Revista Sobrado
Foto: Coletivo ISO 314 / Divulgação

O carnaval das lives e a velha exclusão dos blocos afros

Para quem ama e aproveita o carnaval de Salvador como eu, foi difícil segurar a dor das ruas vazias e do silêncio dos trios nos dias que deveríamos estar nos esbaldando pelas ruas da primeira capital do Brasil. Restou relembrar a festa, postar fotos e vídeos antigos, mandar mensagens no zap para os amigos: “que saudade desse dia” e expressar o desejo para que 2022 possamos ocupar as ruas, vestir a camisa dos blocos, colocar uma fantasia, correr atrás do trio, aglomerar do jeito que gostamos e sabemos fazer.

Em meio a este cenário de pandemia do novo coronavírus, tivemos que usar a criatividade para curtir em casa, acompanhando as lives dos artistas que arrastam multidões pelas ruas de Salvador, que dessa vez, tiveram que arrastar os foliões pelo mundo virtual da internet.

Sim, as lives foram o oásis em meio ao deserto pandêmico. Dançamos, curtimos, vibramos e nos emocionamos. Mas nem tudo são flores. Afinal, no carnaval real também é assim, logo, não seria diferente no virtual. A estrutura e os patrocínios que os principais artistas e os grandes blocos recebem se fez presente no carnaval virtual, escancarando a desigualdade e a exclusão de uma parcela enorme de artistas que contribuem e fazem o carnaval de Salvador ser o que é.

Esse tema é recorrentemente debatido, justamente porque quase nada é feito para ser reparada tal contradição, que nos dias de carnaval fica mais evidente. Esse tema permeia o documentário Axé: Canto do Povo de um Lugar, produzido pelo publicitário Chico Kertész, lançado em 2016 e hoje disponível na Netflix. Mas o debate não se aprofunda, ficam apenas as denúncias de que aqueles que deram a base sonora para a axé music foram os mais excluídos da partilha do bolo. Contudo, não se aponta um caminho para a partilha igualitária.

Essa divisão desigual do bolo se mostra no carnaval real na estrutura de bloco, nos trios, na ordem do desfile, no tempo que ocupa na transmissão televisiva e nos patrocínios públicos e privados que recebem. A pandemia, tempo que exige apoio e solidariedade, onde “ninguém solta mão de ninguém”, deveria ser o momento para a reparação histórica e dividir o bolo em fatias iguais. Mas não foi isso que aconteceu.

Foto: Antonio Carvalho / Divulgação

Vimos o Olodum, o grupo afro-percussivo mais importante do mundo – que gravou clipe com o rei do pop Michael Jackson (1958-2009) – anunciar o cancelamento de sua live por falta de patrocínio. Situação que só foi revertida após empresas privadas assumirem o apoio. Afinal, não ter a live do Olodum era escancarar demais a desigualdade do tamanho das fatias do bolo.

Margareth Menezes, sem dúvida alguma, uma das maiores cantoras negras do mundo, também deu entrevista relatando a falta de patrocínio. A voz que registrou Faraó divindade do Egito – composta por Luciano Gomes, e que de fato representa a cor da nossa cidade – seria silenciada.

Uma cervejaria construiu um circuito tentando abraçar esse setor, proporcionando lives (gravadas) com o Ilê Aiyê, Gerônimo e Filhos de Gandhy, com transmissões no canal da própria cervejaria no YouTube, com pouca divulgação. Foi meio que uma espécie de cota: “Deixa eu dizer que fiz a minha parte”. Afinal, sabemos o interesse das cervejarias: marcar espaço, para tentar manter o monopólio de venda nos circuitos oficiais da folia.

Mas também ficam os questionamentos aos blocos afros. Quando irão tirar uma lição de tudo isso? Até quando seguirão aceitando comer a menor fatia ou quase nada do bolo? Infelizmente, quando olhamos para os blocos afros, percebemos um distanciamento de suas bases e raízes. Nasceram como parte da luta e da resistência do povo negro, que também exigia o direito de brincar o carnaval e de ter a sua identidade afro aceita e respeitada. Foi assim com o Ilê Aiyê e o Olodum.

Não seria hora de refletir e traçar novos caminhos? Olhar de onde partiram e para onde foram? Até quando seguir dependente de patrocínios daqueles que os renegam? Não existiria outra forma de financiamento junto aos seus fãs e a base social onde estão inseridos?

Tudo isso são perguntas para refletirmos. Não estamos aqui julgando ou apontando o dedo na cara de ninguém. O nosso objetivo é contribuir para um debate que sempre se repete, mas que não aponta perspectivas para o futuro. É hora de tirar lições e olhar para frente, conectado no retrovisor da história, e traçar um caminho em que esse tipo de exclusão seja superado. Chega de migalhas! Quem colocou o fermento no bolo, merece comer um pedaço digno.