Revista Sobrado
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‘Veneno’, um tremor no silêncio

Descobri a série Veneno, distribuída pela HBO Max, quase por acaso. Quando soube que se tratava de um drama biográfico de uma mulher trans, prostituta, que ficou famosa por aparecer num programa de talk-show espanhol nos anos 90 (Esta Noche Cruzamos el Mississippi), receei estar prestes a assistir uma narrativa excessivamente trágica ou pautada num ideal de superação das adversidades que acaba por apagar a complexidade da vida de pessoas reais.

Esses tipos de enquadramento são comuns no cinema – especialmente em Hollywood – e geralmente perseguem histórias de pessoas com deficiência, negras ou da comunidade LGBTQIA+, como se os retratos de suas vidas estivessem fadados a uma imagem de tragédia ou de heroísmo. No jornalismo, e sobretudo no televisivo – que possui o recurso da imagem -, a discussão da exploração do sofrimento aparece claramente quando pensamos os programas sensacionalistas. Mas também há, fora do sensacionalismo, discursos velados de exploração e vilipêndio. Alguns moram na mensagem, outros moram nos meios.

Por isso quero falar de Veneno: acredito que a série de Javier Ambrossi e Javier Calvo narra a história de Cristina Ortiz, a Veneno, com particular sensibilidade, respeito e criatividade. A ação dramática principal nasce a partir do encontro da Veneno com a jovem Valeria Vegas, que vive um processo de descobrimento de sua identidade enquanto mulher trans.

Para introduzir o espectador à sua abordagem, o roteiro utiliza como recurso o paralelo entre as histórias de Cristina e de Valeria até o seu encontro. A primeira, “revelada” à sociedade da época por meio da televisão, em 1996. A segunda, estudante de jornalismo, em 2006. A série tem base no livro ¡Digo! Ni puta, ni santa. Las memorias de La Veneno, publicado por Ortiz e Vegas em 2016.

Ao começar a escrever a história de sua admirada Cristina, a Valeria retratada por Lola Rodríguez questiona-se sobre os limites éticos do jornalismo e o papel dos meios de comunicação. A síntese apresentada ao final do primeiro episódio é a seguinte: a fala confere existência, e o que não se fala (no âmbito dos meios comunicacionais e da opinião pública), não existe. Noção baseada na teoria da Espiral do Silêncio, da alemã Elisabeth Noelle-Neumann, que defende que o medo do isolamento silencia opiniões divergentes da opinião dominante.

É sob essa lente que os criadores comunicam a escolha de contar as histórias de Cristina e de Valeria, sem reduzi-las ao romantismo heroico nem à tragédia. Mas claro, sem deixar de lado as qualidades do gênero melodramático almodovariano. Destaco também o protagonismo de atrizes trans na representação de todas as personagens trans. As atuações do trio Daniela Santiago, Isabel Torres e Jedet, que interpretam a Veneno em diferentes fases da vida, são firmes e comoventes. Lola Rodríguez nos guia pela história com um estilo quase teatral que também favorece a busca por identidade da juventude à qual todos podemos nos identificar. Rodríguez inclusive interpreta Valeria pré-transição, provando o que já sabíamos: Eddie Redmayne era realmente desnecessário no papel.