Revista Sobrado
Foto: Arquivo pessoal

Rafael Dantas: “Os índios foram silenciados e amputados da nossa história”

Quando o assunto é a construção histórica da Bahia, os fatores políticos e econômicos são os mais ressaltados, pouco se fala da cultura nesse processo. Por isso, na estreia da nossa coluna de entrevistas, a Sobrado conversou com o historiador e professor, formado pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), Rafael Dantas, que falou das tensões e dos conflitos históricos, desde o processo de colonização pelos portugueses aos dias atuais, que fundamentaram o que podemos chamar de cultura e identidade baiana.  

Sobrado: Construiu-se uma ideia de Bahia como terra miscigenada, de mistura das três raças (indígena, africana e europeia), como um processo unificador e harmônico. Essa teria sido a base da formação cultural baiana. Você concorda com isso?
Rafael Dantas: Essa ideia passou por um processo de ressignificação, a partir da segunda metade do século XX. Ao se fazer uma análise histórica sobre a ideia de Bahia miscigenada, como terra da mistura, como se fosse um processo harmônico, verá que este discurso não é verdadeiro. Quando voltamos anos atrás, veremos gravuras e imagens do final do século XVIII, que mostram o panorama da cidade do Salvador, e revelam fragmentação. A cidade era vista em seus blocos e modelos. O português era visto de uma forma e o negro de outra, assim como suas manifestações culturais. A ideia de Salvador como uma cidade misturada não era bem vista, afinal, estávamos no contexto escravista. Essa situação continua em todo o século XIX. A ideia da mistura, da miscigenação, não faz parte do discurso da elite política daquela época. Ao contrário, temos diversos relatos e documentos que deixam essa ideia em segundo plano ou escondem esta realidade da diversidade cultural baiana.

S: Então quando começa a propagação dessa ideia de cidade miscigenada e multicultural?
RD: No início do século XX teremos um movimento de propaganda, que ganha força com a divulgação de peças publicitárias, com a imagem de uma Salvador moderna, como cidade do progresso. Mas tudo isso revestido com um viés branco. Salvador como a Atenas brasileira. A partir da década de 1940, isso começa a mudar, sobretudo devido um aperfeiçoamento dessa ideia de uma “cultura baiana”, através de produções e trabalhos artísticos. Nomes como Jorge Amado na literatura, Verger na fotografia, Carybé nas artes plásticas, Caymmi na música serão fundamentais para isso. Relacionado ao contexto nacional, pois a Semana de Arte Moderna em 1922 já sinaliza uma mudança de ideia de cultura no país. Teremos também ações governamentais, como na gestão de Vargas, que passa a divulgar uma ideia de nação, de uma ideia de mistura.

S: Esse contexto também impacta na Bahia?
RD: Sim. A Bahia entra nessa onda também. Por exemplo, festas tradicionais que hoje consideramos como marcos da cidade do Salvador, como a celebração de Iemanjá no Rio Vermelho, não eram assim grandiosas nas décadas de 1940 e 50. Isso muda a partir do momento em que pessoas, baianos ou não, passam a valorizar essas festas como elemento da identidade e da cultura baiana. Então, o meado do século XX vai ser o divisor de águas, quando passaremos a ter a divulgação dessa ideia de uma Salvador misturada, miscigenada, multicultural. Com contribuições principalmente da cultura negra e dos portugueses.

O meado do século XX vai ser o divisor de águas, quando passaremos a ter a divulgação dessa ideia de uma Salvador misturada, miscigenada, multicultural

S: E onde os povos indígenas ficam nessa história?
RD: Os índios foram silenciados e amputados da nossa história, tanto no período colonial quanto nos séculos seguintes. O índio está presente, por exemplo, na Cabocla e no Caboclo, nas comemorações do Dois de Julho, contudo, não especificamente como significado e representação da cultura indígena na cidade do Salvador e na Bahia, mas como parte dessa ideia de miscigenação, a mistura do povo baiano. No início, lá no século XIX, isso não era bem visto. O Caboclo e a Cabocla passam por um processo de ressignificação.

S: Mas esse processo de ressignificação está relacionado a uma ideia de nação, de pertencimento, em construção no Brasil?
RD: Com certeza. Na segunda metade do século de XIX e o início do século XX teremos isso com muita força. No século XIX temos a questão da construção de uma identidade nacional, do que também foi chamado de caráter brasileiro, e a construção da ideia de nação, com empenho oficial do Império. Já no início do século XX, aliado às questões raciais, em particular às teorias higienistas, temos uma ideia de miscigenação voltada ao branco, com processo de imigração. O africano, o passado escravista, é passado, tem que ficar pra trás, não deve nem ser lembrado. Quando analisamos textos e discursos como de Teixeira de Freitas, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco essa ideia está presente. Eles falam da vergonha do Brasil ter tido um passado escravista. Então, essa ideia de mistura e miscigenação passa por uma outra interpretação e valorização, a partir dos meados do século XX. Aí que entra a questão da música, da culinária e tal.

S: Esses elementos sempre estiveram presentes como identidade da cultura baiana?
RD: Sim, mas não com o caráter de evidência, de destaque. No século XIX isso entrava como tipo, como algo exótico, característico da Bahia. Quando analisamos os postais da época, isso era colocado como tipos baianos: as negras com os balangandãs, as negras com o cesto de alimentos na cabeça, as negras vendendo nos tabuleiros. Nos meados do século XX teremos outro contexto, outra realidade. Aí o papel dos artistas foi fundamental, passaram a falar de uma cultura baiana, em lentes ou pinturas, que valorizavam esses elementos, antes classificados como tipos, agora como elementos de identidade.

S: Essa ressignificação também teve algum interesse político?
RD: Sem dúvida, ainda que com pouca força nos meados do século XX. Esse processo de uso político ganha força no governo de ACM, que, no meu ponto de vista, ajuda a construir o conceito e a visão de identidade baiana que temos hoje. Tanto é isso que quando falamos de identidade baiana automaticamente vêm em mente os elementos que eram destacados nas propagandas da década de 1980 e 1990. Deixamos vários outros elementos de fora. Então, quando observamos, em uma perspectiva histórica, veremos que o conceito de miscigenação atravessa vários contextos diferentes e vai sendo ressignificado, reelaborado.

S: E qual foi o papel das religiões nesse processo?
RD: Essa é mais uma questão que não pode ser vista de maneira romanceada, como foi por muito tempo. Ainda hoje, de uma forma ou de outra, é. Desde o primeiro momento é conflito, tensão e imposição. Sempre que falo sobre este tema, remeto-me a um trabalho de um gravurista do século XV, que mostra a chegada do homem branco à América. Na gravura, o homem branco europeu está carregando uma cruz. Isso não tem apenas um sentido religioso, mas um símbolo de poder. Está fixando naquela terra a fé católica. Está impondo aos povos dominados a fé católica. Isso marca toda a nossa história. A própria carta que Thomé de Sousa trouxe, escrita por Dom João III, comunicava que os índios que se rebelassem, se voltassem contra os portugueses, deveriam ser exterminados. Só pra gente ter uma noção como esse processo foi cruel. Assim prevaleceu a fé católica, o cristianismo.

S: Fala-se muito em sincretismo religioso como se isso fosse algo harmônico. Como você vê isso?
RD: Fala-se “sincretismo”, da mesma forma que se fala em “miscigenação”.  Tudo que vem de outro lugar passa por um processo de contribuição, acréscimo, retirada e acentuação de determinados pontos com a cultura que a recebe. Isso não se dá de maneira harmônica, como já pontuei, mas sim com imposição. Portanto, a religiosidade do ponto de vista baiano vai adquirir a particularidade da diversidade. Teremos um caldeirão, uma verdadeira moqueca cultural, que do ponto de vista religioso e cultural dará um resultado bem misto, que se reflete nas festas religiosas e populares, em contextos bem particulares de cada época histórica. Importante frisar, sempre na ótica da ordem branca, de uma ideia cristão-católica. Tem um relato interessante do príncipe Maximiliano de Habsburgo, que no final do século XIX, acompanhou uma festa do Senhor do Bonfim e ficou abismado com a presença dos batuques, que não eram pertinentes à ordem religiosa católica. Como católico fervoroso, ficou chocado, desesperado. Isso fazia parte da realidade soteropolitana da época, imerso na escravidão do século XIX e que segue nos anos seguintes, mas não era bem visto pelos representantes da elite. Como acontecia também com a questão da miscigenação, que já pontuamos anteriormente.

S: Isso também começou a mudar em meados do século XX?
RD: Sim. O final do século XIX e início do XX serão marcados por um contexto de tentativas de impor uma ordem, uma civilidade. Mas existia um hibridismo cultural. Acho a palavra hibridismo melhor que sincretismo. Essa ideia do hibridismo, da mistura das religiões, vai acontecer. Outra vez essa ideia de mistura perpassa pelas ideias das produções e reproduções dos artistas e produtores culturais da Bahia, ressignificando o conceito. Por exemplo, Pierre Verger foi o primeiro a fotografar o candomblé, passando uma ideia de Bahia para o Brasil. Carybé dá forma em esculturas, pinturas e desenhos às religiões de matrizes africanas.   

S: Antes você mencionou a Festa de Iemanjá e as comemorações do Dois de Julho. Qual a ligação do povo baiano com as festas populares?
RD: O tema das festas populares é bem interessante e complexo. Tivemos festas, festejos e comemorações que continuaram ao longo do tempo, outras desapareceram. Festas como a do Senhor do Bonfim e a do Dois de Julho, especificamente, conseguiram alcançar grande dimensão devido o popular. Esse popular está imerso na ideia de mistura, do híbrido. O Dois de Julho já foi comemorado com a entrada das tropas vitoriosas, logo em seguida o povo volta às ruas para festejar no ano seguinte, em 1924. Ou seja, o povo foi às ruas, independente de uma imposição ou de um pedido por parte das elites políticas. Com o Senhor do Bonfim acontece a mesma coisa. O que garante que estes festejos estejam vivos até hoje é justamente a participação popular.  Porque só a Igreja ou só o poder público não teriam força para continuar a festa. É essa sensação, esse espírito de algo que pertence à cidade que mantém estes festejos vivos.

O que garante que estes festejos estejam vivos até hoje é justamente a participação popular. 

S: Essas festas também passam por processo de mudança e ressignificação?
RD: É curioso que, nos últimos anos, temos percebido na festa do Senhor do Bonfim uma mudança na esfera participativa. Algumas dessas festas continuam a tradição da participação política, com participação de dirigentes políticos nos cortejos, mas pessoas comuns estão deixando de ir para essas festas. O movimento político nas festas populares agrega e exclui. A parte religiosa sempre foi muito forte no Senhor do Bonfim, contudo, hoje temos outros valores agregados à festa: político, turístico e o curioso. Quando voltamos no tempo, veremos que tínhamos outra festa do Senhor do Bonfim. Na década de 1980, tínhamos trio elétrico e as carroças. A mudança é normal, isso acontece com todas as festas, em todas em épocas. As festas de Santa Bárbara e Iemanjá, que têm crescido o número de pessoas, dialogam mais com nosso momento e com as novas ferramentas de divulgações existentes. A festa de Iemanjá cresce, a meu ver, já passou um processo de ressignificação. Hoje temos uma Iemanjá gourmetizada e branca. Santa Bárbara ainda mantém a tradição, mesmo com suas transformações. Talvez represente a festa de maior resistência. O que faz com que os festejos sigam vivos é o sentimento de pertencimento.

S: E quanto às festas no interior do Estado? Elas também seguem o mesmo modelo de ressignificação?
RD: Temos fortes tradições e festas populares que sofreram poucas mudanças comparadas às do litoral. Isso não é exclusividade da Bahia. Em todo mundo, cidades marítimas e portuárias são suscetíveis às maiores transformações. Já interior tende, não é uma regra, a preservar mais seus costumes e tradições. Temos o exemplo da festa da Boa Morte, em Cachoeira [cidade histórica localizada no Recôncavo].

S: A Bahia tem toda uma relação com o mar. Salvador é uma cidade portuária, de frente para a Baía de Todos-os-Santos. Como isso impactou na formação cultural?
RD: A cidade foi escolhida pela sua posição privilegiada, com vista para a Baía de Todos-os-Santos, a 60 metros de altura, com visão para entrada e saída, com a Ilha de Itaparica ao fundo. O que segue uma ótica de cidade portuguesa. Salvador nasce em diálogo com o mar. Ganhamos destaque no cenário econômico por conta do seu porto, que nos séculos XVIII e XIX era o maior das Américas e um dos maiores do mundo. Isso não é pouca coisa. O mar, o porto e a Baía de Todos-os-Santos têm uma carga de representativa, por aí chegou diversas culturas, diversos povos, saiu e chegou muita riqueza. Tem uma carga simbólica por todo o contexto da escravidão. Era pelo litoral que chegavam os navios com os escravizados. Então, essa ligação do mar com a cultura da cidade é a base do que vamos entender como desenvolvimento cultural da Bahia. Historicamente, Salvador é vista e mostrada, evidenciada, a partir do mar. A perspectiva de Cidade Alta e Cidade Baixa é de uma visão do mar. Salvador será exibida a partir do ponto de vista marítimo. E essa visão vai se expressar nas artes plásticas, nas músicas e na literatura. O mar é marca, símbolo e identidade visual de Salvador e de toda a Bahia.

S: Quanto ao Carnaval, como se deu a construção histórica desta festa em Salvador?
RD: O Carnaval tornou-se o principal cartão postal de Salvador, no sentido de sua divulgação e dimensão. Isso é resultado de uma política pensada, pois o carnaval não era assim até a década de 1960. É a partir da década de 1970 que vai ganhando outra dimensão, quando é instrumentalizado politicamente, com a Bahia sendo vendida como uma terra alegre, sorridente, lugar da festa e do axé. Com isso foi sendo construído um modelo de festa que se consolidou nas décadas seguintes.

S: Então, tivemos uma ruptura de um velho modelo?
RD: Como festa popular, o Carnaval em Salvador passou por várias mudanças históricas. Avalio que, atualmente, esse modelo que veio sendo construído nas últimas décadas está sendo revisto, outros olhares estão sendo direcionados e iniciou-se algumas mudanças. Ainda temos a predominância do carnaval gourmetizado, dos blocos, abadás e camarotes, mas vem ganhando forças outros espaços alternativos, como as pipocas. A corda, símbolo da segregação e divisão de espaços, vem perdendo força. Podemos dizer que o carnaval popular, que teve muita força antes deste modelo atual, vem retomando seu espaço.

S: O surgimento do trio elétrico também foi um marco na mudança do Carnaval?
RD: Sim. Outro momento de mudança foi na transição entre as décadas de 1940 e 50, com o surgimento do trio elétrico. O carnaval como expressão popular de transeuntes a pé, pulando, passou a ser conduzido por uma máquina, um automóvel. Teremos um carro que puxa as pessoas pelas ruas. Estes elementos, do ponto de vista simbólico, são importantes. O carro era um elemento marcante naquele contexto, quando os automóveis começam a ocupar as ruas da cidade. Com o trio elétrico a rua passa a ser o palco central da festa, rompendo com o modelo vigente no final do século XIX e início do século XX, que era um carnaval elitizado. O Carnaval na cidade do Salvador surgiu nos bailes, festas e clubes da elite. O povo estava à margem disso. Não entravam nesses espaços. Evidentemente, eram espaços racializados. A classe média e os pobres curtiam o carnaval nas ladeiras e ruas transversais às principais avenidas e ruas.

S: Essa segregação de raça e classe não segue até hoje?
RD: A segregação era muito forte nesse período do carnaval elitizado. Isso foi mudando, mas não foi abolido. Com a transformação do Carnaval como principal cartão postal da Bahia, com a industrialização da festa, com o movimento da axé music, quem se destaca são os personagens brancos. Isso prevalece ainda nos dias atuais. Não é justificável que artistas maravilhosos, incríveis, como Margareth Menezes e outros, fiquem em segundo plano. Isso é parte do racismo estrutural existente. A sobreposição, a força desses artistas brancos, está relacionada à questão racial, sim. Aqui não tem espaço pra dizer que é racismo velado. É racismo escancarado. Basta no olhar uma foto área do carnaval pra ver quem está dentro e quem está fora da corda. Tudo isso está relacionado ao passado escravista e com nosso pós-abolicionismo, suas persistências e continuidades. Mas com todas essas contradições e segregações que percorrem a história da festa, é a presença do povo, em todas as fases históricas, que garante a existência do carnaval. O que faz ele existir é a força popular, é o povo sem cordas, sem as amarras do Estado e de uma elite que tenta a todo tempo “organizar” a festa.