Revista Sobrado
Foto: Divilgação

Mirian Fonseca: “Apesar da ênfase muito maior com a morte, também havia outra perspectiva sobre o perder”

2020 e 2021 foram anos onde temas relacionados a perdas adquiriram relevância significativa pelo contexto histórico, político e social e deixaram como legado memórias amargas de um tempo onde o luto se tornou uma vivência coletiva em âmbitos comunitários e globais.

Nesse contexto, desafios foram impostos em praticamente todas as instâncias de produção laboral humana e remontando ao recorte específico de produções artísticas, a contínua persistência do próprio fazer se deparou com a necessidade crucial de adaptação para formatos on-line acarretando em uma nova adversidade a ser superada. O teatro, por exemplo, depende do público porque as ações geradas são o contraponto das ações performadas no palco, diferentemente do que acontece com produções audiovisuais, onde o espectador é um agente passivo e não interfere diretamente na condução da obra em si.

A atriz, diretora e integrante do Coato Coletivo, Mírian Fonseca, encontrou uma forma de expressar sua vivência e de outros quatro artistas com o luto durante este período pandêmico através da videoperformance documental APÓS – Memórias Perdas e Lutos, exibida e disponibilizada no canal da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia no YouTube. Em entrevista à Sobrado, ela conta um pouco sobre o processo de produção e também revela certos aspectos que encontraram ressonância com o público mesmo com a delimitação de espaço restrito às telas.

Sobrado: Qual foi o maior desafio de adaptar uma performance teatral para vídeo?
Mirian Fonseca: O maior desafio, para nós que somos do teatro, é o saber. por ser uma outra linguagem, nós não sabemos essas coisas do cinema e do audiovisual. Precisamos estudar e encontrar fontes que nos auxiliem nesse processo. Estamos acostumados a lidar com o palco, com o público, lidamos de uma e outra forma. Nesse projeto, a premissa era que deveria ser uma performance em vídeo ao vivo ou  gravado. Eu escolhi o gravado pelas facilidades, mas mesmo assim foi desafiador, por trabalhar com performers diferentes, em lugares diferentes. Depois roteirizar isso em um vídeo, lidar com materiais em diferentes resoluções, lidar com planos diferentes. O desafio foi a linguagem audiovisual, tornar aquilo que é teatro em audiovisual.

S: Como foi o processo de elaboração do projeto?
MF: Esse foi um processo que estava ligado a uma disciplina que cursei na Escola de Teatro da Ufba (Universidade Federal da Bahia), chamada Laboratório de Direção Teatral –  Teatro, Rito e Performance. O desafio era montarmos uma performance de formato virtual, tendo as convenções do teatro, do ritual e da performance na construção. Estava querendo investigar o luto e comecei um processo de entendimento do assunto. Levei a proposta para o Coato e todos acolheram a ideia, por cada um ter passado pelo tema da morte, vivenciado alguma perda nesse período de pandemia, o que fez com que os processos de luto se tornassem muito mais comuns.

Foi um trabalho em equipe, onde pensamos em nos juntar, fazer em fases, entender os processos. Seguimos uma abordagem da psicanálise, mas depois eu acabei mudando por entender que o processo de luto é individual, mesmo sendo coletivo ele é muito mais individual.

Com isso, comecei a trabalhar de forma muito mais individual com os performers. Cada um começou a construir a sua narrativa a partir de imagens, quais eram as que melhor representavam os sentimentos deles. Trazíamos sempre uma ação para a imagem ou uma imagem para a ação e fomos construindo isso.

S: Foi uma construção coletiva, mas com autonomia?
MF: A produção foi auto gerida pelos performers e fizemos um trabalho de preparação, mas cada um pensou e executou as suas ações. Dei o suporte necessário, em termos de mobilizações, caso houvesse necessidade. Todos criaram à partir de recursos mínimos, como não havia dinheiro, mas buscamos fazer tudo com os recursos disponíveis. No Coato, nós trabalhamos muito com esse viés da colaboração. Então, cada pessoa foi se aproximando e contribuindo com as habilidades que dominavam. A construção foi colaborativa, mas cada um foi se encontrando e realizando suas respectivas atribuições de maneira mais autônoma.

No Coato, nós trabalhamos muito com esse viés da colaboração. Então, cada pessoa foi se aproximando e contribuindo com as habilidades que dominavam.

MIRIAN FONSECA, atriz e diretora

S: Você trabalham com mais de um idioma no videoperformance. Por quê?
MF: Tudo começou muito por conta de um lugar. Mirela está na Espanha e ela é uma das performers que estava vivendo essa relação do luto. Ela é brasileira, neta de uma espanhola que morreu aqui no Brasil, em Salvador, no ano passado por causa da covid-19. Mirela estava na cidade onde a avó nasceu e a avó faleceu na cidade onde ela nasceu, a relação das duas era bastante próxima e o principal meio era via áudio. Quando a abordei para saber como seria a natureza da performance, fui informada que ela queria falar, gravar áudios como se estivesse gravando para a avó. Por estar fora, nem sempre falava português e um dia ela me falou sobre uma conversa que teve com uma tia e essa tia começou a falar sobre o que pensava do luto, soando de tal forma que Mirela acabou gravando e esse é o áudio que inicia. Ela gravou, pediu permissão à tia e me enviou. Achei que a síntese sobre o luto ficou incrível e decidi utilizá-la no idioma original.

Decidi continuar por esse caminho explorando essa questão e a música em francês entrou por conta do roteiro. Estávamos construindo os signos e começamos a testar músicas, buscando entender melhor o que queríamos. ‘Ne me quitte pas’ é uma música muito forte, que representava o que Flora trazia por decidir abordar o falecimento da mãe, também no ano passado e também por covid-19, para a construção da cena. Ela dizia que a mãe era a imensidão, era o mar e não conseguia acreditar que a tinha perdido. Além disso, a mãe dela era bolsonarista e havia toda uma relação de conflito e de divergência política. Ao assistir a performance, eu não sabia como encaixar a cena em um primeiro momento, depois de assistir mais vezes e em companhia de Padmateo, que estava construindo o roteiro comigo, ela colocou essa música e eu achei que casou muito. Considerei que foi o que melhor representou, exatamente pelo momento em que ela levantou a mão e depois se abraça dizendo que não me deixe, dizendo para a mãe não deixá-la. Isso tudo numa situação também de resistência e em meio a um processo de divergência, sendo médica, morreu por covid, sozinha, por ter ido se internar sozinha, e não ter voltado mais. O ficar em um processo de solitária para mim foi algo muito forte. Acho que o idioma tem essa relação de como a pessoa lida com aquilo, com os processos e como a língua foi atravessando o processo dentro disso. Não acho que seja algo de natureza universal, o espanhol veio por conta da situação de Mirela, e o Francês foi por que era o que melhor casava no estado do não me deixe.

S: Como foi o processo da sua performance? O que você buscou?
MF: Esse processo de performance foi um dos que mais mexeu comigo. Foi a primeira vez que decidi falar de luto, mas não queria falar do meu, queria falar do luto de outras pessoas. Não queria falar sobre as minhas perdas, que foram muitas na pandemia. Não só pelas perdas do meu avô, da minha tia, de uma sobrinha, de amigos, foram perdas de amores, de tempo, etc. Por isso que coloco lá como ‘Após – Memórias, Perdas e Lutos’, porque a perda está também atravessada dentro desse processo. Apesar da ênfase muito maior com a morte, pelo fato dos performers estarem ali lidando com essa relação de maneira direta, também havia outra perspectiva sobre o perder.

Para entender mais ainda essa relação da perda, joguei nas minhas redes sociais um convite, que chamei de ‘chá de perdas e lutos’

MIRIAN FONSECA, atriz e diretora

Quando comecei o processo, desisti. Depois voltei e ouvi as histórias dos performers, tanto que intitulei o meu relatório como ‘Eu no meio disso tudo’, porque estava ouvindo tudo. Para entender mais ainda essa relação da perda, joguei nas minhas redes sociais um convite, que chamei de ‘chá de perdas e lutos’, onde conversava com pessoas sobre as perdas delas, literalmente tomando um chá. Nessas conversas, fui pedindo para as pessoas me enviarem imagens, no final das conversas perguntava que imagens eram essas que representavam o que estavam sentindo. Na maioria das vezes, as imagens que as pessoas me traziam eram imagens de suspensão. Falavam assim: ‘parece que eu estou dentro de um buraco, parado, como se o mundo estivesse andando e eu estou lá dentro parado’ ou ‘queria cavar um buraco e continuar lá dentro’. Pensei muito nisso e nessa relação de como levar para o corpo todas as conversas, a relação dos atores, as perdas de cada um e as minhas perdas, chegando a conclusão de que queria desenterrar.

Acho que o ato de cavar pode representar muita coisa. Pode representar as fases do luto, segundo a psicanálise. A aceitação, porque também não é só o cavar, a minha performance também é o ir, é o aceitar, é o negar. Esse negar é a sensação de estar ali cavando como se quisesse aquela pessoa de volta, é o deixar ir. Houve uma cena que não entrou no vídeo por conta do tempo limite, onde eu estou deitada dentro do buraco que cavei.

Quando cheguei no lugar, a ideia era cavar um buraco mesmo, de forma convencional, entrar, estar lá dentro, mas ao chegar eu achei que parecia uma perna de uma mulher aberta, então pensei: ‘Nossa, para mim a ideia do cavar é muito simbólica em um lugar onde parece uma mulher de pernas abertas que é de onde a gente vem’. A relação do vermelho também veio muito da Pad, que estava me acompanhando no processo. Quando fomos fazer uma visita técnica no lugar, ela falou que o vermelho representa o amor nas nossas convenções e essa ideia de não trazer o luto de preto, nem como branco, trazer o luto representado de uma outra maneira.

Achei legal e já que queria iniciar a performance cavando, mostrando a vida. Depois, desenhando a performance, percebi que o ideal era ir para o final que complementaria com a performance onde participei, mas não era uma ação minha, sim de Pad no túnel. Foi a ideia de que estamos todos indo para um lugar que não conhecemos. Isso foi algo muito presente nas conversas, tanto das pessoas que falaram comigo quanto com os performers. Menciono isso com o texto do estrangeiro, que gostaria de ter usado na íntegra, no entanto é um texto grande de um espetáculo do Coato – Eu é outro – Ensaio sobre Fronteiras, onde é dito que o estrangeiro vai se perdendo e de repente se torna recordação e fotografia.

S: E sobre as percepções do público?
M.F: Ouvi coisas muito bonitas. Acho que consegui atingir um dos objetivos, que era não falar do luto de uma forma comum, apenas com o lamento. Ouvi de uma antropóloga: ‘Quem não perdeu alguém ou não chegou perto desse sentimento nesses tempos?’. Achei tocante, porque chegou muito perto e sentimos isso em várias esferas. Sentimos esse luto pelas perdas e pela evocação de tantas memórias.

Também houve quem estranhou o fato de colocarmos uma audiodescrição, sendo que havia uma imagem. Teve quem achou esse elemento muito bom, porque os trouxe direto para a imagem, limitando-os a aquele lugar. Fiz a escolha e a descrição das imagens e quando Natiele me mandou o roteiro, olhei para a imagem, olhei para o roteiro e depois me dei conta de que nem eu mesma havia percebido muitos dos elementos contidos nas imagens. Ouvi de uma pessoa: ‘quando vi a imagem e comecei a ouvir, comecei a buscar de quem será. Quem será que morreu e quem está vivo nessa foto?’. Então, teve quem ficasse muito mais curioso por esse elemento. Teve quem achasse que eu estava performando a morte, essa ideia da morte de ir, de trazer, de pegar as pessoas, etc.

Por fim, também teve quem pensou na concepção dessa ideia da vida, pelo fato de eu estar com uma pá na mão e isso representar a vida, o pegar, o cavar; Teve a relação do luto mais celebrativo, das pessoas falando que se sentiram tocadas em estar ali e ver a relação do luto. Foram as devolutivas que eu mais tive desse processo todo.

Ficha técnica
‘APÓS – Memórias, Perdas e Lutos’
– Performers Criadoras: Flora Mesquita, Jonata Vieira, Padmateo, Marcus Lobo, Mirela Gonzalez e Mirian Fonseca
– Direção: Mirian Fonseca
– Orientação: João Sanches
– Co-orientação: Maurício Pedrosa e Diocélio Barbosa
– Roteiro final: Mirian Fonseca e Padmateo
– Edição de vídeo final: Padmateo
– Identidade visual: Mário Oliveira
– Direção musical: Mirela Gonzalez
– Captação de imagens: Flora Mesquita, Jonata Vieira, Padmateo, Mirela Gonzalez, Hilma Passos, Mirian Fonseca e Daniel Becket
– Voz off: Victor Sampaio, Yris Chávez e Padmateo
– Audiodescrição: Natiely Santos
“A morte precisa vir”, do livro ‘Substantivo Luto’: Mônica Santana
“Carta à realidade”: Mirian Fonseca
– Realização: Escola de Teatro da UFBA e Coato Coletivo