Revista Sobrado

Samia Franco: “A política reflete as idiossincrasias de cada população”

Em virtude de tanta movimentação na política mundial, onde sai Donald Trump da presidência dos Estados Unidos, no Brasil vemos Jair Bolsonaro isolado, em quase todos os municípios brasileiros acompanhamos a realização das eleições municipais, em Salvador assistimos a vitória nas urnas de maneira bastante expressiva no primeiro turno de um candidato que possui conchavos partidários com o presidente, que contraditoriamente também é a capital do país com o maior índice de rejeição ao presidente brasileiro. Esse emaranhado político nos desperta algumas questões.

Convidamos a mestra em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (2015), Samia Franco, para responder algumas dessas questões. Política externa brasileira, relações culturais, diplomacia pública e cultural são alguns dos interesses de Samia. Atualmente, ela também leciona no Centro Universitário Jorge Amado no curso de Relações Internacionais.

No bate-papo com a Sobrado, Samia aborda esses temas atuais a partir da perspectiva de um tripé: política mundial, eleições municipais e cultura.

Sobrado: Pensando logo a nível mundial, uma grande vitória de uma onda diferente da política aconteceu com a vitória de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos. Como você acha que isso reflete no mundo?
Samia Franco: Primeiramente não acredito que Joe Biden seja uma grande diferença em termos de política nos EUA. Ele ganhou bastante visibilidade por causa do mau desempenho de seu opositor Donald Trump. Ele tem uma estratégia mais moderada e conseguiu trazer o voto daqueles que estavam contrariados com a política agressiva do Trump. Em cenário internacional, acredito que os EUA com Joe Biden no poder podem alterar/moderar algumas estratégias, como por exemplo as questões de meio ambiente e a melhoria das relações com países europeus, mas o posicionamento de superpotência não mudará.

S: E no Brasil? O atual presidente brasileiro era, declaradamente, fã do então presidente Trump. Como a derrota de Trump nas urnas pode influenciar no enfraquecimento da onda conservadora na política do Brasil?
SF: Ainda é cedo para afirmar quais serão e se existirão mudanças no Brasil a partir dessa mudança nos EUA. No entanto, é importante ficar atento para o comportamento do governo Bolsonaro quanto a sua relação com os EUA. Alguns cenários são possíveis: maior moderação no discurso em relação aos EUA, isolamento brasileiro em termos internacionais ou ainda manutenção dos padrões de comportamento, visando o apoio interno. Em termos gerais, não podemos esquecer que mesmo sem o Trump no poder, o movimento do “trumpismo” não desaparecerá nos EUA. As camadas ultraconservadoras estarão ativas e buscarão estratégias para a sua manutenção.

S: Entendendo as eleições municipais, quanto elas afetam a nossa vida cotidiana?
SF: As eleições municipais influenciam em todos os segmentos da vida cotidiana porque é delas que são alçados ao poder aqueles tomadores de decisão que definirão por quatro anos as bases da sociedade. No caso do legislativo, os eleitos irão elaborar projetos de lei sobre moradia, mobilidade, educação, cultura entre outros e fiscalizar as ações e orçamento da prefeitura. Já o executivo, o eleito/ a eleita vai poder executar ações para melhorias da infraestrutura pública, construir e gerir hospitais e escolas, investir e promover o desenvolvimento local, fiscalizar o transito e estabelecimentos comerciais entre outras. Assim, percebe-se que todas as dimensões de nossa vida desde sair de casa e pegar um transporte público até precisar de um atendimento médico está relacionado à política e às eleições.

S: Segundo o Instituto Alziras, 12% das prefeituras brasileiras até o fim do ano de 2020 são geridas por mulheres. Qual sua análise sobre esse dado?
SF: Acredito que ainda é pouco, mas que é um ganho importante para a inserção das mulheres na política. A chegada de mulheres nas prefeituras pode trazer o exemplo para outras mulheres e meninas a buscarem a vida política como espaço de participação e empoderamento. As prefeitas podem desenvolver e incentivar planos de ação que tragam mais benefícios para a vida pessoal e profissional de mulheres e de suas famílias e assim contribuir para um amplo e mais diversos desenvolvimento social e democrático.

S: Há a lei de cotas que obriga que ao menos 30% das candidaturas sejam de mulheres. Atualmente, esse percentual é de 33% nas eleições municipais deste ano. Por que é importante as cotas para mulheres na política?
SF: As cotas para as mulheres devem ser consideradas movimentos de reparação histórica. A política foi tradicionalmente relegada aos homens e isso representou uma visão de mundo muito ligada ao masculino que muitas vezes não atendeu as necessidades femininas em diversos campos, como o profissional. Promover a inserção e a participação de mulheres na política pode trazer maior diversidade de visões de mundo e de interesses.

S: Em outro recorte, temos 49.9% das candidatas e candidatos negros, 47.8% brancos, 0.4% indígenas e 0.4% amarelos. O número de negros é superior, mas quando se percebe que apenas dentre as candidaturas às prefeituras, 87% são homens e 63% brancos, vemos que o alto poder ainda segue um padrão. Para você, esse é um reflexo da estrutura social brasileira ou é algo articulado nos partidos?
SF: Reflete a estrutura social brasileira com certeza. Temos que lembrar que a política não está desassociada das estruturas socioeconômicas das sociedades, ela reflete as idiossincrasias de cada população. Se temos pouca diversidade em termos políticos é porque também temos uma sociedade que privilegia determinado segmento socioeconômico. A participação de negros, indígenas, amarelos, quilombolas e etc. é um importante passo para questionamento das estruturas de privilégio da sociedade e alteração através da política dos sistemas de desigualdade existentes. Enfim, a inserção dessa maior pluralidade será um elemento de fortalecimento da nossa democracia. 

S: Um dado importante é que temos 170 candidaturas trans utilizando o nome social na campanha, esse é um avanço. Como você avalia esse passo para o futuro?
SF: Acredito que seja um passo importante para o fortalecimento das candidaturas da comunidade LGBTQI+ como um todo. Além disso, acredito que o simples (e que não é simples) ato de poder utilizar seu nome social pode devolver a dignidade a essas pessoas que tanto lutaram por seu espaço e no futuro podem exercer cargos de decisão e promover agendas plurais e mais inclusivas. 

S: No atual cenário da política, principalmente aqui em Salvador, notou-se um elevado número de candidaturas coletivas, mais voltadas aos direitos humanos. Ao que se é atribuído esse movimento? Enquanto há um conservadorismo no executivo nacional, a política de base apresenta um outro olhar?
SF: Acredito que seja um movimento que reflita as demandas sociais e que vão continuar crescendo nos próximos anos. A partir desse crescimento é possível que também chegue aos órgãos federais e altere as tendências atuais. 

S: As eleições municipais sempre serviram como um termômetro para as eleições presidenciais. Em dois grandes colégios eleitorais do país, São Paulo e Rio de Janeiro, vimos uma queda nas pesquisas de intenção de voto para os candidatos às prefeituras depois do apoio do presidente. Essas eleições municipais de 2020 podem ser um termômetro para as eleições presidenciais de 2022?
SF: As eleições de 2020 podem representar a tendência para o 2022 pois demonstra uma rede de apoio ou não ao cargo de presidência da República, mas não é garantidora dos resultados em 2022. Os resultados de 2022 estarão ligados também ao posicionamento do presidente em questões importantes como a crise sanitária e econômica. E além disso, o poder de atração das oposições políticas até as eleições. 

S: Agora vamos lançar um olhar para a cultura nacional. A compreensão de cultura para o presidente do Brasil é limitada. Você acredita ainda numa oxigenação para o tratamento à cultura por parte da gestão nacional?
SF: Acredito que o executivo nacional tem uma perspectiva bastante consolidada sobre quais valores/ações políticas devem ser tomadas nesse segmento, sendo assim, acredito mais em uma continuidade do que numa quebra desses padrões. Isso não quer dizer que essas posições estejam imunes a revisão e discussão da sociedade civil e nem de ações oriundas do legislativo.

S: Não enxergando cultura apenas como produção artística, ou elementos regionais, ou esporte, ou turismo, mas sim ampliando esse entendimento. Teremos um período de quatro anos (2018-2022) perdido no avanço cultural do país?
SF: Teremos quatro anos de pouco investimento e oportunidades para uma perspectiva mais plural e inclusiva em termos culturais. Mas a cultura pulsa e se reconstrói em todos os espaços cotidianos e isso não depende diretamente do poder político.