Revista Sobrado
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Raphael Montes: “Muita gente tem preconceito com série brasileira”

Um dos maiores sucessos da literatura brasileira recente, Raphael Montes já vendeu mais de 125 mil livros em território nacional em um espaço de tempo relativamente curto. Seu primeiro livro, Suicidas, foi publicado em 2012. De lá para cá, o autor já escreveu os livros Dias Perfeitos, O Vilarejo, Jantar Secreto, Uma Mulher No Escuro, e junto com Ilana Casoy, Bom Dia, Verônica, a princípio publicado com o pseudônimo Andrea Killmore.

No currículo do jovem, que recentemente completou 30 anos, há também assinaturas em produções audiovisuais. De 2014 a 2017, ele colaborou na série Espinosa, para o GNT, e foi roteirista na TV Globo, trabalhando com o novelista João Emanuel Carneiro. Agora, o autor dá um novo passo. Um largo passo. Desde o último dia 1º, já é possível conferir na Netflix, em mais de 190 países, a adaptação do livro Bom Dia, Verônica. A versão do livro para a TV ficou a cargo do próprio Raphael, que também produziu a série.

Na trama, a escrivã Verônica está caçando um bandido que busca suas vítimas em um site de namoro. Nessa missão, ela encontra uma mulher que sofre abusos e guarda um segredo terrível. A série é estrelada por Tainá Müller, Camila Morgado e Eduardo Moscovis.

Para a Sobrado, o autor carioca conta sobre a experiência de assinar a adaptação do próprio livro, a descoberta como produtor, os próximos projetos e fala também sobre o mercado literário do terror e policial.

Sobrado: Como foi para você voltar para essa história 4 anos depois de publicado?
Raphael Montes: É curiosa essa pergunta porque de algum modo não é voltar. Comecei a escrever em 2016 com a Ilana, ele saiu em 2017 e no final de 2017 a Netflix me procurou querendo uma série de suspense. Sugeri adaptar Bom Dia, Verônica, do pseudônimo Andrea Killmore, sem dizer que eu era um dos autores do livro. Eles perguntaram qual era a minha proposta de adaptação e fiz a proposta com oito episódios, com as viradas e tal, e dali eles aprovaram e a gente começou a trabalhar na série. Então, na verdade, ao longo desses quatro anos eu nunca parei de pensar. Mas é uma alegria e uma sensação de dever cumprido ter feito um livro que atingiu e é o favorito de muitas pessoas e agora dar esse passo maior, esse passo grande que é uma série da Netflix, para 190 países, que atinge muito mais pessoas, que dialoga com pessoas que nunca ouviram falar do livro, mas que gostam de uma boa história com boas viradas. É uma alegria grande.

S: Você já tinha experiência na escrita para o audiovisual, mas, apesar de ser baseado num texto seu, estar à frente de uma série foi um desafio? Principalmente nas mudanças que foram feitas do livro para a série…
RM: Sem dúvida. Foi um desafio duplo. Já trabalhava no audiovisual desde 2015, trabalhei alguns anos na TV Globo, colaborei em uma novela, e fazer Bom Dia, Verônica foi um desafio duplo. O primeiro desafio foi o de criar uma série, de levantar uma série, comandar uma sala de roteiro. Isso por si já é um desafio. E, além desse desafio de comandar uma sala de roteiro, de erguer uma série baseada num livro, tinha também o desafio de que o livro foi escrito por mim e pela Ilana, então de algum modo eu tinha algumas apegos à história que eu tinha que aprender a desapegar pra olhar com um olhar de roteirista dessa história, e não com o olhar do autor que tinha feito o livro. Eu já tinha até trabalhado numa adaptação de um livro de outro autor antes, mas sem dúvida adaptar a si mesmo é mais difícil.

S: Para além de roteirista, você também trabalhou como produtor da série. Ou seja, você estava ali a todo momento. Como foi desempenhar esse papel?
RM: Foi um grande aprendizado e uma coisa muito interessante pra mim, acho que me fez crescer como profissional mesmo. Entendi que enquanto a literatura é um lugar muito pessoal e subjetivo, o audiovisual é necessariamente coletivo. Como produtor, o meu trabalho era muito dialogar, dialogar em todas as áreas que estavam ali querendo fazer o seu melhor. A direção, direção de arte, a produtora de elenco, os atores, o fotógrafo, o montador, todo mundo ali queria fazer o seu melhor. E todo mundo queria ao mesmo tempo dialogar. Aprendi e entendi como era importante esse diálogo. Por muitas vezes eu tinha uma opinião, o diretor tinha outra e a gente sentava e falava “Vamos lá. Quais são os seus argumentos?”, “São esses”, “Quais são os meus?”, “São esses”. E dessa troca surge o projeto. É muito bom e potente entender que o resultado que se vê na tela é resultado e mérito do coletivo, de toda a equipe e do time da Netflix, que deu suporte e deu essa importância de ter os autores do livro presentes nessas fases.

S: Existem outros planos em parceria com a Netflix?
RM: Olha, existem outros planos, sem dúvidas, de eu contar mais histórias. Tenho vontade de continuar adaptando meus livros, mas também de adaptar outros livros e fazer projetos originais. Agora tô com um projeto ainda em negociação, uma série que seria uma espécie de “Quem matou?”, uma Agatha Christie à brasileira. Torço pra que Bom Dia, Verônica seja o primeiro de muitos projetos pro audiovisual em séries de televisão.

S: Seus livros são sucessos no Brasil e no mundo, mas agora com a estreia da adaptação de Bom Dia, Verônica as coisas chegam num novo patamar. Mais de 190 países vão ter acesso a essa história. Para você, essa é uma história universal?
RM: Ah, sem dúvida. Eu queria muito comunicar. Eu, desde os meus livros, como você bem disse, felizmente tenho um público leitor, que curte meu trabalho, que indica. O autor brasileiro, às vezes, é tão ignorado, as pessoas dizem “Ah, livro brasileiro não é bom. Suspense bom é o suspense americano, europeu”. Felizmente na literatura consegui ir criando esse público, que ainda está em formação, mas já tem uma base muito sólida, e quando fui para o audiovisual eu queria, como você disse, dar esse passo maior, dialogar com mais pessoas. Sou um autor que gosto de me comunicar. É Raphael para o mundo, gosto dessa vontade de atingir as pessoas. E você me pergunta se acho a série universal, sim, eu acho. E digo até mais, acho que ela é universal e ela é pra todos, não só pra quem gosta de suspense ou thriller. Ainda que seja um thriller com muita ação, com muitas viradas, com muita atenção, é antes de tudo uma história humana. E o humano é universal, o drama humano é universal. O drama da Verônica tentando equilibrar vários pratinhos ao mesmo tempo, do trabalho e da família, do sistema, da justiça. E o drama da Janete… São dramas humanos e por isso mesmo universal.

S: Você tem preparado seu próximo romance ao mesmo tempo que prepara outros projetos de séries. Como é desempenhar esses papéis ao mesmo tempo se dividindo entre a linguagem audiovisual e a linguagem literária, do romance?
RM: São realmente duas chaves distintas que eu preciso ligar. Ainda que o objetivo das duas seja o mesmo, que é contar uma boa história, as ferramentas são diferentes. Na literatura, as ferramentas são as palavras, os ritmos das frases, os parágrafos, a figura do narrador. No audiovisual você tem a imagem. É um exercício de trabalhar de maneiras distintas, mas é algo que já faço há alguns anos. Eu, por exemplo, enquanto escrevia a série, escrevi meu livro mais recente, Uma Mulher no Escuro, que foi publicado ano passado, e escrevi o filme A Menina que Matou os Pais e O Menino que Matou Meus Pais, que é cinema. Então, eu estava fazendo uma série, um filme e o meu livro. Confesso que pra mim é até bom, porque um universo alimenta o outro. Quando preciso de um respiro de uma história eu vou para a outra. Tento, claro que não é um processo fácil, criar uma espécie de equilíbrio entre essas áreas e fazer tudo com muito cuidado e qualidade.

S: Você mencionou que recentemente trabalhou no roteiro dos longas A Menina que Matou os Pais e O Menino que Matou Meus Pais, um projeto ousado de uma mesma história contada por dois pontos de vista, de um dos casos mais chocantes do Brasil. Como foi essa experiência?
RM: Olha, foi interessante porque foi o processo inverso. Na série da Netflix, como contei para você, eles me procuraram querendo uma série e propus a adaptação do Bom Dia, Verônica sem até dizer que eu era um dos autores do livro. Eles compraram o direito do livro e aí, sim, ficaram sabendo que eu e Ilana tínhamos escrito o livro. Comecei o processo de adaptação e a Ilana até então nunca havia feito um roteiro. Ela ficou até na dúvida se entrava ou não, e falei para ela participar da sala de roteiro que ela iria aprender. Ela é uma mulher incrível e que se reinventa e como ela tinha vindo da não-ficção para a ficção, ela também, com muito talento, foi da literatura para o roteiro na nossa sala. E ela que até então não fazia roteiro, ao longo do processo da sala foi convidada para escrever um filme da Suzane Richthofene. Ela falou “Beleza, eu faço se for com o Rapha”, então o processo se inverteu. Ela que trouxe o projeto, já que ela é uma grande especialista e conhecedora do caso. E pra mim foi muito interessante como processo, porque era uma maneira de, pela primeira vez, fazer uma ficção, mas que tem uma base real. Em geral, o meu trabalho é contar histórias de ficção que, claro, tem pesquisa, tem uma base psicológica, mas não tem as amarras da realidade. Nesse caso, as amarras da realidade estavam aí, o caso Richthofene é um caso emblemático no Brasil e então o que contar estava posto. Muitas pessoas já tinham tentado contar essa história, eu soube de pelo menos três roteiros que foram escritos sobre o caso e nenhum deles foi pra frente. Foi um desafio e esse desafio não estava no que contar, porque o que contar é o caso, já estava posto. O desafio era como contar e eu e Ilana trabalhamos muito em busca da melhor maneira de contar essa história e acabamos tendo a ideia de fazer uma história em duas versões, baseada nos autos do processo, porque as duas versões são absolutamente opostas e por isso mesmo cabe ao espectador entender e de pensar qual dos dois está falando a verdade ou se nas duas versões há verdades e há mentiras.

S: Você deve acompanhar o cenário da literatura policial e de terror brasileira. Tem surgido novos nomes? Qual autora ou autor te chamou atenção recentemente?
RM: Antes de ser um escritor de história de suspense, eu sou um leitor apaixonado por histórias de suspense. Eu lia muitos autores estrangeiros, Agatha Christie, Patricia Highsmith, Fred Vargas… E me perguntava “Quem faz isso no Brasil?”. Fui procurar e havia poucos autores. Rubem Fonseca, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Patrícia Melo, Tony Bellotto, Jô Soares. A exceção, talvez, do Luiz Alfredo, nenhum deles com uma obra a toda evidência dedicada a histórias policiais e suspense. Quando comecei a escrever as minhas histórias de suspense e policiais, ouvi de muita gente que “isso não dava certo”, “ninguém quer saber de literatura policial no Brasil”, “só se consume autores americanos e europeus”, escutei tudo isso. E como eu estava fazendo por mim, não estava fazendo pra dar certo, segui em frente confiando na minha intuição e na minha autenticidade de fazer o que eu queria fazer. E graças ao sucesso, principalmente, do Dias Perfeitos, que foi publicado em 2014, passei a ouvir que muitas editoras queriam publicar ficção policial brasileira. Muitos editores passaram a me procurar e falar “Pô, Rapha, tem gente que você acha legal escrevendo literatura policial no Brasil? A gente também quer ter um autor de policial brasileiro”. Nesse sentido surgiram alguns nomes que tem se dedicado a fazer literatura policial no Brasil com bastante talento. Tem o Victor Bonini; o Gabriel Tennyson, que publicou um livro que não é policial exatamente, ele vai um pouco para o terror, mas é muito bom, muito legal; tem o Tito Prates; tem o Gustavo Ávila, que publicou um livro policialesco também, chamado Sorriso da Hiena; tem a Cláudia Leme, que tem se dedicado a fazer literatura policial. Eu, pessoalmente, sou fã de carteirinha da Ana Paula Maia, que é uma autora e também roteirista. Acredito que o leitor brasileiro está descobrindo a delícia de ler boa literatura brasileira contemporânea. Agora, indo para o audiovisual, eu sei que muita gente tem preconceito com série brasileira. Muita gente vira a cara, fala que “série brasileira é ruim, série brasileira não funciona”, e eu espero que Bom Dia, Verônica ajude a romper esse preconceito que às vezes existe em relação as séries brasileiras. Torço para que isso aconteça e convido os espectadores, os leitores, que eventualmente tenham preconceito a conferir Bom Dia, Verônica.