Revista Sobrado
Foto: Disney / Pixar / Divulgação

“Soul” e as questões existenciais da Pixar

Pete Docter tem a magia. Como membro da velha guarda da Pixar, ele sabe uma ou duas coisas sobre como fazer um bom filme de animação. Depois de comandar as palhaçadas cômicas de Mike e Sully em Monstros S.A., mexer com os nossos corações com as aventuras de Russell e Sr. Fredricksen em Up – Altas Aventuras, explorar por que sentimos o que fazemos com Divertida Mente e ajudar a escrever Toy Story e WALL-E, podemos afirmar que o homem é estável.

A influência de Docter ajudou a definir o que agora conhecemos como um “Filme Pixar”. As sequências na década de 2010 podem ter diminuído o selo de qualidade que veio com a luminária saltitante. Hoje podemos dizer que são raros os filmes que nos deixam emocionados com um rato que quer cozinhar, e consequentemente fez surgir dúvidas se devemos ou não desembolsar alguns reais para ver um filme sobre dois ogros dublados por Tom Holland e Chris Pratt.

Num ano como 2020, com a chegada da Disney+ no Brasil e o fechamento dos cinemas decorrente da pandemia do coronavírus, nos perguntamos se a nova obra da Pixar, Soul, dirigido por Docter, pode ser o retorno daquela magia dos filmes anteriores do estúdio? Com Soul, o mesmo nível de produção cinematográfica impressionante encontrado em filmes anteriores de Docter podem ser vistos aqui, com certeza. Mas ainda falta alguma coisa.

No filme, Joe Gardner (dublado originalmente por Jamie Foxx) sonha em tocar jazz profissionalmente. Durante o dia, ele orquestra notas desafinadas para uma banda do ensino médio, mas a cada momento que passa encontramos esse músico repleto de ilusões. A calmaria da rotina tenta enfraquecer seu ânimo, mas sua grande chance chega quando ele tem a oportunidade de tocar com a lendária cantora de jazz Dorothea Williams (Angela Bassett). 

Depois de cair em uma tampa de bueiro aberta, nosso protagonista é enviado para o além (chamado no filme, no original, de The Great Beyond) – a luz metafórica no fim do túnel. É claro que Joe, agora uma estranha bola azul, não aceita sua morte, fugindo do caminho da Luz. Isso leva Joe ao O Grande Antes (The Great Before), onde ele conhece 22 (dublada por Tina Fey), outra alma azul que vem tentando encontrar sua vocação há séculos. Monitorado pelos Jerrys – seres desenhados em linhas, maravilhosamente animados e de origem cósmica que moldam a personalidade de uma alma -, 22 e Joe embarcam em uma aventura pelos reinos etéreos da vida e da morte para voltar à Terra, para que Joe possa se reunir com seu eu físico e cumprir o que sempre foi feito para fazer.

Foto: Disney / Pixar / Divulgação

Mas, ao contrário de Up, Monstros S.A., e especialmente de Divertida Mente, temo que Soul é onde a busca de Pete Docter por inteligência fica pra trás. Ele se sente excessivamente preocupado em introduzir conceitos sobrenaturais que ele esquece de encontrar um centro emocional, e isso é sentido logo nos primeiros minutos. Leva apenas SETE MINUTOS até que Joe Gardner entre em O Grande Antes, e ao me apressar eu simplesmente não conseguia me identificar com nosso herói, roubando o filme de uma abertura adequada. Jamie Foxx é bom, mas é difícil simpatizar com uma bolha azul. Há também uma grande (mas surpreendente) mudança narrativa no meio do caminho que só funciona se o filme tiver tempo para apresentar adequadamente esses personagens.

Soul, no entanto, se assemelha bastante a Divertida Mente, tanto em semelhança narrativa quanto em expressão temática. A estrutura do enredo vê nosso personagem principal encontrando ideias abstratas materializadas como representações de desenhos animados em um esforço para retornar a algum estado anterior com novos aprendizados. Em muitos aspectos, Soul pode parecer uma evolução mais madura das ambições temáticas presentes no trabalho anterior de Docter. Não se engane, este filme ainda é temperado com o Pixarismo que o torna um lançamento de mercado de massa palatável no estábulo da Disney, mas as ideias centrais são muito existenciais, tornando-o mais ressonante com os pais do que com as crianças sentadas ao lado deles.

O filme gosta de fazer perguntas maiores do que a vida. Qual é o meu propósito na Terra?, Como deve ser a aparência e a sensação de uma vida gratificante?, O que tudo isso – viver – significa?. Isso mostra a capacidade do Docter de pegar temas comuns e torná-los mais fantásticos do que a maioria.

Foto: Disney / Pixar / Divulgação

Em se tratando da narrativa, Soul é basicamente um filme clássico de assalto. Joe e 22 devem completar uma lista de tarefas para atingir seu objetivo. Soul também é surpreendentemente um dos filmes mais engraçados da Pixar dos últimos anos, com piscadelas para jovens e adultos; referências sutis à rotina diária, relações entre as gerações, mas também humor pastelão. E como sempre com a Pixar, você vai de um sorriso a uma lágrima.

O maior peso dramático vem das diferenças entre os personagens principais. Joe às vezes é muito chato porque está obcecado com seu sucesso iminente e até então com uma carreira “fracassada”. Ele está tão preocupado consigo mesmo que deixa 22 por conta própria. Já 22 está, na verdade, procurando um propósito na vida, mas tem uma visão diferente da de Joe.

Significado é algo que você mesmo dá à vida. Às vezes, todos pensamos que ninguém vai se lembrar de nós quando partirmos. E Soul prova que todos temos um impacto sobre os outros e que às vezes é maior do que você pensa. Outro clichê é “aprender a gostar das pequenas coisas”. Na correria da vida, às vezes esquecemos disso. É nesses momentos que Soul ressoa em pérolas subestimadas do cinema como Questão de Tempo, de Richard Curtis.

A Pixar entrega uma bela animação com Soul, sem dúvida. Um espetáculo visual cheio de cores que vai cativar os mais pequenos e fazer os adultos se perguntarem o quão impressionante a animação pode se tornar. Os ambientes da Terra são quase foto realistas, o mundo das almas é uma mistura de estilos; toques de animação 3D que, novamente, lembram Divertida Mente, animações esboçadas e até designs abstratos com muitas linhas.

Foto: Disney / Pixar / Divulgação

O visual também é bem apoiado pela música. Trent Reznor e Atticus Ross (A Rede Social) fizeram uma trilha sonora que também soa onírica e sobrenatural, mas ainda vai bem com outro estilo musical importante: o jazz. Esses arranjos são de Jon Batiste, músico de jazz e líder da banda do The Late Show, de Stephen Colbert. Essas diferentes camadas e combinações tornam Soul um passeio incomum, mas harmonioso.

No final, Soul parece mais um exercício ou colagem de conceitos inteligentes, e que também parecem menos inteligentes do que o filme talvez pense que são. Em Divertida Mente, a construção do mundo está habilmente ligada a algum pensamento psicológico, enquanto em Soul parece muito mais superficial e fácil. Sua mensagem final parece a mesma; é uma ótima mensagem, mas ao contrário de outros esforços da Pixar, eu não senti uma sensação de iluminação no final. A pandemia em que vivemos certamente dá ao filme um significado mais profundo, e é uma pena que as pessoas não possam apreciá-lo juntas.

Soul fica disponível no Dinsey+ a partir do dia 25 de dezembro.