperta afeto em particular por sua inquietação na aula. A solução de Ruben é oposta à de Joe: numa das cenas mais emblemáticas do filme, do lado de fora da sala de aula, o baterista tenta fazer o garoto relaxar por meio das vibrações geradas pelo batuque num escorregador.

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As crianças agitadas e iniciantes em seu processo de aprendizado e descobertas são mais
capazes de se conectar com Ruben do que seus colegas adultos. Mais adiante, ele consegue
estabelecer uma amizade com uma das colegas de grupo, presumivelmente lésbica, com quem se conecta a partir de sua habilidade para desenhar. Esboça para ela uma mulher nua que a amiga tatua nas costas. Em troca, a moça o ajuda a vender todo o equipamento do trailer para levantar dinheiro para a cirurgia. Resistente a integrar-se à cultura surda, Ruben continua decidido a tentar “recuperar” a vida que tinha antes de perder a audição.

Realizando buscas secretas no computador de Joe, ele descobre que Louise seguiu carreira
solo em Paris, onde está morando com o pai. Tomado pela agonia de ver o mundo que
conhecia ir em frente a despeito de sua condição atual, ele toma uma atitude impulsiva:
telefona para uma clínica e marca sua cirurgia. Para bancá-la, além dos instrumentos musicais e de todo o aparato interno do trailer, aceita vender por um preço irrisório o próprio carro. Seu objetivo é comprá-lo de volta depois, com a audição recuperada, e então ir em busca de Louise.

Depois de um dia fora para realizar a operação, Ruben retorna à Casa e conta a Joe, pedindo que permita que ele fique abrigado lá por alguns dias até que tenha que voltar à clínica para “ativar” o implante. Ao final, Joe alega que isso seria uma hipocrisia de sua parte, por acreditar que a surdez não é algo a ser consertado, e coloca o baterista para fora. O militar veterano e um jovem punk parecem o tempo inteiro falar línguas diferentes – mesmo quando Ruben já sabe o suficiente de ASL para compreender bem o que lhe diz Joe. Simbolicamente, permanecem muito distantes, uma vez que uma ideologia (apesar de digna) foi colocada à frente da empatia pela angústia de um ser humano.

Conduzido por essa angústia, o baterista não pôde imaginar que a operação não funcionaria como esperava. Ao contrário de sua sensível audição de músico, o implante reproduziu o mundo em seus ouvidos como o ruído artificial de um rádio velho. Isso não o impediria de tentar retomar sua vida, relacionamento e carreira de onde parou se não tivesse encontrado Louise completamente mudada, falando francês junto à rica família de seu pai (Mathieu Amalric) e cantando com uma voz doce e fina junto a seu acompanhamento de piano. É o sentimento de frustração por observar uma relação impossível de se concretizar novamente por um universo de significados não compartilhados que leva Ruben a, enfim, abrir mão de seu plano.

Tendo o som como grande protagonista, o filme de Darius Marder expõe a língua como
representante das diferentes formas da linguagem e da comunicação entre pessoas ou grupos culturais. Faz isso com competência e conta com a atuação fiel e emocionante de Ahmed, indicando que as certezas que cultivamos na vida são apenas capítulos de nossa própria história.

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