Revista Sobrado
Em formato de interatividade, o espetáculo-game delega ao público escolher os rumos da narrativa | Foto: Divulgação

COATO Coletivo: “Objetivos foram ressignificados para dar lugar a novas ideias”

Lançado em abril deste ano, INIMIGOS – Espetáculo-Game, realizado pelo COATO Coletivo em parceria com a CDP (Grupo de Desenvolvimento de Jogos da UFRJ), reverberou nas redes sociais por sua concepção inovadora: uma peça de teatro pensada de início ao fim para a internet. O projeto teve o apoio financeiro do Estado da Bahia pela Lei Aldir Blanc, contemplando acessibilidade através de legendas e audiodescrição.

A obra tem o texto baseado na peça Um Inimigo do Povo (1882) de Henrik Ibsen, e os temas centrais são questões de saúde pública e corrupção política – assuntos que infelizmente se tornaram atemporais. Em entrevista à Sobrado, os diretores Marcus Lobo e Mirian Fonseca falaram a respeito da receptividade do público, passado o período de lançamento do projeto.

O formato de interatividade que delega ao público escolher os rumos da narrativa não é exclusividade dos jogos eletrônicos. Plataformas de streaming como a Netflix por exemplo, também dispõem de conteúdos onde o público escolhe os rumos das histórias. Esse recurso começou a ser explorado em conteúdos infantis, mas a adesão para os outros gêneros foi consolidada após o lançamento de Bandersnatch, filme da franquia da série Black Mirror que teve boa receptividade perante o público e a crítica em 2018, seu ano de lançamento.

Na televisão, o formato é popular em programas como o Você Decide da TV Globo, veiculado de 1992 até os anos 2000, período em que a interação do público era feita por ligações telefônicas.

No teatro também é possível encontrar peças onde o público interage diretamente com os atores. Um exemplo marcante foi o espetáculo ES:CA:PE estreado no Teatro Eva Herz em Salvador em 2017. Lá, o público era comunicado sobre o papel que deveria desempenhar por meio de instruções entregues antes do início do espetáculo – havia uma divisão de equipes e estas eram diferenciadas por cores. Por fim, um sorteio era realizado para designar um representante de cada equipe para portar o controle de acordo com as fases da peça.

Em tempos de pandemia e isolamento social, no entanto, o controle ficou ao alcance dos smartphones no Espetáculo-game INIMIGOS. Durante a conversa, a dupla de diretores também comentou o processo de criação, a disseminação do produto final por outras regiões do Brasil e o intuito de dar uma continuação ao game.

Sobrado: Os objetivos traçados ainda na fase de concepção do projeto foram atingidos? Como foi acompanhar o antes e depois do processo como um todo?
Marcus Lobo: O projeto INIMIGOS faz parte de uma pesquisa que vem sendo desenvolvida pelo COATO desde 2019. Durante esse período e com todas as mudanças significativas as quais fomos atravessados, muitos objetivos foram ressignificados para dar lugar a novas ideias. O nosso principal objetivo, e este sim foi 100% atingido, foi a possibilidade de termos todes integrantes do Coletivo experimentando suas habilidades criativas nas diversas áreas da produção teatral: direção, atuação, acessibilidade, sonoridade, figurino, visualidade, mediação, redes sociais, escrita dramatúrgica. O COATO se configura como um espaço de pesquisa e prática, portanto todes assumimos outras funções que não apenas a de estar na cena ou na direção. Além disso, o projeto foi idealizado para promover interação com o público, dar-lhes a possibilidade de escolha e de se envolver diretamente com a narrativa, além de ser uma obra acessível, política.

Os personagens de INIMIGOS – Espetáculo-Game | Foto: Divulgação

S: INIMIGOS contou com uma divulgação expressiva na imprensa baiana em seu período de lançamento, desde programas de TV, rádio e também nos grandes portais locais. O público acostumado a consumir notícias nestes meios mais tradicionais aderiu ao projeto de maneira significativa? Houve o mesmo com a divulgação nas redes sociais?
Marcus Lobo e Mirian Fonseca: O trabalho de mediação cultural atrelado ao planejamento de assessoria de imprensa focaram numa ampla divulgação nos meios de comunicação na Bahia, mas também em outros estados, com a possibilidade da virtualidade, a obra pode ser vista sem fronteiras. Tivemos um número expressivo de downloads e acesso ao site onde o game foi hospedado. Em nossos registros identificamos que, em sua maioria, as pessoas chegavam pelas plataformas através de links vinculados às matérias publicadas, além dos links no Instagram. No caso das redes sociais, a interação consegue ser mais efetiva, pois estávamos conectadas a todo tempo para tirar dúvidas e compartilhar as postagens, em contraponto as redes ainda são espaços de divulgação instantânea, ou seja, não garantem que o público chegue até a obra, mas amplia o alcance. Inclusive, pensando nessa ampliação de alcance, todo plano de comunicação e gestão das redes sociais buscou fazer um jogo para que já fosse ambientando as pessoas com o futuro ambiente do espetáculo-game. O público que escolhia quais tipos de postagens foram para as redes.  

S: Ainda sobre o público, quais as especificações gerais deste? Foi possível traçar um perfil de usuário do Espetáculo-Game?
MF: O espetáculo-game foi pensado para atingir um público bem amplo, pois se trata de uma obra que dialoga com outras áreas, não apenas o teatro. No geral, os usuários são pessoas do teatro, do cinema, amantes de jogos e pessoas que se interessem pelos temas políticos e sociais abordados na obra.

O espetáculo-game foi pensado para atingir um público bem amplo, pois se trata de uma obra que dialoga com outras áreas, não apenas o teatro.

Mirian Fonseca

S: Quais os relatos mais comuns quanto à experiência dos usuários em termos de acessibilidade, desempenho técnico e intuitividade, por exemplo?
ML: Após o lançamento do jogo, precisamos fazer algumas atualizações para dar conta de ajustes necessários da parte técnica e dramatúrgica do game. Em geral, nos feedbacks que recebemos o público se mostrou atraído pelo formato do jogo, o layout, e o estranhamento provocado pela interface do game em formato de celular. O game tem uma dramaturgia fragmentada em 4 partes, em cada personagem jogável o público encontra um pedaço da história, esses cruzamentos despertam a curiosidade para que o jogador jogue com mais de um personagem, além disso o trabalho te convida a ser voyeur em certos momentos. É nesse momento que o público conhece os interesses reais do personagem com o qual está jogando, e a partir dessas informações vai fazendo suas escolhas.

O trabalho tem a opção de legendagem, o que possibilita a interação com pessoas surdas, tivemos poucos retornos do seu uso, mas realizamos algumas lives com a presença de pessoas surdas que demonstraram muita satisfação com a iniciativa do projeto. Infelizmente a acessibilidade ainda não é uma realidade tão comum no meio artístico, mas certamente estamos caminhando para uma mudança significativa com o advento da virtualidade, com a legendagem e a audiodescrição em especial.

S: Quais foram os maiores desafios e soluções com os quais se depararam ao longo do processo?
ML: Tivemos uma equipe muito grande e diversa, foram cerca de 25 profissionais envolvidos nas áreas de teatro, cinema e programação de game. Um dos desafios desse projeto foi agenciar a comunicação e as partilhas criativas da equipe, o que foi fundamental para conseguirmos desenvolver o projeto com êxito. Além disso, destacaria o período de gravações, pois estávamos restritos devido às estratégias de controle da covid-19, e a  construção da dramaturgia, tenho chamado de “dramaturgia labiríntica” pois ela se ramifica, se bifurca em diversos momentos a depender das escolhas do público. Isso gera uma demanda de reajustes constantes para que a condução do mesmo seja feita de maneira fluida e priorizando todas as etapas da trama.

S: Existe alguma pretensão de ampliar o Espetáculo-Game em uma nova versão? Há possibilidade de vermos novos personagens, cenários e enredos?
ML: Existem muitos desejos, infelizmente o projeto é muito custoso, então qualquer novo passo precisa ser muito bem planejado. Mas desejamos dar continuidade à pesquisa e desenvolver novos personagens da trama, em uma versão 2.0. Deixamos alguns fios soltos na versão 1.0, como por exemplo o suspense sobre a morte do personagem Ruralista, e essa informação pode provocar uma reviravolta na trama, a candidatura da Professora.

MF: Desejamos também desenvolver a parte técnica do game, trazendo algumas melhorias na qualidade de imagens, versão online para os usuários que não queiram baixar em seu aparelho. Além do desenvolvimento da versão audiodescritiva.