Revista Sobrado
Foto: Leo Aversa / Divulgação

Joyce Moreno: “A indústria fonográfica perdeu muito do poder que tinha”

No último dia 16, a cantora Joyce Moreno lançou o livro de crônicas e memórias chamado Aquelas Coisas Todas, publicado pela Numa Editora, no qual conta bastidores de sua trajetória na música, histórias divertidas e faz perfis de compositores com os quais conviveu. A obra é uma versão revisada e ampliada de Fotografei Você na Minha Rolleiflex, livro lançado originalmente em 1997.

Confira a entrevista exclusiva que Joyce Moreno concedeu à Sobrado.

Sobrado: Em 1997 você lançou Fotografei você na minha Rolleiflex. Agora você lançou uma versão remix, ampliada, com uma nova parte – Tudo é uma canção.Quais os motivos levou você a escrever a segunda parte?
Joyce Moreno: Quando recebi a proposta de relançar o livro, achei que deveria corrigir algumas coisas, reescrever outras… Nessa, acabei escrevendo novos textos, com outras questões que surgiram nos vinte anos que separam uma edição da outra.

S: Logo no inicio da primeira parte, você fala da sua estratégia de guerra, aparentemente maluca, mas que funcionou para conseguir um estágio de jornalista no Jornal do Brasil? Como foi sua passagem do jornalismo para música? Qual a sua relação hoje como jornalismo, como tem acompanhado a imprensa brasileira?
JM: Jornalismo pra mim ficou como um amor antigo, de quem nunca me separei totalmente. Escrever uma canção tem muito a ver com escrever uma reportagem: você conta uma história naquele espaço possível, da maneira mais sucinta possível.

S: Ainda jovem, você fala de um momento em que passa a ter “a certeza de que a beleza, como a imaginamos, absoluta, não existe; existe uma impressão de beleza”.Com o passar do tempo, como você se relaciona com esse conceito?
JM: Acho a velhice uma coisa libertadora nesse sentido. Você passa a não se preocupar mais com a opinião alheia, é muito mais tranquilo. Falo isso na minha música A Velha Maluca: “No dia em que ficou velha, a moça ficou contente. Pra ela, era indiferente: foi bom pra se libertar da escravidão da beleza

S: Tanto na primeira como na segunda parte do livro, você passa pelo período da ditadura militar, tanto o seu inicio – 1968 foi o ano que não terminou – como na luta pelas eleições diretas. Esse tema esteve presente nos últimos anos em nosso país, em uma polarização política, que levou ao poder um presidente que defende o regime militar. Como você tem acompanhado a conjuntura política brasileira e essas posições políticas que defendem o regime militar?
JM: Acho que as novas gerações foram muito pouco informadas sobre esse período. O Brasil não soube lidar de maneira apropriada com essas questões. E deu no que deu.

S: Em um dos tópicos do livro você fala da sua relação com a Bahia, que foi construída a partir do olhar e vivência do Tutty Moreno, uma Bahia que você classifica como “bem mais engraçada e verdadeira que a Bahia oficial”. Qual a sua relação atual com a Bahia?
JM: Sou casada com um baiano old school, então essa Bahia que aprendi com ele é a da Juventude que ele viveu. Tenho menos intimidade do que gostaria com a Bahia de hoje, mas sou fã desse lugar que pra mim sempre foi um fascínio absoluto, desde a infância, com as canções de Dorival Caymmi, que recém gravei no meu álbum Fiz Uma Viagem, até hoje. Adoro.

S: Na segunda parte do livro, você começa falando dos Festivais. Diz que detesta qualquer tipo de competição, e que nunca teve muita sorte em concursos. Depois você discorre sobre os festivais, os momentos que viveu e as amizades que construiu. Como você avalia a importância desses Festivais para a história da música brasileira?
JM: Acho que tiveram seu momento, foram bons para revelar talentos e uma geração gloriosa da MPB. O que não gosto é da coisa competitiva, acho que competição, em qualquer ramo de arte, nunca vai traduzir o valor da arte em si. Mas de fato naquele momento, nos anos 1960 a 1980, os festivais tiveram seu lugar e importância.

S: Você fala de um momento de discordância que você teve com uma gravadora, as retaliações que sofreu. Como você vê hoje as gravadoras e como você tem se relacionado com a nova forma de produção musical que tem a internet como principal plataforma?
JM: Posso dizer que hoje a indústria fonográfica perdeu muito do poder que tinha, de construir e destruir carreiras. Hoje os novos artistas já nascem independentes e trabalhando de forma coletiva. Quanto às plataformas da internet, lamento dizer que são extremamente nocivas, no sentido de que se criou uma cultura de que não é mais necessário pagar para ouvir música. Isso prejudica a todos os criadores de conteúdo: Autores, intérpretes, músicos, produtores. As plataformas ganham bilhões, e os que produzem o conteúdo, centavos.

S: Você afirma que adora cantar, que é uma espécie de “prazer sensorial, igual a nadar no mar, encarar um belo prato de comida, fazer amor com quem se ama e outras delícias”. Mas diz que fica injuriada quando lhe classificam como “a cantora”. Por que uma das principais cantoras do país não se sente uma cantora?
JM: Injuriada talvez seja um pouco de exagero. Mas é verdade, não me sinto parte desse universo das cantoras. Vejo meu trabalho como uma coisa que engloba várias ferramentas, como a voz, o instrumento, o arranjo, a composição. Eu me sentiria limitada se tivesse que concentrar no meu trabalho apenas no canto. Por outro lado, sempre fico feliz quando me vejo na posição de fornecedora de canções para quem canta. Adoro.

S: Você pontua que compor dá trabalho e que “viver de sua arte é que são elas”. Você acha que os compositores não são reconhecidos e valorizados pelo seu importantíssimo papel na formação cultural do Brasil?
JM: Claro que não somos, né? Ainda mais no momento que estamos vivendo, com todos os desgovernos que estão sobre nós.

S: Você afirma que os artistas são “aqueles que velam pela alegria do mundo” e que ser artista no Brasil é uma profissão de alto risco. Você acha que essa situação pode mudar? Você vê perspectiva de um futuro melhor?
JM: Tudo passa, tudo passará, como dizia a canção. Espero ainda ver essas mudanças no meu tempo de vida.

S: Quanto à questão de dinheiro, você diz que não ficou milionária e cita um trecho de um samba mangueirense para dizer que está “fazendo força pra viver honestamente”. Conclui dizendo: “não fiz carreira. Faço música”. Essa foi uma opção, uma escolha? Chegou a algum momento a se arrepender de tal decisão?
JM: Só me arrependo um pouquinho quando chegam os boletos (rsrs), mas de um modo geral essas decisões, que tomei desde muito cedo na vida, sempre foram definitivas pra mim. Minha prioridade é a música, sempre foi, desde o início.

S: Você reivindica os versos de Jobim de que “fundamental é mesmo o amor”, afirma que o amor romântico é um avanço que a civilização ocidental foi conquistando desde o final do século XIX e que o amor é grande alívio nesta vida. Por que tanta esperança no amor?
JM: Por que é o que temos. É o que pode mover a humanidade para dias melhores. E não falo só no amor romântico, não: qualquer maneira de amor vale a pena, como já sabemos. A MPB tem resposta pra tudo!

S: Você termina o livro falando do tempo. Cita Jane Fonda, que ao completar oitenta anos, andou escrevendo sobre a passagem do tempo e como administrá-la. O que mudou entre a Joyce que lançou Fotografei você na minha Rolleiflex lá em 1997 e a Joyce que lança hoje uma nova versão do livro, com uma segunda parte inédita? Quais suas perspectivas para o futuro?
JM: Tenho esperança de que meus netos verão algum dia aquele país que me prometeram. Enquanto isso, espero poder seguir com saúde, música e alegria, produzindo e inventando sempre.