Revista Sobrado
Foto: Arquivo pessoal / Divulgação

Breno Silva: “A poesia pra mim é uma mãe, a rua foi uma espécie de pai”

“A poesia transformou minha vida, meus pensamentos e experiências”, diz Breno Silva. O jovem, de 20 anos de idade, nascido e criado no bairro de Sussuarana, em Salvador, faz da poesia marginal uma arma na luta contra o racismo e o genocídio do povo negro.

Em conversa com a Sobrado, Breno falou de suas experiências como artista de rua, da criação do Coletivo Pé Descalço e de seu último trabalho audiovisual, em parceria com a cantora Sued Nunes.

Sobrado: Como teve início a sua relação com a poesia?
Breno Silva: No final de 2016, quando eu estudava no Colégio Estadual Senhor do Bonfim, aconteceu uma gincana. Foi aí que recitei uma poesia em público pela primeira vez. Foi uma apresentação ao lado de dois amigos. A partir daí, não parei mais. A poesia me dominou. Vi que era isso que queria fazer em minha vida. Depois do evento na escola, criei coragem e comecei a ir pra rua recitar. Comecei a expor a minha arte dentro dos coletivos como forma de conscientização e também para o meu próprio sustento.

S: Como foi essa experiência de ir à rua recitar poesia?
BS: Foi um desafio muito grande entrar nos ônibus para recitar,  pois sempre fui muito tímido. Lembro a primeira vez que recitei dentro do buzu, estava me tremendo todo. Falei com o motorista, eu e outro amigo entramos. Quando estava recitando, esqueci uma parte da poesia. Uma senhora sorriu pra mim, eu sorri pra ela. Comecei a improvisar, recitando o que veio em minha mente. Isso foi muito bonito e importante para que eu continuasse. Aquele sorriso foi como se ela estivesse dito: ‘continue fazendo, é assim mesmo’. Aí eu continuei.

S: Como era a recepção do público?
BS: Nem todo mundo dava atenção, mas isso é uma questão particular e individual de cada pessoa. A maioria prestava atenção, algumas pessoas interagiam. Ficava muito feliz. O desafio maior foi enfrentar o preconceito, principalmente o medo de acharem que era assalto. Uma vez, eu e um amigo estávamos na Avenida ACM. Pedimos permissão ao motorista, como sempre fazíamos, e entramos no ônibus, sem perceber que tinha uma viatura da Polícia Militar atrás. De repente, um policial bateu na porta do fundo, onde eu estava. Ele já chegou apontando o fuzil pra mim. Essa é uma situação diária que vários artistas de rua passam. Quando a gente vai pra rua fazer arte, por mais que a rua pareça ser um espaço livre e aberto, a gente acaba sendo preso, sofrendo limitações. São opressões diárias que temos que enfrentar.

S: Quando nasce o Coletivo Pé Descalço?
Durante as apresentações dentro dos ônibus, fui tendo contato com outros artistas. Já estávamos unidos na ação, no ato de fazer arte de rua. A ideia do coletivo nasceu após algumas conversas entre nós. Assim, em junho de 2017, iniciamos a organização do Coletivo Pé Descalço. A intenção foi unir jovens que expressavam diferentes tipos de arte, não queríamos ficar restritos apenas a poetas. Com isso, fomos crescendo, novos artistas foram se incorporando. Quando fundamos o Coletivo, chegamos a um total de 16 artistas, todos jovens negros, de bairros periféricos de Salvador.

S: Como você avalia a criação do Coletivo Pé Descalço?
BS: Foi muito importante a fundação do Pé Descalço. Primeiro, como uma criação coletiva, reunindo jovens artistas diferentes, mas todos de mesma origem e vivências parecidas, como negros e moradores de bairros periféricos. Segundo, porque permitiu que construíssemos uma rede com outros grupos. Assim, outras portas foram abertas pra gente. Passamos a receber convites para apresentações em escolas e universidades. Assim, fomos intercalando esses espaços com as apresentações nos ônibus. Sempre seguindo nosso ritual, que é fazer nossas apresentações descalços, em qualquer espaço a gente esteja. Isso é muito forte, muito bonito e sagrado. Temos que sentir a energia do lugar. A criação do Coletivo também nos permitiu a criar alguns projetos como o A Rua Recita.

S: Como funciona o projeto A Rua Recita?
BS: Passamos a frequentar outros espaços, mas não saímos da rua. Seguimos fazendo arte de rua para a rua. O sarau aberto A Rua Recita é o primeiro projeto do Coletivo Pé Descalço, e para além de mostrar nossos trabalhos tem como objetivo principal reconhecer as vozes de uma galera que já tá trampando na rua e de pessoas que desejam entrar no mundo da arte e da poesia. Queremos reconhecer vozes que por muito tempo foram silenciadas. O projeto nasceu em 2018 e já realizamos seis edições. Todas tiveram como palco a Praça da Cruz Caída, no Pelourinho, que é um lugar estratégico e com uma história de resistência. É muito visitado, tanto por quem mora em Salvador como por turistas. E lá, também, encontramos muitos artistas exibindo seus trabalhos de forma livre, a céu aberto.

S: Hoje você mora e estuda em Cachoeira, no Recôncavo. Como tem sido essa experiência?
BS: Aos 18 anos de idade, fui aprovado no curso de Museologia, na Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), aí fui morar em Cachoeira, que é uma cidade mística.  A minha mudança pra lá foi um baque também, foi como ter entrado no buzu pela primeira vez para recitar poesia. Não conhecia ninguém, nem sequer tinha ido a Cachoeira antes. Tudo era novo pra mim. A universidade foi um espaço que abriu muitas portas pra mim no campo da arte e da minha vida mesmo, para além do mundo artístico. A vivência na universidade permitiu a construção de um outro projeto, que é o Bala na Agulha.

S: No que consiste o projeto Bala na Agulha?

BS: É o primeiro projeto que desenvolvo fora do ninho onde fui criado. É um selo de produção artesanal que criei junto com Sued Nunes, que é artista e também estuda na UFRB. Desde 2019, começamos a produzir caderninhos artesanais, costurados à mão, como forma de manifestar nosso lado artístico e de incentivar a leitura e a escrita. O nome Bala na Agulha vem desse processo de criação artesanal com a agulha, a bala seria a ideia que queremos repassar. Foi um trabalho bem aceito, inclusive nos abriu um espaço na última edição da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica). Fazemos entrega para as cidades do Recôncavo e Salvador.

S: Como foi essa participação na Flica?
BS: Então, participei de dois espaços na última da Flica. Um dos espaços foi com o Coletivo Pé Descalço. O outro, através do projeto Bala na Agulha. Eu e Sued Nunes fomos convidados a apresentar nossos cadernos e recitar algumas poesias. Resolvemos fazer uma espécie de sarau, em uma praça de Cachoeira, e estendemos o convite a outros artistas. Dividimos nosso espaço com outros artistas. Foi uma experiência incrível construir este espaço coletivo.

S: Você sempre pontua o tema da coletividade. Por quê?
BS: O sentido de coletividade está comigo desde o início do meu trabalho com a poesia. Quando recitei pela primeira vez foi com duas pessoas. Percebi que sozinho, às vezes, a gente não dá conta. Sempre quis que as pessoas manifestassem o mesmo interesse e vontade pelo coletivo que eu tenho. Acho que venho conseguindo fazer isso, pois meus trabalhos sempre são em parcerias. Acho muito importante sentir a outra pessoa. Incentivar alguém a seguir o caminho da arte. Assim como fizeram comigo, quero fazer com todo mundo. Dar espaço pra todo mundo.

S: Seu novo trabalho Tempo de Pipa reúne poesia, música, audiovisual, e foi construído em parceria com a cantora Sued Nunes. Que mensagem você quer passar com este trabalho?
BS: É um poema que traz minha origem em Sussuarana. É um olhar para o passado. É a percepção da minha infância. Brinquei muito de pipa, ao mesmo tempo em que presenciei violência na comunidade. É uma poesia que fala da minha vivência. É uma poesia marginal, negra e periférica. Assim que terminei de escrever, passei pra Sued Nunes ler. Ela achou lindo. Aí eu disse ‘pô, se você puder e tiver um espaço, bota sua voz aqui e vamos criar juntos’. Quando a gente cria e quer expor para o mundo, que o mundo veja a nossa arte, a gente precisa do apoio e da atenção do outro. Esperamos isso das pessoas mais próximas. Foi isso que aconteceu com a Sued, bem como com a turma do Corvo Vermelho, que ajudou na produção do audiovisual. Algumas cenas foram gravadas em Cachoeira e outras em Sussuarana. As cenas aqui do bairro foram feitas por Jomar, outro amigo meu que chamei pra ajudar e ele topou. É isso, Tempo de Pipa fala sobre minha vida, mas seu resultado final é resultado dessa conexão 075 e 071.

S: Estamos em meio à pandemia do novo coronavírus. Como isso atingiu os artistas de rua?
BS: A pandemia atingiu em cheio os artistas como eu, que desenvolvem e apresentam seus trabalhos nas ruas. Tenho amigos que sobrevivem fazendo arte de rua. Que é uma arte em contato com a população. Então, foram prejudicados. Mas há todo um movimento de reinvenção para seguirmos atuando na pandemia. Estão acontecendo encontros para o recital de poesias, slams, tudo via internet. Temos que ocupar e meter as caras nesses espaços on-line. Mas seguimos atuando na vida real das comunidades, como estão fazendo em Sussuarana com a ação Onça Solidária.

S: Como acontece essa ação Onça Solidária?
BS: As favelas foram fortemente atingidas pela pandemia. Sempre recebemos pedradas de todos os lados, mas buscamos a auto-organização. O Coletivo Pé Descalço organizou um projeto social comunitário – Onça Solidária – para ajudar os moradores de Sussuarana. A campanha Quem tem bota, que não tem tira é a concepção da iniciativa que tem ajudado os moradores em situações emergenciais com a oferta de itens alimentícios e de materiais de limpeza. É um projeto itinerante, que vai circulando por pontos estratégicos, aqueles com maior movimentação, que tenham alguma referência na comunidade.

S: A pandemia continua e você também segue atuando. Você tem novos projetos para o próximo período?
BS: Sempre pensamos no futuro, né?! Estou aí com a ideia de um projeto que é a continuidade do Tempo de Pipa. Quero retomar com uma nova roupagem, em formato de podcast. Não será sobre a poesia Tempo de Pipa, mas sim sobre seu conteúdo, que é a minha história de vida, minha infância, minha vivência. Já com o Coletivo Pé Descalço, a ideia é lançar um EP de poesias, onde cada artista apresentará um poema, para ser compartilhado na internet. Aproveitando esse movimento de ações on-line, devido à pandemia, vamos realizar um concurso literário, voltado aos artistas baianos, que terá como resultado uma publicação em formato PDF, para ser distribuída de forma gratuita.

S: Toda a nossa conversa se deu em torno da poesia. O que significa esta arte em sua vida?
BS: A poesia pra mim é uma mãe, a rua foi uma espécie de pai. A minha vida se transformou através da poesia, assim como meus pensamentos e experiências. Foi a poesia que me fez evoluir na vida, para além do meu lado artístico. A poesia me fez encarar minhas dúvidas, avançar nos meus estudos, me fez pesquisar e conhecer outros autores. A poesia me tornou o que sou hoje. A poesia pra mim é tudo e tudo é poesia, desde uma música até a fala da minha avó.