Revista Sobrado
Foto: Fernanda Costa / Divulgação

Eva Sattiva: “Só de ser drag queen, já estamos nos manifestando, resistindo e lutando”

As cortinas que separam os palcos montados em bares e casas de show de Salvador sentem falta de gritos animados e do efeito colorido que drag queens faziam antes da pandemia do novo Coronavírus. Entre as artistas, Eva Sattiva estava lá quase sempre, performando, entretendo e trazendo debates sobre questões importantes para a comunidade LGBT.

Seja explorando novas abordagens de convencimento sobre prevenção às ISTs/AIDS, com o coletivo Drags da Prevenção; abrindo discussões sobre questões voltadas às mulheres lésbicas e bissexuais com o grupo Lésbica Futurista; ou dando destaque para a pauta antiproibicionista com o Bateu Uma Onda Forte, Eva Sattiva utiliza da arte para transformar os lugares onde transita. Quem dá vida à personagem é Ângella Carballal, de 32 anos, arquiteta e urbanista de formação, e que hoje trabalha com cenografia de arte para eventos. Eva conversou com a Sobrado sobre seu início na arte, produção na quarentena e a importância do performismo.

Sobrado: Sabemos que a arte drag tem uma participação muito forte de homens. Como despertou isso em você, uma mulher fazer uma drag queen?
Eva Sattiva: Eu sempre gostei de dança, teatro, performance. Comecei a dançar flamenco na infância e continuei por uns 20 anos. Conhecia sobre arte drag, mas não com esse nome, eu acho, ou talvez não tinha pensado muito sobre o assunto. Mas conheci o RuPaul’s Drag Race, um amigo gay me apresentou, e foi quando meus olhinhos brilharam. Admirava muito aquelas queens, e óbvio que sei que sempre tem muitas críticas a serem feitas a Drag Race, mas tenho de reconhecer que esse programa foi o que lançou a arte drag em escala mundial e mudou tudo. Foi também um período de melhor compreensão de quem eu sou, de me reconhecer parte dessa comunidade e entender essa arte tão rica – porque envolve estética, pintura, maquiagem, moda, produção, interpretação, musicalidade. Sou muito tímida, na verdade. Não sei dizer exatamente em que momento ou como eu decidi isso, mas sei que quis experimentar também. Pensei e por que não? Claro que não imaginava que essa experiência fosse resultar no que Eva é hoje na minha vida. Mas aconteceu. Entendi que gosto de trabalhar com arte, entendi que Eva tinha muita coisa pra (me ensinar) a falar, entendi que pessoas se interessavam por ouvir, se identificavam. E essa é a melhor parte, a de receber esse feedback, principalmente das mulheres. Sabemos que representatividade importa, muito mesmo. Por mais espantoso que possa ser uma mulher ser drag queen, te digo que é muito comum eu ouvir de mulheres lésbicas, bissexuais ou héteros, que desejavam muito fazer isso, se vestir e performar, ainda que por uma noite. Acho que muitas de nós têm esse desejo, o que eu fiz foi me permitir esse despertar. E, muito felizmente, quem me mostrou o caminho foi outra mulher drag queen, Karmaleoa.

S: Suas pautas vão além da estética. Você aborda assuntos como saúde da comunidade LGBT, visibilidade lésbica e descriminalização do uso da maconha. Como foi a decisão de juntar todos esses debates importantes com a performance?
ES: Acredito mesmo que todas as nossas escolhas são políticas. Quando falamos ou calamos, ousamos ou recuamos, estamos nos posicionando politicamente. E na arte drag não é diferente, na verdade só de ser drag queen – que sabemos que por mais pop que esteja no momento, ainda é uma arte marginalizada, que acontece na madrugada e muito precária -, já estamos nos manifestando, resistindo e lutando. Sendo assim, o encontro/reunião de um grupo LGBTQIA+ num bar para assistir isso é um ato político e revolucionário. O fervo é político. Quando nos reunimos, conversamos e trocamos nossas vivências, formamos uma rede de cuidado, de afeto, de resistência mesmo. Então, por mais que a linguagem da arte drag queen seja lúdica, cômica, performática, estamos falando sobre nossas vivências, nossos corpos, nossas lutas e nos fortalecendo. E pra mim não é diferente, levo pras minhas performances as minhas vivências, dentro do meu lugar de fala, claro. Atualmente faço parte do coletivo Drags da Prevenção, com Malayka, Petra Perón e Abigail, que explora novas abordagens de convencimento sobre prevenção às ISTs/AIDS. Participo do grupo Lésbica Futurista, junto com Nágila Goldstar e Towanda Verde Frita, trazendo o debate da sexualidade e empoderamento da mulher lésbica e bissexual. E participo do Bateu Uma Onda Forte, com Mary Jane Beck e Towanda Verde Frita, que é uma pauta antiproibicionista. Todos esses temas são cotidianos na minha vida e em muitas outras.

S: Estando montada de drag queen, no ambiente onde performa, acontece de você sofrer ataques preconceituosos mesmo de membros da comunidade LGBT?
ES: Acho que o mais problemático é o machismo mesmo, que não é uma questão necessariamente da comunidade LGBTQIA+, é uma parada estrutural mesmo. E tendo tantos homens nos lugares que eu frequento, não seria diferente. Aí vai desde os homens quererem debater se mulher “pode ou não pode” ser drag queen; o mansplaining; o fato de que os palcos para arte drag na cidade – que ainda são poucos e precários – serem ocupados principalmente por pautas de homens gays drag queens; até a quantidade de festas e eventos voltados para o público de mulheres da comunidade LGBTQIA+, que são raras.

“Tenho de lembrar que as primeiras mulheres a estarem na cena drag são as mulheres trans e travestis, ou seja, na verdade não é grande novidade mulheres sendo drag queen. Sempre estivemos lá”

S: Na arte drag, existem duas vertentes: king e queen. Na sua vivência, qual você nota que é a melhor aceita pelo público?
ES: Existem homens que fazem drag king, assim como existe mulher que faz drag queen. É realmente mais comum associarem a arte drag com a pessoa performar o gênero oposto. Mas a grande questão da arte drag é a performatividade, a construção de uma personagem queen, king, agênero e até monstra. Existe uma infinidade de possibilidades. Gênero é uma construção social. Daí, sobre o que é mais aceito, quando a gente considera que, geralmente – embora não seja regra -, as mulheres fazem king, se entende que há menos espaço pra essas artistas na cena, por questões do machismo estrutural mesmo, da invisibilidade da comunidade lésbica. Por existirem pouquíssimos eventos e espaços voltados a esse público aqui na cidade. Outra coisa que se percebe também é o padrão de beleza, que existe de forma cruel no mundo todo e não seria diferente no meio drag. Tem muita gente criando regra pra o que é ser drag, se tem de usar salto, cinta, meias, peruca, ou que for. Mas, honestamente, a graça de ser drag é ser livre pra ser quem quiser, como quiser. E tenho de lembrar que as primeiras mulheres a estarem na cena drag são as mulheres trans e travestis, ou seja, na verdade não é grande novidade mulheres sendo drag queen. Sempre estivemos lá.

S: No período da pandemia do novo Coronavírus, qual mecanismo você tem usado para divulgar sua arte?
ES: A cena de Salvador – e eu me incluo nisso – acontece muito nos bares, na madrugada. Falta a gente se inserir no universo virtual, até para gerar registros, porque já aconteceu tanta coisa incrível e maravilhosa que acho que se perde e só temos agora relatos mesmo de quem viu. Esse foi meu desafio na quarentena, aprender a mexer em edição de vídeo e produzir conteúdo audiovisual. Drag queen é tudo, viu? A gente mesmo quem cria nosso visual, se maquia, monta o look, costura, modela a peruca, escolhe nossas performances, faz os roteiros, edita áudio, edita vídeo, faz cenário. Exatamente por isso que fiquei encantada com essa arte, somos muito independentes! E ainda fortalecemos uma rede de produção de arte, com muita gente envolvida. Minha estratégia estava sendo fazer lives, mas aí recebi o convite lindo de Desirée Beck de participar do concurso TNT, que é todo divulgado nas redes sociais.

“Drags nem têm registro de profissional da cultura, o que dificulta mais ainda a situação”

S: Você é uma drag queen com muitos trabalhos antes do decreto do isolamento social. Como isso influenciou na sua relação com o público e palco?
ES: Que falta que faz a interação com o público! Com os donos do Bar Âncora do Marujo, que sempre cuidam da gente demais, nos recebem com muito carinho. Estamos muito sentidos com isso. Muita saudade, já que estar naquele lugar é pra nos fortalecer, trocar com os nossos, como já disse. Saudade de ver aquele lugar lotado de sapatão. Isso causava lá! Porque geralmente tem muito mais homens, mas a pauta Lésbica Futurista proporcionou esse lugar confortável para as mulheres. Recebo muito carinho do público por mensagens, mantemos nossa rede conectada, pois muitos de nós estão passando por dificuldades sérias com a pandemia, pela falta de trabalho e consequentemente de dinheiro. Os agentes culturais já estão sofrendo com isso e a falta de apoio dos governos, mas as drags nem têm registro de profissional da cultura, o que dificulta mais ainda a situação. Inclusive, cabe aqui eu falar sobre Petra Perón, drag queen, miss Brasil gay e ativista, pré-candidata a vereadora pelo PT, participante da Bancada de todas lutas. O trabalho dela é importantíssimo quando falamos de representatividade porque queremos representante LGBTQIA+ tomando decisões pra nossa cidade, porque queremos alguém que sabe das nossas vivências, da nossa existência, pra começar. Então, esse debate sobre como tá sendo durante o isolamento social, é sobre como tá sendo para uma classe artística que malmente é reconhecida como tal.

S: Você está participando da TNT Drag, um concurso conhecido na cena local e que agora, por causa da pandemia, está acontecendo de forma remota. O que te motivou a participar?
ES: O que motivou foi isso de me inserir no mundo virtual, produzir conteúdo audiovisual. Mas eu participo de concurso mesmo sabendo que é pra aprender, exercitar ao máximo a nossa criatividade. Esse concurso tá sendo muito especial por serem drags do Brasil todo que participaram. Virtualmente não existe distância, né? Então estamos podendo nos conhecer, trocar, nos ajudar. Isso tá sendo muito bacana.

S: Como você tem se preparado para a etapa final do concurso?
ES: Nesse exato momento tô atrasada pra gravar, hahaha. Beijo!

S: Pra finalizar, como está o cenário drag queen em Salvador?
ES: Os bares voltaram a funcionar essa semana, né? Acho que ainda temos muitas adaptações para fazer, para existirmos no “novo normal”, então nem sei te responder direito essa pergunta. Mas, por enquanto, a cena drag tá acontecendo em lives no Instagram. As artistas, junto com os bares ou de casa mesmo, estão botando a cara na telinha do celular.