Revista Sobrado
Foto: Adeloyá Ojú Bará / Divulgação

Dodi Leal: “Não podemos simplesmente acreditar que as coisas mudam por si só”

Mas não se esqueça/ levante a cabeça/ aconteça o que aconteça/ continue a navegar/ continue a travecar/ continue a atravessar – as palavras de Linn da Quebrada, em Serei A, harmonizam com as da artista e pesquisadora Dodi Leal, professora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) na área de Artes Cênicas. Para ela, é preciso olhar os perigos nos olhos e atravecá-los, criar uma via de possibilidade, de transmutação. Doutorada em Psicologia Social pela USP, onde também se graduou em Artes Cênicas, Dodi ressalta a importância de formar pessoas trans para a carreira docente: no ensino superior no Brasil, bem como dentro da área de artes no mundo, ela é a única travesti concursada.

Em entrevista à Sobrado, a professora comentou sua jornada de pesquisa no teatro, que vai desde uma provocação transfeminista ao Teatro do Oprimido de Boal – a Teatra da Oprimida – ao estudo da iluminação cênica e às modificações proporcionadas por corpos não-hegemônicos na área. Também falou sobre a relevância da busca pelas próprias origens, sejam elas pertencentes à história reprodutiva de nossas famílias ou não, o tensionamento provocado por pessoas trans nas artes no País, a relação entre sociedade e Universidade, sua participação na primeira exposição do Museu Transgênero de História e Arte (MUTHA) e a inauguração de Encruzitrava, uma galeria voltada à performance idealizado por ela em Santo André (Santa Cruz Cabrália, no sul da Bahia).

Sobrado: Como começou sua história com as artes?
Dodi Leal: Eu sou da periferia de São Paulo, na Zona Leste, venho de uma família de retirantes nordestinos do Piauí, e também de imigrantes operários da Espanha e de Portugal do início do século XX. A gente foi empurrada para a periferia de São Paulo, num lugar no qual não tínhamos nenhum equipamento de cultura. Na minha infância não tinha teatro. Eu já tinha uma vontade muito grande de me envolver com dramaturgia, com cena, sem saber esses nomes, sem entender que era disso que se tratava porque ainda não tinha esse conhecimento.

Foi por meio da televisão que eu comecei a entender a minha vocação para as artes. Eu acompanhava muito de perto as programações, os trabalhos televisivos, e ainda não tinha também essa dimensão crítica da indústria cultural que a televisão está involucrada, mas eu fruia com graciosidade, digamos assim, os programas de TV. Foi por esse caminho que na adolescência eu me envolvi com as Chiquititas, que era a novela do SBT, e fiz um fã clube que ficou bem famoso na época. Foi bem no comecinho da internet, eu sou cringe (risos). Então, eu comecei a fazer um jornalzinho e enviava pelos Correios para todo o Brasil, vendia fotos também, do elenco. Em São Paulo eu fazia encontro de fãs com o elenco. Levava na casa do elenco, no hotel, no aeroporto, e também nos programas de TV: Hebe, Domingo Legal, Programa Livre, e enfim, fazia um auê. Aí, olhando hoje para trás, 22 anos depois, eu vejo que essa foi minha primeira experiência de produção cultural, ainda que não tenha sido remunerada – quer dizer, eu também vendia fotos, então instruía as pessoas a colocarem o dinheiro dentro das cartas para vender. Eu falo hoje que era tráfico de imagens (risos). A gente pedia autógrafos e as artistas assinavam num papel em branco. Hoje é uma coisa muito estranha, mas na época era uma prática comum.

S: Em seu trabalho, há uma centralidade numa ideia muito interessante que é o transicionar dos gêneros, das metodologias, como o gênero teatral. Como tem sido essa pesquisa?
DL: Muito desafiadora. Muita gente acha que as provocações e as experiências que eu tenho condensado na Teatra, nesse projeto transfeminista de mudança epistemológica, de romper com o patriarcado, com a cisnormatividade, com a branquitude nas práticas e metodologias, se resume a mudar a letra, a linguagem. Como se agora a gente chamasse de todes e tá tudo resolvido, como se existisse linguagem neutra. O que a gente tem são tentativas de jogo de gênero na linguagem, mas toda linguagem é uma relação, não é neutra, ela tem relações, tem atitudes. Então, eu fico com esse desafio de mostrar que o trabalho da Teatra é muito mais do que a troca de uma letrinha, é uma substância de provocação.

S: Uma de suas áreas de pesquisa é uma leitura crítica da luz em cena. Como a linguagem da iluminação cênica pode refletir as lutas sociais?
DL: Essa também é uma pesquisa em processo, que acho que é muito maior do que eu. Eu faço também essa provocação, inclusive aqui na UFSB tem o ILUMILUTAS, que é o projeto de extensão que eu coordeno, que é exatamente essa interrogação. Como a iluminação pode, não talvez expressar corpos não-hegemônicos, mas como corpos não-hegemônicos e lutas sociais modificam a iluminação – os estudos e as práticas de iluminação. A gente tem visto nas artes cênicas muitas pessoas gordas, negras, questionando os padrões de branquitude, de magrocentrismo, muitas pessoas trans questionando os padrões de cisnormatividade. E aí a gente percebe que a iluminação cênica sempre foi pensada para corpos brancos, cisgêneros, magros, adultos. Isso quer dizer que ela tem um conjunto de padrões e de pensamentos, não só a técnica e os equipamentos, mas o pensamento. Então, me parece que uma das grandes contribuições de corpos não-hegemônicos na iluminação cênica é de alargar esse campo para novas perspectivas, novos pensamentos e novas práticas.

S: Em sua tese, você cunha o conceito de árvore transgênero-alógica, uma forma de ligação histórica, cultural, poética, com pessoas que não estão na composição de nossa “árvore genealógica”. Poderia explicar mais sobre essas ideias?  
DL: Sim, a busca por uma raiz é muito importante, eu acho que todo mundo tem essa sensação e essa necessidade de compreender a sua ancestralidade, a relação com a terra, e sempre entender como os processos que antecederam a gente trouxeram a gente até aqui. Mas a gente sabe que essa história não é sempre bonitinha. As pessoas que vieram antes de nós passaram por muita violência ou violentaram. A depender da marca racial e de gênero que a gente fala, das nossas famílias, a gente vê muita violência praticada.

Nas minhas buscas no sul do Piauí, no sul da Espanha e no norte de Portugal em torno da minha árvore genealógica, e buscando reencontrar pedaços da minha família reprodutiva – que veio da minha vó e do meu avô, meu pai, minha mãe -, eu fui percebendo que eu estava também em busca de algo maior nesses lugares. Eu percebi que a gente precisa compor essa árvore com outras poéticas, outras conexões que não somente aquelas que nos dão. Aí eu fui percebendo, juntando dados. Por exemplo, no sul da Espanha, percebi que a época de nascimento da minha bisavó e do meu bisavô coincidem com a região e época de Garcia Lorca e Antônio Machado. E os sobrenomes também: Garcia  e Ruiz, que também vieram para minha família. Eu pensei: então, eu sou da família de Antônio Machado e Garcia Lorca também. E perceber nessa busca de uma composição de uma possível transcestralidade exemplos como o caso de Garcia Lorca principalmente, que foi morto, perseguido na ditadura Franquista da Espanha por dissidir de uma sexualidade hegemônica e de combater a ditadura. Existe ali uma semente da transgeneridade que não era reconhecida na época também, a dissidência sexual também rompe com os padrões de gênero cisnormativos. Então eu percebo que Garcia Lorca é uma pessoa que guarda essa semente. Mas todas as nossas travestis ancestrais também compõem essas poéticas. Eu tenho conseguido, e acho que todo mundo pode conseguir também, compor e criar sobre sua estrutura alógica de gênero da árvore. Por isso transgênero-alógica – diferente da lógica genealógica da árvore que a gente herda da reprodução cisnormativa.

S: Você cresceu em São Paulo e atualmente é professora da UFSB. Dentro das suas áreas de trabalho, envolvidas pela desobediência de gênero, encontrou diferenças ou particularidades entre essas duas regiões do Brasil? 
DL: Tem uma diferença temporal também. Não apenas da espacialidade. Quando eu vim para cá, eu percebi que comigo vieram também e aqui já estavam mudanças estruturantes a respeito da desobediência de gênero. Eu acho que tem diferenças que são nítidas para mim do ponto de vista da estrutura normativa, por exemplo: a UFSB é uma Universidade nova, diferentemente das outras que cheguei a colaborar, que me formei. Me formei na USP, que é uma Universidade gigantesca, antiga, mas que não estava preparada para uma professora travesti. Ainda não está, eu acho. Mas venho descobrindo cada vez mais que a UFSB também não está. E é difícil porque não dá para ser uma única pessoa trans. Eu acho que esse é o que eu tenho chamado, parafraseando a Chimamanda [Ngozi Adichie], o perigo de uma trava única. Quando a gente é a única trava do lugar, acho que você sabe, às vezes ser a única pessoa negra de um espaço, é uma violência estrutural gigantesca. A gente não tem com quem confabular, é sempre a estranha no ninho. Eu acho que é quando a gente mostrar que essas nossas presenças são inegociáveis que a gente vai conseguir mudar. Ainda tem muita luta pela frente. Ser as primeiras dos lugares ainda guarda consigo um grande perigo, um grande desafio.

S: Na USP não há ainda nenhuma professora travesti?
DL: Concursada não, acho que no mundo, na área de artes, eu sou a única. Por isso acho importante formar, atuo na orientação de doutorado, formando outras pessoas trans também para que sejam professoras. Aqui na UFSB, por exemplo, a gente tem uma docente que é colaboradora, mas não ganha salário, está fazendo um trabalho voluntário. Concursada não tem, é desafiador, difícil.

S: Como podemos pensar para a Universidade propostas para sua melhor integração com toda a sociedade?
DL: Romper com o elitismo da Universidade, que também é um espaço de dominação. Temos que entender que esses mecanismos atuam não só como epistemicídio daqueles saberes que não são codificados pela Universidade – esse processo ainda continua acontecendo – mas também como um abuso epistêmico com relação à sociedade. Eu vejo que a Universidade tem muito a se modificar enquanto estrutura, mas a sociedade também, não podemos idealizá-la. Se não, a gente fica com uma ideia de que a Universidade é ruim e a sociedade é boa. Na verdade, a sociedade que a gente vive também é muito elitista, muito epistemicida, e promove ataques covardes à Universidade nos seus pontos fortes. E isso é inadmissível também. É preciso equacionar melhor essa relação entre Universidade e sociedade, me parece que ela está obliterada, está sem o cuidado que ela merece, a complexidade que ela merece. Se a gente não prestar atenção nessa relação, corremos o risco de que esse distanciamento se agrave ainda mais, e não queremos isso. A gente sabe que são instâncias que nunca deveriam ter se desconectado. A Universidade deve servir ao saber. [O ataque à Universidade] É uma covardia. A Universidade faz um trabalho que nenhuma outra instituição tem feito, esse ponto precisa ser destacado. A sociedade tem que valorizar sim a Universidade. 

S: Atualmente, compreende-se melhor a importância de ter atores e atrizes trans para representar histórias de pessoas trans, não só pelo aspecto da própria representatividade mas também para a inserção dessas profissionais no mercado de trabalho. Você também é ligada com o Cinema, tendo estudado no Canadá. Como você analisaria a trajetória dessas produções no Brasil e no exterior?
DL: Eu vejo que são produções que estão de novo com uma ideia de perigo. Elas estão modificando uma estrutura que não foi feita para a gente, pessoas trans. A estrutura do teatro não foi pensada para a gente, foi pensada para usar as nossas vivências, muitas vezes contra a gente, quando somos impedidas de estar nesses espaços. E eu percebo que é preciso estudar um pouco essa relação de periculosidade mesmo, de pessoas trans na cena, para modificar a estrutura, com a ideia de que vivemos uma teatra. Num artigo que estou publicando agora na Inglaterra, que fala um pouco desse panorama da arte trans no Brasil, nesse perigo de perseguições políticas, de toda crise política que estamos vivendo, crio um neologismo que é a palavra transdanger. No inglês, há a palavra transgender, então eu falo que somos transdanger. Na tradução, o editor me perguntou: mas será que há algum problema de tradução com esse termo? Quando você fala que vocês, pessoas trans nas artes no Brasil, vivem um perigo, e que são transdanger, você tá querendo dizer que são perigosas ou vivem um perigo? Eu respondo: as duas coisas.

S: Você faz parte da primeira exposição do MUTHA (Museu Transgênero de História e Arte), com poemas do seu livro De Trans pra Frente e a performance Tetagrafias. Como você avalia a criação desse projeto no nosso contexto atual? Como foi para você participar?
DL: Eu valorizo demais a criação do MUTHA, que foi idealizado por Ian Habib, e tem feito um trabalho de arquivo vivo muito potente e forte, mas não só. A outra contribuição do museu eu acho que é ressignificar todos os museus, para pensar novas estruturas. O museu também é um espaço de assassinato, de epistemicídio, a arte também mata. E a arte elitista que a gente viu os museus organizarem sempre foi apropriadora. Ter um museu organizado com pessoas trans, com a obra de pessoas trans, disponível para a sociedade em geral, é uma revolução. Mostra, como o próprio Ian tem falado, que é um museu transformacional, porque o museu também está em transformação. E aí eu digo para ele em resposta: o MUTHA também é uma obra de arte.

S: Num país ainda marcado por muita desigualdade social, conservadorismo e moralismo como o nosso, também aparecem artistas necessários para tensioná-lo. Nas artes cênicas, por exemplo, temos Boal com o TO, Abdias Nascimento com o TEN e o Teatro do Sentenciado, e também Dodi Leal com o convite proposto pela Teatra da Oprimida. Como não esmorecer diante desse nosso tempo?
DL: (silêncio) Uau! Menina do céu… não tem outra pergunta não? (risos) Ter coragem. E ter vigor. Para olhar face a face. Há uma ideia de que, diante de uma situação, podemos ter pelo menos três opções: fugir, atacar, ou ficar diante, olhar face a face. Eu pensava assim há uns anos, nessa coisa de olhar face a face, mas hoje tenho procurado pensar o seguinte: é preciso olhar frente a frente, mas não basta. É preciso algo a mais. Então, acho que vivemos uma grande encruzilhada diante dos desafios que a gente tem, e que traz também uma ideia de atravessar, ou de atravecar os perigos que a gente vive e modificá-los. Eu tenho proposto o conceito de encruzitrava, justamente porque acho que a gente, na encruzilhada, tem principalmente quatro caminhos. A encruzitrava é um quinto caminho, uma generética [ética de gênero], onde a gente tem que decidir algo em função daquilo que a gente vive. Uma transmutação. Os quatro elementos – terra, água, fogo e ar – são quatro pontos da encruzilhada, e a encruzitrava é um quinto caminho. É uma decisão de gênero. Onde a gente precisa olhar e transmutar aquilo que a gente vive. Para não esmorecer, a gente precisa de muita transmutação.

S: Dodi, muito obrigada. Gostaria de acrescentar algo?
DL: Só enfatizar mesmo a última ideia da encruzitrava, porque me parece que a gente precisa agir. Não podemos simplesmente acreditar que as coisas mudam por si só, precisamos ter posturas, propostas, propósitos. Eu acredito muito nisso e daria como recado para as pessoas não desistirem de lutar, ser firmes, ter coragem e vigor, e seguir adiante.

Com essa ideia também, no dia 24 de julho, vou inaugurar uma galeria de performance aqui no Sul da Bahia, que se chama justamente Encruzitrava. Vai ter uma programação com medidas de proteção, uma coisa pequena, mas com alguns números musicais que vamos transmitir pelo instagram [@encruzitrava].

S: Poderia explicar um pouco mais sobre a proposta da galeria?
DL: Ela nasce de um desejo justamente daquilo que estávamos falando de modificar o elitismo da arte, além de ser um espaço autônomo, não tem vínculo com a Universidade. É um espaço que tem o foco na linguagem da performance. O conceito da galeria vai por esse caminho da Encruzitrava com os cinco elementos: água, terra, fogo, ar, e o quinto que chamam de éter, mas aqui a gente transmuta o hétero, e o quinto elemento é a transmutação. E traz a ideia da generética, que é a ética de gênero. A galeria está começando aos poucos, sem conseguir fazer muitos planos ainda por causa da pandemia, mas a ideia é que tenhamos residências artísticas, oficinas e também exposições. Convidei quatro pessoas para serem guias dos elementos: a Ágatha Íris [@agatapauer] para ser a guia da terra, Jaqueline Gomes de Jesus [@instadajaque] para ser a guia da água, Raphaellie Läz [@lazraphaellie] para ser a guia do fogo, e o Ian Habib [@ianhabibaziz] para ser o guia do ar. E eu sou a transmutação.