Revista Sobrado
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Ninfa Cunha: “Essa é minha intenção com a dança: quero abrir uma ferida”

Trabalhando de casa desde o início da pandemia do novo coronavírus, Ninfa Cunha, 51, gestora do Espaço Xisto Bahia, dançarina-intérprete e militante do movimento de pessoas com deficiência, conversou com a Sobrado sobre acessibilidade, representatividade e contou um pouco sobre sua própria experiência de mais de 20 anos como artista e produtora cultural.

Sobre a produção de arte por pessoas com deficiências, ela afirma: “basta dar régua e compasso”. Ninfa é graduada em Relações Públicas pela UNIFACS, co-criadora do projeto Casulo de Artes Inclusivas (2009), fundadora do projeto Perspectivas em Movimento (2010), e representante da Secretaria de Cultura no Conselho Estadual da Pessoa com Deficiência (COEDE).

Sobrado: Ninfa, como foi sua experiência no curso de Relações Públicas e como teve início a sua história na Dança?
Ninfa Cunha: Eu me formei em 1996, a segunda turma da UNIFACS. Era um curso muito novo na época, então estávamos engatinhando, a própria sociedade ainda não entendia muito bem qual era o papel de um relações públicas. Quando me formei e ia procurar emprego, via nos jornais as vagas para RP e na verdade era para vender enciclopédia, ou receber o público em porta de boate. Não havia um entendimento do que era a profissão aqui na nossa cidade. Naquela época, eu procurar uma vaga para relações públicas numa cadeira de rodas, achavam um absurdo. A deficiência falava mais alto. Não tínhamos tantos direitos garantidos, não existia ainda as cotas, por exemplo. Mais ou menos na mesma época, descobri que tinha diabetes e fui fazer alguma atividade física para baixar o açúcar lá no Sarah. Minha intenção era fazer hidroterapia, mas só tinha vaga para dança, então fui, buscando um viés terapêutico… Mas nesse lugar, eu me descobri. Tive a imensa sorte de ter uma professora de dança, Márcia Abreu, que via que aquele trabalho poderia ir além da terapia, ela via como expressão artística, um produto cultural. Ela queria derrubar realmente os muros do Sarah e jogar esse trabalho para fora, para a cidade. Aí abriu um concurso internacional chamado Dança Bahia, lá no Centro de Convenções, e ela lançou o desafio para mim e para outra pessoa que a gente apresentasse dois solos. Foi assim que entrei na dança e nunca mais saí.

S: E o que mudou em sua visão de mundo desde esse contato?
NF: Foi tudo muito rápido. Márcia entrou de férias e quando voltou, tive uma crise forte da diabetes e fiquei uma semana internada. Desse período para o dia da apresentação foi apenas uma semana para decidir tudo: maquiagem, figurino… inclusive se eu ia dançar ou não. No dia da apresentação, a gente chegou mais cedo para passar com a luz no palco, e era um solo que eu dançava fora da cadeira de rodas, todo no chão. Quando saí desse ensaio, saí me acabando de chorar, achando que ninguém ia me ver, que o palco ia me engolir. Mas ela me disse “esqueça o público, esqueça tudo, e só lembre da sua dança”, e eu fui. A sensação que eu tive foi que meu corpo extrapolou o palco, chegou até o último assento da plateia. Daí em diante não parei mais, é um bichinho que te morde, ocupa seu corpo inteiro. Aí começou minha história também na militância das pessoas com deficiência. Eu sempre digo que tem uma Ninfa antes da dança e uma Ninfa depois da dança. Estabeleci uma relação diferente com meu corpo, com a cadeira, com a minha sexualidade. Nos quatro anos que cursei Relações Públicas, não conheci o banheiro da faculdade porque eu não tinha acesso. Eu achava que eu que tinha que me moldar ao mundo, o mundo estava posto e eu que tinha nascido com uma deficiência teria que me moldar. Foi depois da dança que isso mudou. O movimento de pessoas com deficiência briga por respeito às diferenças, pelo direito de ter acesso ao mundo.

S: Então, para você, a arte foi como um caminho de autoconhecimento também. Você busca orientar outras pessoas nessa visão, com seu trabalho?
NF: Eu percebi o seguinte: uma andorinha só não faz verão. Comecei a criar, trabalhar em cima de projetos que eu possa trazer outras pessoas com deficiência para a arte. Para o fazer artístico, que essa possa ser uma formação, uma profissão para elas. Várias instituições trabalham com a arte com pessoas com deficiência, mas geralmente num viés terapêutico, pedagógico. Meu intuito sempre foi criar projetos de fruição, culturais, de fomento à cultura, e de formação, para pessoas com deficiências no geral. Tento contemplar o todo, não só uma deficiência específica, trabalhando as pessoas com deficiências e seus pares: famílias, acompanhantes, coordenadores de instituições, professores… Criamos o Casulo de Artes Inclusivas, o Perspectivas em Movimento, fomos nos fortalecendo para reivindicar políticas públicas. Não foi fácil, é uma luta grande, acho que já conseguimos muita coisa, até mesmo dentro do movimento das pessoas com deficiência, a arte e cultura têm sua cadeira, já têm o seu lugar.

S: Em 2015 você se torna gestora do Espaço Xisto, que atualmente é uma referência no quesito acessibilidade dentre os espaços culturais da cidade. Como essa proposta têm sido conduzida dentro de sua direção?
NF: Recebi esse desafio de Jorge Portugal, que era nosso Secretário à época, de me tornar gestora e fazer com que ele fosse referência em acessibilidade. De 2015 pra cá, para o Xisto em si, creio que as conquistas foram poucas. Mas foram poucas que para mim também são maravilhosas, porque hoje o Xisto já tem essa chancela de referência em acessibilidade. Antes de ser diretora, já era proponente do espaço porque ele contempla 70% da acessibilidade arquitetônica. Tem um camarim que é acessível, te leva até o palco, passa pela coxia até o palco sem nenhuma barreira. É um dos poucos lugares aqui que o fazer artístico da pessoa que utiliza a cadeira de rodas é contemplado. Outra questão que para mim é essencial e trabalho não só com meus funcionários do Xisto, mas também em diversos outros ambientes que já estive e trabalhei, é a acessibilidade atitudinal: preparar os servidores para atender esse público. Atender o público da terceira idade, pessoas com mobilidade reduzida, gestantes… Então faço uma formação em acessibilidade atitudinal que para mim é a dimensão mais importante dentro da acessibilidade, porque ela vai mudar o seu olhar. Quando essa mudança de ótica acontece, as outras dimensões da acessibilidade também acontecem. O principal é derrubar a barreira do preconceito.

S: Poderia explicar um pouco sobre as seis dimensões da acessibilidade?
NC: Sim, são a acessibilidade arquitetônica, que tem a ver com a questão espacial, de rampas, de banheiros acessíveis. A comunicacional, que tem a ver com a informação: o uso da audiodescrição, da LIBRAS, do Braille. A atitudinal, que é o preparo para lidar com diferentes públicos e a mudança da ótica do preconceito. Tem a programática, que é voltada para as leis, os decretos, normas, que precisam ser inteligíveis e acessíveis também para as pessoas com deficiências. Tem a instrumental, que quem mais usa são professores, os instrumentos que podem ser utilizados para que pessoas com deficiência intelectual, síndrome de down, autistas, por exemplo, entendam o que está sendo ensinado. E também tem a metodológica, que são métodos voltados para pessoas com deficiências, também muito utilizados pela rede de educação ou da saúde. Agora na pandemia, por exemplo, quem está na linha de frente tem que se adequar a algumas coisas, aprender, porque o público de pessoas com deficiências também pegou a covid. Como ser atendido e entendido? Principalmente nessa doença que, em geral, não permite acompanhantes nos hospitais. Vi muitos profissionais de saúde preocupados em entender pelo menos o básico da LIBRAS. Algumas pessoas com deficiência auditiva até conseguem fazer a leitura labial, mas a máscara não deixa.

Tenho participado de alguns cursos de acessibilidade e cidadania cultural, que tem pesquisadores falando numa sétima dimensão: acessibilidade estética. É muito voltada para a arte. É uma acessibilidade que proporcione a oportunidade de ir além do entendimento. Como aquela obra vai te tocar, perpassar você, te deixar marcas. Que ela possa te levar para um outro caminho que o artista não pensou. Tem se pesquisado principalmente na área de museus… Porque pensando nesse contexto, você não pode tocar a obra no museu, por exemplo, como o deficiente visual terá acesso a ela? Foi uma dimensão que eu descobri agora, a pandemia me ensinou (risos).

S: Pensando no contexto da pandemia, ainda não temos dados sobre pessoas com deficiências que infelizmente faleceram por conta da covid-19. Como você avalia essa falta?
NC: Estamos fazendo um esforço dentro da COEDE, a pessoa que representa a secretaria de saúde está buscando esse dado para passar para a gente, pois já existe um dado quantitativo de pessoas com deficiência que pegaram o vírus, e que infelizmente morreram pelo vírus. Mas isso é do âmbito estadual. No âmbito federal, eu realmente não sei, temos dificuldade com a publicação de dados no geral, não só das pessoas com deficiência. O que ele pôde fazer para criar problemas e barreiras, ele fez. É difícil. Nós tivemos sorte das duas instâncias da nossa cidade, governo e prefeitura, trabalharem juntas. Mas o federal não trabalha com ninguém. Se tivéssemos um presidente coerente, participativo, preocupado com seu povo, acho que não teríamos chegado a 115 mil mortos [à época dessa entrevista], que é o que a gente sabe graças a um grupo de imprensa que resolveu se unir para passar esse dado.

Outro dado que estamos buscando, e vamos trazer para o debate, é a questão da violência contra a pessoa com deficiência. As instituições fecharam, todas, então temos tomado conhecimento de várias denúncias de violência contra pessoas com deficiência, existem algumas que já foram feitos boletins de ocorrência, então sabemos que esse dado também aumentou.

S: Tem sido possível para você, em seus projetos e dentro do Conselho, promover ações de forma remota para o público das pessoas com deficiência?
NC: No COEDE temos feito lives, para falar sobre acessibilidade cultural, depois que fizemos uma reunião sobre a Lei Aldir Blanc, pensamos como tornar o cadastro acessível para artistas com deficiências. Dentro do meu projeto, tenho feito algumas lives também, e esse mês de setembro estamos criando uma campanha #AcessibilidadeDeVerdade, para promover uma mesa só com artistas com deficiências, pra falarem como está sendo o dia a dia, como tá a cabeça… Vamos publicar #tbts também, com projetos que fizemos no Casulos de Artes Inclusivas, que criei há 11 anos. Os artistas, independentemente da deficiência ou não, entraram em pandemia antes da própria pandemia. Começamos a ter problemas nesse setor desde o final de 2018. Em tudo: na criação, nos espaços, nos equipamentos, nos grupos, na manutenção de coletivos. Tem sido uma barra pra todo mundo que escolheu viver de arte nesse país. E para as pessoas com deficiência, é mais ainda. Invisibilidade geral, independente de pandemia ou não. A gente sempre discutiu isso dentro do COEDE, o quanto há esse sentimento de invisível. Uma vez no COEDE trouxe a DEAM (Delegacia Especial de Atendimento à Mulher) pra discutir a questão da violência contra a mulher com deficiência, e fique pasma como eu fiquei, até como a própria delegada ficou: ela tinha estatística de tudo, de violência contra a mulher idosa, trans, negra, indígena… mas não existia um dado, um percentual, de violência contra a mulher com deficiência.

Pessoalmente, tenho essa janela da internet, que tem me possibilitado aprender outras coisas. Estou fazendo uma especialização em mídias sociais, que está me possibilitando manter a mente ocupada, além das reuniões de trabalho. Continuamos sempre nos encontrando e conversando. Continuo trabalhando, em casa, remoto… eu ainda não enlouqueci legal por causa disso (risos). A rua faz falta, eu sou da rua.

S: Na sua opinião, as redes sociais e a internet em geral tem aberto um caminho de maior integração das pessoas com deficiência em discussões da esfera pública nesse cenário?
NC: Eu acredito que há um “novo normal” para pessoas com deficiência também. Nem todo mundo tem acesso. Para um deficiente visual ter acesso a algumas redes sociais, como o Facebook, tem que ter um Iphone, porque o Android não tem um sistema acessível. Mesmo assim, não entra 100%, porque essas plataformas digitais às vezes não permitem que o programa que eles usam entre [no software]. É o caso do Teams, por exemplo. É sobre isso que estou pensando como meu trabalho de conclusão dessa especialização em mídias sociais. Creio que agora vamos utilizar muito esses aparatos. A gente sabe que a questão financeira também tá gritando, o país tá quebrado, acho que muitas coisas que eram presenciais vão passar a ser online. Vamos ter que pensar muito sobre isso…

Sobrado: Como pessoas sem deficiência podem ser aliadas na luta anti-capacitista?
NC: O que incomoda, para mim e para muitas pessoas que conheço, é que nós, pessoas com deficiências, acabamos falando sempre para nós mesmos ou para pessoas sem deficiência que pesquisam sobre isso. A acessibilidade tem que ser um tema transversal. Não tem que ter uma mesa sobre acessibilidade, tem que ser uma mesa sobre audiovisual, por exemplo, mas que envolva a acessibilidade. Porque a gente continua falando da gente para a gente. Quando você vê uma obra artística de um artista com deficiência também, o que prevalece? Isso me incomoda demais até hoje: até que ponto a pessoa está olhando a minha concepção, a minha proposta artística, e até que ponto está olhando uma escoliose, uma cadeira de rodas? Tenho uma coreografia minha, que fiz com Deo Carvalho, chamada Fogo. Toda vez que a gente dançava essa coreografia, tinha gente que vinha falar comigo, chorando, dizendo “Deus lhe abençoe”. Eu ficava: “o que?”. Era uma coreografia que simbolizava um ato sexual, de prazer, eu entrava de camisola fumava um cigarro, Deo tirava a camisa e eu passava ela por todo o meu corpo. Mas que rosto a plateia via naquele momento? Era o rosto de uma dançarina com um corpo completamente assimétrico, mas que tinha desejo, libido, vontade, ou era a deficiência? Era a cadeira de rodas? Será que as pessoas estavam entendendo que aquilo ali era um ato sexual, um momento de gozo?

Uma vez, apresentamos essa coreografia num evento da Coelba, e assim que eu entrei, um grupo de mulheres se levantou e foi embora. Nosso diretor, Walter Rozadilla, não entendeu nada e saiu correndo atrás delas, para voltarem. Depois, a pessoa que nos convidou disse que eram evangélicas. Aí sim fiquei feliz, porque pelo menos se sentiram provocadas pelo meu trabalho. Essa é minha intenção com a dança: quero abrir uma ferida. Se a pessoa achar feio, massa, que bom, consegui chegar nela. Agora fazer uma coreografia dessa no palco, e uma pessoa vir chorando e dizer “que Deus lhe abençoe”? (risos)

Podemos lembrar também que as pessoas com deficiências também são produtoras e consumidoras de arte. Se há o acesso, as pessoas frequentam. Se são convocadas a fazer arte, fazem, é só dar régua e compasso. Pode esperar que vão fazer, e vão fazer muito bem.