Revista Sobrado
Foto: Aruac Filmes / Divulgação

Eryk Rocha: “Estamos vivendo uma interrupção do cinema brasileiro”

Estreou no último domingo (30), na Globoplay, o longa-metragem Breve Miragem do Sol, de Eryk Rocha. Estrelado por Fabrício Boliveira (Faroeste Caboclo) e Barbara Colen (Bacurau), este é o primeiro filme de ficção exclusivo da plataforma de streaming. A produção chega para todo o público brasileiro após uma longa carreira em festivais nacionais e internacionais, vencendo prêmios a exemplo do Festival do Rio, no ano passado.

O novo trabalho de Eryk, filho dos cineastas Glauber Rocha e Paula Gaitán, é o primeiro longa do carioca após a vitória do prêmio Olho de Ouro, no Festival de Cannes de 2016, pelo documentário Cinema Novo. Em Breve Miragem do Sol, Eryk conta a história de Paulo (Fabrício Boliveira), um homem desempregado e recém divorciado, que começa a dirigir táxi no Rio de Janeiro para se sustentar, e Karina (Barbara Colen), uma enfermeira em um hospital público, por quem Paulo se apaixona.

A Sobrado conversou com o diretor Eryk Rocha para falar sobre o processo de produção do longa, a estreia no streaming, novos projetos e o futuro do cinema no Brasil.

Sobrado: Uma das principais mensagens de Breve Miragem do Sol talvez tenha sido falar sobre a precarização do trabalho. De onde surgiu a vontade de contar a história de Paulo?
Eryk Rocha: A vontade de contar a história de Paulo surgiu da vontade de falar do Brasil e do mundo que a gente vive. A história de Paulo é a história da subjetividade dele, do drama pessoal e familiar dele, e ao mesmo tempo é a história de milhões de trabalhadores brasileiros. Achei que através da história de Paulo, a gente pudesse contar também uma história de um país que tem a ver com isso que você falou na pergunta, a questão da Uberização, da precarização do trabalho. Isso é uma realidade hoje, e infelizmente é uma realidade contundente no Brasil e do mundo. Milhões de pessoas estão absorvidas, tem que viver, digamos assim, precisam se sujeitar a precarização do trabalho para continuar sobrevivendo, resistindo, né? Isso é uma grande contradição, porque essa precarização do trabalho é o que soluciona o problema da pessoa, dá o dinheiro, dá o ganha pão, mas que ao mesmo tempo é o que sufoca, é o que oprime a pessoa. Essa é uma camada do filme, uma das múltiplas camadas do filme. Essa que você apontou me interessava muito. Esse filme nasce muito da minha observação da cidade, dessa cidade que eu cresci, que foi o Rio de Janeiro. Principalmente dessa cidade noturna. Sempre me instigou muito entender e saber um pouco mais da vida desses trabalhadores, desses habitantes da noite da cidade, e surgiu o taxista como essa figura que é o narrador do nosso tempo. Ele é um escutador, um narrador, ele está vivendo, ele é testemunha do nosso tempo. É uma testemunha viva e sensível do nosso tempo, portanto ele tem esse poder de traduzir também um país, porque o corpo dele está lançado nesta grande cidade, que é o Rio, Salvador, São Paulo, Bogotá, Buenos Aires. Ele está sendo atravessado por todas essas forças, essas tensões da cidade, das ruas. Eu acho que o Paulo vive muito esse embate com as ruas.

S: A ambientação do filme se dá muito pelo o que Paulo ouve no rádio. Existe até menções a fake news e outros temas recentes. E por isso Breve Miragem do Sol pode ser visto como um filme universal, acontecendo em qualquer parte do mundo. Mas essas notícias do rádio foram uma escolha para tentar trazer uma localização e que pudéssemos entender o Brasil de Paulo?
ER: Eu acho que essas notícias de rádio são as notícias que estão acontecendo no momento que a gente estava filmando, né? Elas existem porque a gente filmou aquelas imagens daquele momento, naqueles lugares, nessa cidade, nesse país. Essas notícias estavam se tratando de um filme urbano, de rua, e de um taxista que está sendo atravessado por esse turbilhão de sons e de imagens. E daí surgem as rádios, porque as rádios estão operando neste mundo, sejam as rádios das notícias, seja o WhatsApp dos próprios taxistas, das trocas de mensagens. É um filme muito universal porque existem muitos Paulos em muitas cidades do mundo, desse trabalhador que tá vivendo essa situação da precarização do trabalho, que está vivendo esse estado de sobrevivência, de luta diária pra sobreviver, pra existir, mas ao mesmo tempo ele é específico. Quem é Paulo? É um jovem, brasileiro, cerca de 40 anos, que estudou, teve universidade e que ficou desempregado. Isso está intimamente ligado com o processo político que vem vivendo o Brasil. A gente teve uma interrupção, o Brasil sofreu um golpe em 2016, e esse golpe influenciou diretamente os caminhos e as escolhas narrativas, estéticas e políticas do filme. A gente vem vivendo uma sucessão de lutos e perdas nesse país, de perdas de esperança. E o Paulo vive nesse contexto desse país, desse Brasil colapsado, desse Brasil agora, esse Brasil que tem esse processo de perdas, de lutos que falei. Paulo vive dentro desse contexto. Ao mesmo tempo, esse homem, esse corpo cansado que está vivendo esse trabalho precarizado, esse corpo sobrevive, respira, deseja, resiste, dança, ama, sente saudade do filho. Esse filme são essas breves miragens de sol da vida de um trabalhador brasileiro, de muitos de nós. Hoje em dia, na pandemia, isso ressignificou, né? Essas breves miragens de sol da vida de uma pessoa, de um homem trabalhador brasileiro, da periferia, de um taxista, mesmo num meio desse estado de brutalidade, de sufocamento e de luta, existem também as breves miragens de sol que é o corpo dançante, que é o corpo que ama, que namora, que ri. É esse corpo desse homem, é um filme que fala de paternidade, é um filme que fala de pai e de país. Então, dentro dessa perspectiva, dessa subjetividade do Paulo, do que o torna específico, ele pode ser muitos, mas ele é o Paulo, ele é único porque ele é brasileiro, ele tá no Rio de Janeiro, mas ele tem esse desejo.

S: Eu queria saber um pouquinho também sobre a pesquisa pra esse filme. Você utiliza muito desse espaço do Rio de Janeiro, que você menciona, da noite. Houve também uma ajuda dos taxistas locais para essa pesquisa?
ER: Completamente! O Fabrício Oliveira foi um grande encontro. O Breve Miragem do Sol, de fato, começou se realizar com o encontro com o Fabrício, que deu o rumo para o projeto, para o filme. A gente encontrou junto o caminho para o filme, deu corpo e vida pra esse homem, pra esse personagem, e para o filme. A chegada do Fabrício foi transformadora e decisiva para entender as camadas desse filme e desse personagem. E aí o nosso trabalho, o trabalho do próprio Fabrício, incluiu a capoeira, com o mestre Itapuã, que é um grande amigo, capoeirista do Rio de Janeiro. Ele fez aulas e uma preparação através da capoeira, eu achei que a capoeira tem essa vocação de luta e uma dança, né? E eu acho que isso estava muito na natureza do personagem. O Paulo vive esses estados da capoeira, ele tem que dançar e lutar, batendo ao mesmo tempo. Ele tem que estar guerreando dia a dia. E isso o Fabrício incorpora brilhantemente. Ele é um ator que fala com os olhos. Os olhos do Paulo são o coração desse filme. E além da capoeira, a preparação foi essa que você falou com os taxistas. O Fabrício viveu intensamente, durante seis meses, um processo com taxistas, onde o Fabrício teve uma interação com um grupo de taxistas amplo, seja através de encontros pela cidade, onde ele mesmo, o Fabrico, pegava o táxi e dirigia pela cidade e encontrava os taxistas. Os ensaios eram assim, eu ia filmando com ele dirigindo o táxi pela cidade. A gente filmando, descobrindo o filme juntos, nesse processo de ensaios filmados. Em outros momentos, o Fabrício dirigindo o táxi sozinho e se encontrava com os taxistas na madrugada da cidade. A Barbara Colen, que faz a Karina, que é uma atriz magnífica, ela também fez um trabalho de campo, de imersão nos hospitais públicos. Foi nas UTIs e num hospital público na zona norte do Rio de Janeiro. Ela fez um diário, ela ia vivenciando algumas semanas e anotando essa experiência real, documental e muito visceral do funcionamento desse hospital público. Foi um trabalho de muita imersão desse real. Isso é incrível, esse processo do filme se misturou com o próprio filme, com as próprias filmagens.

S: E o filme fez uma uma bela carreira no festivais do Brasil e do mundo e nessa semana ele estreou oficialmente para todo o Brasil, pela Globoplay. Essa é a primeira vez que um trabalho seu chega primeiro ao streaming antes de chegar aos cinemas? Como é essa experiência?
ER: Esse filme teve um outro percurso. É uma experiência nova para mim estar lançando o filme em streaming, mas é uma experiência nova que a gente está vivendo hoje no mundo, pela própria pandemia e as salas de cinemas fechadas e a falta de perspectiva e a incerteza sobre o futuro. Além da importância e a realidade cada vez mais forte que se tornou as próprias plataformas. Já era uma tendência ascendente e com a pandemia isso se potencializou. É uma experiência nova que eu tô encarando de peito aberto, eu tô feliz, porque acho que um filme precisa ser visto, descoberto, devorado e decantado pelo público e é uma possibilidade, quem sabe, do filme chegar num público mais amplo e nas próprias pessoas que ele representa, que são os trabalhadores, que são os taxistas, que são os Ubers, que são as enfermeiras. Quem sabe aí ele tem uma chance maior de chegar nos seus próprios personagens. Quem sabe? Eu espero que sim, a minha expectativa é essa. Agora que é evidente que a gente conseguiu fazer circular em algumas festivais no exterior e no Brasil, inclusive ganhou alguns prêmios e conseguiu fazer um caminho. Mas isso foi interrompido pela pandemia, o que precipitou o lançamento dele na Globoplay, o que eu acho que é uma experiência que pode ser muito positiva e pode trazer surpresas. Acho que a gente tem que percorrer os caminhos que se abrem. E em paralelo ao lançamento no Brasil, ele continua circulando em festivais internacionais. 31 de agosto ele passou no Indie Lisboa, em Portugal. Em breve ele vai passar em festivais da Espanha, dos Estados Unidos, da Alemanha, no Oriente. Ele continua em paralelo a vida dele no circuito de festivais, alguns festivais presenciais, outros online, e aqui no Brasil ele acabou de estrear nesse novo circuito, na Globoplay, e é uma a nova experiência mesmo.

S: Recentemente você atuou como produtor no longa Luz nos Trópicos, de Paula Gaitán, sua mãe. Fala um pouquinho dessa experiência? Como foi a estreia do filme no Festival de Berlim, em fevereiro deste ano?
ER: Eu ajudei a produzir o Luz nos Trópicos e é uma grande alegria pra mim poder ter ajudado a produzir esse filme, da Paula Gaitán, que, além da minha mãe, é uma das minhas mestras, das minhas referências, dos meus faróis. Eu faço cinema por causa da minha mãe, essa pessoa que me criou e me deu a minha formação estética e é uma grande cineasta. E foi maravilhoso ver esse filme tão contundente, tão único, nascer nas telas de Berlim. Foi um nascimento muito bonito do filme, numa sala lotada, numa grande projeção de muita qualidade e um filme belíssimo. Vai passar em breve no Olhar de Cinema de Curitiba, que é um ótimo festival. Vai ser a estreia brasileira do filme. Foi muito bom ter ajudado a tornar viável esse filme, que é um filme raro e único, uma experiência cósmica e espiritual.

S: Atualmente você está trabalhando num documentário sobre a Elza Soares, certo? Alguma novidade sobre ele, como é que vai ser essa história, como que você vai contar a história?
ER: Ainda não posso falar sobre ele, mas estou lançando agora um filme na Bienal de Berlim, que vai acontecer semana que vem na Alemanha. Eu dirigi esse curta-metragem chamado Marcha Ré, que é sobre uma performance de um grupo de teatro de São Paulo, chamado Vertigem, que fez uma performance de um cortejo, de uma carreata de 150 carros que foram de marcha ré atravessando a Avenida Paulista. Eu filmei essa performance, que virou curta e que vai representar o Brasil na Bienal de Berlim.

S: E para pra além desses projetos, algum outro em mente?
ER: Estou preparando um filme que vou co-dirigir com a Gabriela Carneiro da Cunha, que é um filme chamado A Queda do Céu, baseado no livro do Davi Kopenawa Yanomami, que é um xamã Yanomami. Estamos preparando esse filme para filmar ano que vem, estamos em preparação e isso é o que eu posso te falar.

S: Eryk, para encerrar, eu queria saber sua opinião sobre os desdobramentos relacionados às políticas públicas para o audiovisual no Brasil, com a Ancine parada, o Fundo Setorial do Audiovisual paralisado, a Cinemateca Brasileira em desmonte. Na sua opinião, o que a gente pode esperar para o futuro?
ER: Nos tiraram o passado e o futuro e o que nos restou foi o presente. O que a gente vai fazer agora? O passado, lembrei porque você falou da Cinemateca, foi retirado porque nos tiraram as chaves de lá, fecharam a Cinemateca, nos tiraram o acesso a nossa própria memória. Nos tiraram o futuro porque nos tiraram a possibilidade de continuar produzindo filmes no Brasil, via políticas públicas, políticas de estado, via Ancine. Então, o que está havendo é um colapso generalizado e perverso no Brasil, em diferentes áreas, entre elas a cultura e arte. É uma forma de sufocamento, é uma estratégia de guerra. O que nos resta agora desse presente é lutar. Lutar pela retomada das políticas públicas do audiovisual, do estado, entendendo que essas políticas de estado são fundamentais para existência de um cinema brasileiro forte, múltiplo e verdadeiramente democrático. E concomitantemente à luta, mesmo eu sendo pessimista, muito pessimista que eu sou, eu acho que a gente só vai conseguir mudar isso quando a gente derrubar esse governo, a gente tem que lutar para a Ancine ser reativada, e não só reativada, mas todo o funcionamento dela reproduzindo o que ela era antes. Elas precisam ser retomadas e ao mesmo tempo repensadas. Os milhares e milhares de projetos paralisados precisam receber os financiamentos, o Estado precisa cumprir suas obrigações com os projetos contemplados. Isso é o número um. A gente tem que lutar por isso. Mas, não é só isso, essa retomada da Ancine também precisa que seja repensado o próprio modelo da Ancine. Essas políticas públicas precisam ser ampliadas ainda mais, para a periferia, com modelos mais democráticos, enxergar o Brasil profundo em termos de um campo de exibição digital democrático. Que os filmes realmente cheguem no público e ao mesmo tempo que outros cineastas, múltiplos, de todas as classes sociais, possam produzir. Isso é o que eu almejo, a retomada da Ancine, sim, urgentemente, mas que ao mesmo tempo seja repensado juntamente com a retomada esse modelo dela. Estamos vivendo uma interrupção do cinema brasileiro, num ciclo fértil do cinema brasileira, que gerou a possibilidade de existência de milhares de realizadores e realizadoras, de produtoras. Um ciclo fértil, importante e múltiplo, e esse movimento não pode ser interrompido, precisamos continuar aprofundando nessa direção.